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Fazer nascer flores numa situação bloqueada » Católicas idealistas

• Luta de classes como motor da história • Apoio da comunidade rural à revolução

^ Pa minha/nossa história; Descobrir quem podemos ir sendo

Em Julho de 1971, cheguei de novo a Portugal, sem saber quanto tempo ia ficar. O que tinha eu vivido desde Setembro de 1969 que tivesse contribuído para a minha emergência enquanto Sujeito Mulher? Que novas vivências e aprendizagens me foram preparando para o trabalho com jovens cujos resultados são analisados nesta primeira

janela?

Quando deixei no verão de 1969 o programa La Nouvelle Société em Sagres, tinha começado a aprender uma outra coisa fundamental: o esforço que é desenvolver o gosto de conviver com pessoas com hábitos e formas de estar na vida diferentes das minhas. Naquele verão fui confrontada com a minha forma de estar no grupo: espontaneamente, durante os tempos livres, «dava-me» mais com companheiras americanas e holandesas, com quem sentia mais afinidades. Era como se «rejeitasse as portuguesas», dizia-me alguém. Foi um choque para mim, porque não tinha sido essa a minha intenção. Se não me tivessem chamado à atenção, provavelmente teria levado mais tempo a valorizar a dimensão intercultural das trocas internacionais. A frontalidade da crítica deixou também já a semente para aquilo que viria a aprender mais tarde: a importância, para poder ser

honesta comigo própria e com os outros, de assumir a conilitualidade inerente aos processos educativos, que têm como objectivo «mudar a vida» e não ter (demasiado) medo de lidar com tensões e conflitos.

No período do verão 1969 - verão 1971 continuei «em transição». O ano lectivo 1969 -1970 foi uma experiência riquíssima em termos interculturais. Fiz um estágio de

formação intercultural no Centro Internacional do GRAAL em Paris e tirei o Diplome d'Études de Civilisation Française, num curso para estrangeiros na

Sorbonne.

No verão de 1970 participei em mais dois programas de verão em Portugal, um na Arrábida (no Conventinho, hoje em uso pela Fundação Oriente) e outro em Peniche (no lugar da Nossa Senhora dos Remédios) e passei uma tarde e um serão em Almalaguês onde funcionava um dos Estágios de Alfabetização e Animação Social segundo a

Pedagogia de Paul Freire, que o GRAAL organizou na zona de Coimbra para formar estudantes universitários de todo o país. (No relatório daquele trabalho encontrei na lista de participantes o nome da Helena Costa Gomes de Araújo, orientadora desta minha tese.)

Trabalhei em Setembro do mesmo verão, no Centro Internacional de Conferências do

GRAAL em Vogelenzang na Holanda como voluntária no backstage group de um programa

que juntava escritores/as e pensadores/as, que tinham escrito sobre as mulheres. Este programa foi organizado por Maria de Lourdes Pintasilgo e Catarina Halkes (que iniciou os Women's Studies na Universidade Católica de Nimegue e que encontrei de novo muito mais tarde num congresso de mulheres em Nimegue). Do GRAAL estava também a Janet Kalven, autora do livro recentemente publicado Women Breaking Boundaries, onde Janet descreve a história do GRAAL na América do Norte. Foi aí que conheci a escritora alemã Luisa Rinser de quem tinha lido em 1967 o livro Gehfort wenn du kannst (Parte se fores capaz), e também a investigadora feminista Ivonne Pellé Douel, que já tinha encontrado em encontros culturais no Centro do GRAAL em Paris).

Luise Rinser conta no seu livro a história de uma jovem comunista alemã que parte em 1942 para Itália para se refugiar na casa da avó. A avó morrera entretanto e ela juntou- se a um grupo de resistentes. Vai parar a um convento onde é confrontada com o mundo da fé, que ela desprezava, mas da qual aprende a conhecer o valor. No início do livro encontrei a seguinte citação em Latim do versículo 7 do Salmo 124: "Laqueus contritus est et nos liberati sumus", traduzido pela edição de São Paulo da Bíblia em Português por: "a rede rompeu-se, e nós escapámos", enquanto que a minha Bíblia holandesa traduz a frase literalmente do Latim: "o laço partiu-se e nós escapámos".

A que redes e laços tentei eu escapar? A temática da opressão e da libertação era uma temática central na época. Havia dois desejos que alimentavam as minhas decisões: em primeiro lugar, poder decidir o rumo da minha própria vida sem ter de seguir os padrões dominantes da sociedade holandesa de então, onde as jovens mulheres largavam o trabalho profissional para ir tomar conta da casa, do marido e dos filhos; em segundo lugar, poder trabalhar junto de «populações pobres em países subdesenvolvidos». Este segundo desejo era fruto de uma realidade sociológica que marcava a época, sobretudo em meios profissionais situados no campo da saúde. Muitas enfermeiras (havia muito poucos enfermeiros) partiam em contextos de diversas organizações de ajuda para o desenvolvimento. A minha própria decisão, alguns anos antes de ir tirar um curso de enfermagem (nunca sabia, enquanto criança e jovem, «o que queria ser mais tarde») prende-se com este desejo. Tinha eu 17 ou 18 anos, quando, no Centro do Graal em Vogelenzang, ouvi uma mulher holandesa do GRAAL Elisabeth Caminada falar sobre a sua experiência de trabalho no Brasil. Citava um livro brasileiro (traduzido em Neerlandês),

Barraca 21, e o nome da autora soa na minha memória como Maria de Jesus. Neste livro

falava da sua vida numa favela. Foi este livro que me fez vencer a hesitação em tirar um curso de enfermagem.

