• Nenhum resultado encontrado

Identidades Sul-brasileiras

No documento À mão livre : croquis na era pós-digital (páginas 56-61)

1.2. Precedentes dos croquis

1.2.4. Identidades Sul-brasileiras

Verão após verão ele se contentava com a ideia abstrata da posse e com a certeza de que sua casa o estava esperando, num lugar preciso da planície.

Jorge Luis Borges

A noção de identidade presente no conto “O Sul”, de Jorge Luis Borges, revela- se no retorno de alguém para sua terra natal, que se reencontra consigo mesmo e com seu espaço de origem, onde se enlaçam os conceitos de universalidade e regionalismo, sobrepostos pela literatura de “As mil e uma noites” e de “Martin Fierro”. Essa ilusão (ou desnorte) provocada pela crise ético-estética da contemporaneidade reacende as reflexões sobre a identidade regional. Sandra Pesavento traz a ideia de que os gaúchos carregam, acacianamente, o senso-comum de estarem sempre atrás do trem da história, e segue em oposição, em seu artigo “Da frustração histórica do Rio Grande”:

Pelo contrário, gregos e troianos concordam que possuímos uma bela história, com fartos episódios bélicos, de grande ação, e plenos de atos de bravura (PESAVENTO, 1998, p. 19).

Mesmo não sendo um parâmetro qualitativo nem a perpectiva central desta investigação, no que se refere ao tipo de expressão gráfica desenvolvida na Arquitetura Moderna Brasileira no Sul, ainda assim, podemos citar os principais autores, tais como Alberto Xavier, Ivan Mizoguschi, Sergio Marques, Luís Henrique Haas Luccas, cujo protagonismo se destaca nas pesquisas relacionadas ao tema da Arquitetura Moderna Brasileira no Sul. Enfatizando a importância da produção regional da arquitetura do Movimento Moderno, que até fins da década de 1950 era reconhecida apenas no eixo Rio-São Paulo, Xavier e Mizoguchi (1987), em “Arquitetura Moderna em Porto Alegre”, mapeiam a origem da cidade e seus principais períodos arquitetônicos.

Discussões sobre origem e genealogia também podem ser empreendidas à crítica de arquitetura. O sul do Brasil foi impregnado em sua gênese por expressões artísticas peculiares. A “Arquitetura Moderna Brasileira disseminada no Sul, principalmente a partir do final dos anos 1940 até meados da década de 1970” (MARQUES, 2016, p. 30.) também se filiou à arquitetura produzida no eixo Rio-São Paulo no mesmo período.

Pensar sobre uma escola de Arquitetura Moderna Brasileira sem passar pela região meridional do Brasil é deixar de falar da multiplicidade das interpretações que essa arquitetura trouxe das diversas regiões do país e do mundo. Em que pese o isolamento geográfico do Rio Grande do Sul em relação aos demais estados brasileiros e a proximidade com os países platinos, as especificidades regionais de sua arquitetura são de ordem material, formal e semântica em seu contexto cultural.

Para pesquisas futuras, noutra linha sucessória, sugere-se questionar que implicações a filiação racionalista da segunda geração dos arquitetos modernos no Rio Grande do Sul, conforme apontados por Sergio Marques (2016), trouxeram através de croquis no processo de projeto desse período. Conforme encontrado em sua tese “FAM”, também pode-se justificar a influência de arquitetos provenientes da imigração alemã no Rio Grande do Sul, partidária de esquemas compositivos e de uma racionalidade miesiana, de certa parcimônia construtiva.

