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A terra, bem central tanto para a produção de riquezas no modo capitalista quanto para a sobrevivência dos índios, é a maior razão de conflitos no Brasil entre índios e não índios. Se por um lado se tem a visão de que a terra é subaproveitada para os interesses da sociedade que precisa de alimentos e outras riquezas que só ela pode oferecer, por outro lado, se enxerga que essa terra está apenas sendo sugada e destruída quando é utilizada sem critérios de preservação, como com a plantação contínua de determinadas culturas, ou com o emprego de venenos para uma maior produtividade, o que inexoravelmente também prejudicará os interesses de toda a sociedade, especialmente a do futuro. Ambas as partes acreditam que fazem bom uso dessa terra para os interesses da sociedade, cada qual a seu modo, e eis aí o dilema.

Os governos brasileiros sempre trataram as questões relativas aos indígenas, principalmente as que dizem respeito à questão da terra, como um problema que só atrapalhou os objetivos econômicos desenvolvimentistas, ou seja, os governos brasileiros sempre enxergaram por meio dos “óculos capitalistas”, o que impediu e retardou ações e a garantia dos direitos dos indígenas, demonstrando claramente de que lado sempre esteve: o lado mais forte, que sempre impôs sua cultura, que possui o maior poder econômico, o que sempre dominou a mais avançada tecnologia, inclusive a de guerra.

Contudo, o inegável fato de que o índio, de qualquer parte do mundo, seja um ser humano como qualquer outro, e como tal está protegido pelo manto das teorias dos Direitos Humanos, impediu, nas últimas décadas, que se prosseguisse com o seu genocídio sistemático e escancarado, e que se buscasse reverter todo o processo de violência e preconceito contra ele. Trata-se de uma guerra velada e desigual numa sociedade afoita de progresso e desenvolvimento a qualquer custo, com seu aparato econômico, tecnológico e bélico que abriga minorias vitimizadas e uma parcela diminuta de defensores, menos provida de poder econômico e bélico, porém mais munida de argumentos de razão e provas científicas.

O fato é que, não se pode afirmar ainda, se para o bem ou para o mal dos vários segmentos sociais estes povos ressurgiram nas últimas décadas de uma espécie de ostracismo, de uma invisibilidade disfarçada, proposital ou não, para reclamar o que de fato e de direito é deles e assim conquistaram um maior apoio social, resultado de um avançado consenso internacional em torno dos direitos dessas pessoas.

Conforme Ikawa (2010), dentre outras definições apresentadas pela autora, a Resolução n. 10 do II Congresso Indigenista Interamericano realizado em 1949 já definia que:

O índio é o descendente dos povos e nações pré-colombianos que têm a mesma consciência social de sua condição humana, assim considerada pelos próprios e por estranhos, em seu sistema de trabalho, em sua língua e em sua tradição, ainda que esses hajam sofrido modificações por contatos com estranhos.

Os indígenas brasileiros se enquadram perfeitamente nesta definição, pois descendem de civilizações pré-colombianas, têm consciência social de sua condição humana, de sua cultura e língua e evidentemente que sofreram modificações, em razão de que a maior parte deles já teve contatos com o homem ocidentalizado e também porque qualquer civilização muda culturalmente de modo natural. Terem permanecido camuflados

durante algumas décadas pode ter sido uma estratégia de sobrevivência e resistência, à espera de um cenário mais favorável.

Os índios de todo o mundo possuem direitos diferenciados das demais pessoas humanas em razão dessas suas próprias especificidades: não são descendentes de outros povos, como os europeus, por isso, em sua grande parte, pouco conhecem de outras culturas ocidentalizadas ou outro modo de vida; têm consciência de sua diferença com o ser ocidentalizado, porque sabem que têm outra cultura, outra língua, e ainda que modificados pela ação externa permanecem unidos em suas identidades.

Em âmbito internacional, a Convenção da OIT nº. 169 de 1989, conhecida como Convenção sobre Direitos Indígenas, consolida um direito de participação dos povos indígenas e tribais e uma consequente autonomia em estabelecer suas próprias instituições e determinar seu próprio processo de desenvolvimento, e que foi ratificada pelo Brasil em 27.07.2007, estabelece como direitos fundamentais destes povos: direitos sociais (art. 2º.), liberdades fundamentais (art. 3º.), direito ao meio ambiente (art. 4º.), direitos gerais de cidadania (art. 4º.), direitos reconhecidos a todos os cidadãos do país (art. 8º., 3), direito de petição (art. 12), direito a não discriminação no emprego (art. 20), direito à seguridade social (art. 24), direito à saúde (art. 25) e direito à educação (art. 26). (IKAWA, 2010).

Outros documentos internacionais de direitos humanos preveem direitos especiais desses povos, além da Convenção OIT nº. 169, ratificada no Brasil pelo Decreto Legislativo n. 143 de 2002, a Declaração sobre os Direitos de Povos Indígenas foi observada pelo Brasil por meio da Constituição Federal de 1988, antes mesmo de ser adotada em Assembleia Geral da ONU em 1989; o Pacto Internacional sobre Direitos Civis e Políticos de 1966 foi ratificado pelo Brasil por meio do Decreto-Legislativo nº. 226, de 12 de dezembro de 1991; o Pacto Internacional de Direitos Econômicos, Sociais e Culturais ratificado pelo Brasil por meio do Decreto nº. 591, de 6 de julho de 1992; a Convenção para a Eliminação da Discriminação Racial, ratificado pelo Brasil por meio do Decreto nº. 65.810, de 8 de dezembro de 1969; a Convenção das Nações Unidas sobre os Direitos da Criança ratificada pelo Brasil por meio do Decreto nº. 99.710 de 21 de novembro de 1990 e a Convenção da Diversidade Biológica, ratificada pelo Brasil por meio do Decreto nº. 2.519 de 16 de março de 1998.