A minha luta pela libertação construía-se assim em duas frentes. Uma, pela negativa: não seguir o modelo dominante da época (casa, marido, filhos) em que via entrando a

«superada» quando dizia que queria ir «trabalhar com os pobres». «Ir trabalhar com os pobres» constituía o «repertório disponível» em formato de sonho, que de acordo com as expectativas da época "d'une jeune fille rangée" e reforçado pelo meio onde trabalhava, informava o desejo de ir rumo a um espaço outro, um «ailleurs», que permitia romper com formas de vida anunciadoras de monotonias demasiado previsíveis.

Apesar de ter querido escapar ao modelo dominante que estruturava a vida da maioria das mulheres na Holanda, não tinha nenhuma consciência feminista explícita na época. Lembro-me de ter dito durante o programa de verão em Peniche que não me sentia de maneira nenhuma oprimida como mulher. Tinha-me sentido explorada como trabalhadora durante os estágios do curso da enfermagem. Mas «não tinha razão de queixa dos homens», dizia eu, e de facto o meu amigo (não se dizia namorado na altura) deixava-me partir sozinha. Lembro-me de a minha posição ter sido fortemente contestada por algumas das outras participantes. Registei a critica, mas não fazia (ainda) a ligação destas ideias com as minhas experiências e as de outras mulheres. Foi um registo que ficou disponível como memória activa para outros momentos mais tarde.

Fui-me libertando na época da evidência de uma fé católica que já não fazia muito sentido. Foram pessoas e contextos do GRAAL que me fizeram descobrir um novo sentido da dimensão espiritual da vida o que levou a que não tivesse de «abandonar a fé» ou «sair da Igreja».

Durante o ano lectivo 1970 - 1971, resolvi «mudar de profissão» porque fiquei muito entusiasmada com o programa de um novo curso na Universidade Municipal de Amsterdão intitulado Andragologia. Aluguei um quarto em Amsterdão, cidade onde nunca tinha vivido e onde conhecia pouca gente, inscrevi-me no curso e, simultaneamente, comecei a trabalhar part time efree lance em hospitais para me poder auto sustentar.

Fui convidada para colaborar na preparação do Seminário O método Paulo Freire, organizado por uma Comissão de Ajuda aos Países em Vias de Desenvolvimento, que se realizou na Universidade Livre de Amsterdão nos dias 26 e 27 de Outubro 1970. Foi uma experiência extremamente importante, sobretudo por ter convivido de perto com Paulo Freire durante o seminário. Sentia-me porém relativamente deslocada no ambiente académico das conversas do grupo de preparação. Foram possivelmente os primeiros sinais de uma crise que se anunciava e que rebentou em pleno inverno. Talvez estivesse naquela altura no meio de um processo de desidentificação, sem que se estruturasse algo com que pudesse re-identificar-me de uma forma satisfatória.

Resolvi interromper o trabalho na faculdade e no hospital e aceitar o convite de fazer parte da equipa do centro do GRAAL, na Holanda. O meu trabalho consistia na preparação e na realização de programas de educação extra-escolar com estudantes do ensino secundário e na ajuda da programação e gestão do centro de conferências. Fiquei de Dezembro 1970 até Abril de 1971, meses em que se começou a perspectivar uma nova partida.

Voltei a Paris, tinha eu acabado de fazer 24 anos, para ajudar o GRAAL a preparar e divulgar os programas internacionais de verão para estudantes universitários. Trabalhei ainda durante 15 dias como enfermeira muna colónia de férias para jovens francesas deficientes mentais, no Sul de França. Voltei à Holanda para fazer de novo as malas e partir para Portugal para trabalhar nos programas de verão em Sassoeiros, onde o GRAAL tinha à sua disposição uma casa emprestada temporariamente por uma ordem religiosa.

Depois do verão comecei a participar em Lisboa no trabalho de formação com estudantes do ensino secundário, trabalho este da responsabilidade, em anos anteriores, de Isabel Allegro e Fátima Grácio. Estive envolvida nesta iniciativa até ao verão de 1973.

Nesta pnme\Ta.janela, a minha/nossa história continua com as palavras tiradas de um jornal produzido por um grupo de raparigas, estudantes finalistas do ensino secundário, intitulado Almalaguês 1973. O documento corresponde a um trabalho de formação realizado pelo GRAAL entre 1971 e 1973 com estas estudantes em Lisboa, com idades compridas entre os 15 e 17 anos. No referido «Jornal» as estudantes relatam a experiência de um campo de trabalho em Almalaguês, uma aldeia perto de Coimbra, onde o GRAAL já havia realizado, em anos anteriores, um trabalho de alfabetização. As raparigas, citadinas, foram acolhidas pela população local. É de alfabetizandos desta aldeia que Paulo Freire recebeu uma carta referida no texto-contexto. Trabalhei com Fátima Grácio na animação do campo. O campo foi o culminar de um processo de conscientização que realizámos em Lisboa com estas estudantes, a partir de Outubro

1971. As minhas «competências» para este trabalho foram, na altura, sobretudo fruto de aprendizagens feitas em contextos de educação não formal. Lendo, passados estes anos, o que as raparigas escreveram na altura, lembro-me daquilo que referi acima: é importante «criar» a prática por dentro e não tentar adaptá-la a uma teoria. Foi isto que aconteceu no processo de formação que culminou em 1973 no campo de trabalho em Almalaguês.