O contato de alguns arquitetos do Movimento Moderno do RS com Richard Neutra da geração dos anos 1950 e 60, reforçou a adoção de uma arquitetura de natureza abstrata e universal, também influenciada por Mies, resultando em “formas comedidas e austeras” (MARQUES, 2016, p. 390):

[...] o comedimento formal decorrente tanto de condições climáticas quanto da conjuntura cultural, significaram certa reserva com as inquietações de identidade formal nacional, exercidas pela arquitetura nativista da capital, dadas suas especiais condições mesológicas e institucionais. Também no caso do Rio Grande do Sul, a limitação econômica da província significava uma restrição importante e extrato social capaz de financiar projetos de maiores pretensões formais [...]. (MARQUES, 2016, p. 390)

Com interesse no croqui como recurso operativo para o arquiteto contemporâneo em Porto Alegre, pesquisar os precedentes modernos no âmbito da capital gaúcha pode ser um ponto de partida, ou de chegada, onde a teoria do Projeto se insere na disciplina de arquitetura. Sobre o projeto, Alfonso Corona Martinez (2000) traz definições que ratificam a ideia de etapas no processo projetual. Por outro lado, Corona Martinez expõe a ideia de que não há somente um único método em seu “Ensaio sobre o projeto”:

[...] as representações gráficas do objeto futuro constituem a parte principal do projeto [...]. Esse progresso no conhecimento do objeto futuro é correlato às etapas que se encontram no processo projetual, etapas estas que, para uma definição do trabalho profissional em nosso meio, são as seguintes: a) croquis preliminares, b) anteprojeto e c) projeto [...] (grifos nossos - MARTINEZ, 2000, p. 12).

[...] O processo projetual implica uma série de operações que resulta em um modelo “do qual será copiado um edifício”. Contudo, não há apenas um único processo projetual, apenas uma única maneira de se levar a cabo esse processo. A gradação de representações de maior generalidade até aquelas de maior definição, ainda que seja válida para a maioria dos processos projetuais, não indica um procedimento único. (MARTINEZ, 2000, p. 17) Por fim, Corona Martinez define que “[...] projeto é a descrição de um objeto que não existe no começo do processo [...]” e complementa afirmando que “[...] a invenção do objeto realiza-se por meio de ‘representações’ dessa coisa inexistente, codificadas de maneira imprecisa em um sistema gráfico cuja sintaxe é parecida com aquela das representações definitivas [...]” (MARTINEZ, 2000, p. 37). É nesse sentido, nas primeiras fases do projeto e suas etapas de representação, que Cattani (2006) reitera que as intenções do autor são permeadas por estudos, esboços e croquis, no começo desse percurso:

[...] Independentemente do projeto ser elaborado individualmente ou em equipe, as suas primeiras fases de elaboração caracterizam-se como um “diálogo consigo mesmo”, onde o arquiteto expõe, através de estudos, esboços e croquis, suas concepções sobre a obra, a fim de avaliá-la, posteriormente confirmando-a ou refazendo-a. Nessas etapas a representação do projeto se dá sob a forma de desenhos que não necessitam ter uma correspondência traço a traço, ou seja, muitas vezes o desenho exprime apenas as intenções do autor, cujo entendimento pode ser restrito, por serem empregados desenhos de características pessoais (desenhos de autor). (Grifos nossos - CATTANI, 2006, p. 118)

Considerando o croqui como parte inicial desse processo projetual e situado nos estudos preliminares, no qual o partido revela seu papel operacional para o lançamento de ideias primárias, pretende-se verificar de que maneira arquitetos contemporâneos de uma arquitetura meridional brasileira se posicionam frente a este instrumento tangível, que segundo Michael Graves, trata da natureza especulativa do desenho:

Ao explorar um pensamento através do desenho, suspeito que o aspecto mais intrigante para nossas mentes seja o que poderia ser considerado como o ato especulativo. Porque o desenho como um artefato é geralmente considerado um pouco mais experimental do que outros dispositivos representacionais, talvez seja uma notação mais fragmentada ou aberta. É essa mesma falta de conclusão ou finalidade que contribui para sua natureza especulativa. (GRAVES, 1977, p. 384) 48