A Declaração sobre os Direitos dos Povos Indígenas, nos seus 46 artigos, reforça todos os direitos conquistados com a Convenção OIT nº. 169/1989 assegurando tanto direitos individuais quanto coletivos, como os direitos culturais e de identidade, os direitos de educação, saúde e emprego, o direito à língua, dentre outros, reconhecendo que os

indígenas têm o direito de viver com integridade física e mental, liberdade e segurança, de não serem forçosamente assimilados ou destituídos de sua cultura, e, principalmente, o seu direito à terra, fundamento de suas existências coletivas, culturais e de espiritualidade (NAÇÕES UNIDAS, 2008a).

No Brasil, as políticas públicas relativas aos seus indígenas sempre foram integracionistas, ou seja, a vontade nacional sempre foi acabar com a identidade indígena e consequentemente seus direitos, forçando essas pessoas a se incorporarem na sociedade como um cidadão ocidental, homogeneizando assim a sociedade brasileira. Apenas recentemente foram consideradas de modo mais efetivo suas diferenças, pois de uma frágil, distorcida e aparente proteção jurídica calcada no ordenamento civil (Código Civil e Estatuto do Índio) seus indígenas conquistaram, com o estímulo internacional pela luta por seus direitos humanos e com a força de sua identidade e seus movimentos, o status de direitos e defesa constitucional jamais alçados, o que mudou radicalmente sua situação social a partir de então.

No documento denominado “Declaração das Nações Unidas sobre os Direitos dos Povos Indígenas: Perguntas e Respostas” está aposto que:

O Estado brasileiro declarou, ainda no Conselho de Direitos Humanos da ONU, em 2006, que não havia dúvida de que a Declaração era uma reafirmação do compromisso da comunidade internacional para garantir o gozo de todos os direitos humanos e liberdades fundamentais dos povos indígenas, e para respeitar o valor das culturas e identidades indígenas. [...] A delegação brasileira na ONU ainda ressaltou que o exercício dos direitos dos povos indígenas é consistente com a soberania e integridade territorial dos Estados em que residem. Ao mesmo tempo, afirmou que os Estados deveriam ter sempre em mente seu dever de proteger os direitos e a identidade de seus povos indígenas. (NAÇÕES UNIDAS, 2008b).

No Brasil, esta Declaração das Nações Unidas sobre os Direitos dos Povos Indígenas não precisou ser ratificada pelo Congresso Nacional para ser lei, porque o Brasil já se manifestou favorável à Declaração na Assembleia da ONU. Portanto, já está comprometido, mas tal fato não o impede de criar leis que tratem do assunto, a exemplo da criação do Estatuto dos Povos Indígenas, em trâmite há anos no Congresso Nacional.

Nas constituições brasileiras, foi somente na de 1934 que apareceu pela primeira vez a proteção aos índios, e essa proteção foi mantida nos textos das constituições posteriores: 1937, 1946, 1967 e EC nº. 01/1969, ainda que sem a força obtida na CF/88.

O Estatuto do Índio, Lei nº. 6.001, de 19.12.1973, já em consonância com os preceitos da Declaração Universal dos Direitos Humanos (1948), embora tenha se preocupado em preservar a cultura e assegurar direitos especiais dos índios, ainda

permaneceu com o propósito rançoso de integrá-los, progressiva e harmonicamente, à comunhão nacional.

O mundo não foi mais o mesmo após a Declaração Universal dos Direitos Humanos de 1948, de lá para cá a situação de muitas pessoas foi revista, principalmente na tentativa de proteger a humanidade de males experimentados nas décadas antecedentes, como o genocídio dos judeus. Nesse cenário houve um esforço para a reconstrução dos Direitos Humanos, um paradigma orientador das relações humanas quebrado pelas monstruosas violações ocorridas nas grandes guerras.

Dentre as situações que mais preocupava a comunidade internacional estavam as das chamadas minorias, e dentre estas, os povos indígenas. Em consequência e sob a pressão desse novo consenso internacional, muitos Estados reformularam suas constituições, dentre estes o Brasil, que aproveitou a necessidade de revitalização política e social do País, decorrente de sua história ditatorial recente (décadas de 1960 a 1980) e promulgou em 1988 sua nova Constituição Federal abarcando as orientações internacionais da DUDH/1948, e que contemplou os direitos dos povos originários, revogando em muitos aspectos o Estatuto do Índio de 1973.

Nesse contexto, além da importância material, social e espiritual que a terra tem para o indígena, ela adquiriu um significado particular como instrumento de consagração do direito fundamental de moradia, e assim, de dignidade humana para o indígena também. Dito de outro modo, o indígena compreendeu que havia conquistado, a partir de então, além de tudo o que a terra significa para ele como individualidade e coletividade, uma garantia chamada pelos não índios de direito à sua terra.