A abstração que a própria linha do horizonte sulino, em suas planícies, rios e mares, que escondem e desnudam nascentes e poentes meridionais, sugere relações semiológicas entre a música e a arquitetura do sul, onde “rigor, profundidade, clareza,

48 Tradução do autor, do original: In exploring a thought drawing, the aspect which is so intriguing to our minds, i suspect, is what

might be regarded as the speculive act. Because the drawing as an artifact is generally thought of as somewhat more tentative than other representational devices, it is perhaps a more fragmentary or open notation. It is this very lack of completion or finality which contributes to its speculative nature.

concisão, pureza, leveza e melancolia”49 são permanentes. Ou talvez por razões comportamentais, de personalidade e caráter do homem sulino, sugeridas no ensaio “Estética do frio” (RAMIL, 2004). Daí a identidade através da narração das características do gaúcho até a noção de pertencimento estabelecida com o outro e com as gerações passadas e futuras.

Assim como o croqui, que é especulativo, incerto, incompleto, e que lança ideias em busca de um caminho, um zênite, um norte, ou um sul, como sugeriu Joaquín Torres Garcia [1874-1949], artista uruguaio que cunhou o termo sulear, com o mesmo sentido de nortear (figura 33), sugerindo ficções, reflexos ou espelhamentos de uma identidade regional, pode-se especular sobre questões identitárias. Tais questões talvez possam ligar-se às raízes genealógicas de uma arquitetura moderna temporã, neta de Costa, Mies, Corbusier, Neutra e Niemeyer, filha de Fayet, Araújo e Moojen.

Figura 33 - Joaquín Torres-García, América invertida, 1943. Fonte: Fundação Torres García50

No inventário das metáforas, Mercator e Torres García duelam sobre a planície pampeana, à sombra de um velho umbu e ao som de milonga. Antes de tudo, há que se celebrar essa arquitetura, estabelecendo questionamentos sobre o seu lugar representativo em nossa cultura tão peculiar. Oriunda da Arquitetura Moderna

49 Fiz a milonga em sete cidades / Rigor, Profundidade, Clareza / Em Concisão, Pureza, Leveza / E Melancolia. Milonga é feita

solta no tempo / Jamais milonga solta no espaço / Sete cidades frias são sua morada. Em Clareza / O pampa, infinito e exato me fez andar / Em Rigor eu me entreguei / Aos caminhos mais sutis / Em Profundidade / A minha alma eu encontrei / E me vi em mim. A voz de um milongueiro não morre / Não vai embora em nuvem que passa / Sete cidades frias são sua morada. Concisão tem pátios pequenos / Onde o universo eu vi / Em Pureza fui sonhar / Em Leveza o céu se abriu / Em Melancolia / A minha alma me sorriu / E eu me vi feliz - Milonga de Sete Cidades (a Estética do Frio) - Vitor Ramil (1997) – grifos nossos.

Brasileira, com influências racionalistas sobre a tábula rasa da geografia plana e do clima subtropical, o Movimento Moderno no Rio Grande do Sul originou traços discretos, linhas e ângulos retos, racionais, econômicos, comedidos, próprios das personalidades e caráteres igualmente sóbrios e com sotaque regional. A lo largo, coplas de Martin Fierro:

Mi gloria es vivir tan libre como el pájaro del cielo; no hago nido en este suelo ande hay tanto que sufrir, y naides me ha de seguir cuando yo remuento el vuelo. (José Hernandes, 1872)51

Na mitologia grega, Atlas, filho de Jápeto e Ásia, foi condenado por Zeus a sustentar o mundo nos ombros por toda a eternidade. Mas até quando os gaúchos seguirão eternos atlantes, sofrendo o peso sobre suas costas, como titãs nas superfícies meridionais em busca de sua identidade?

51 “Minha glória é ser tão livre | como é livre o passarinho; | nunca farei o meu ninho, | onde há tanto que sofrer, | e, quando o meu

Capítulo 2

No documento À mão livre : croquis na era pós-digital (páginas 56-61)