• Nenhum resultado encontrado

II - Explorando algumas dimensões da rede de determinantes da obesidade

Após a discussão que realizamos até o presente momento, cabe-nos traçar algumas linhas sobre a questão da rede de determinação da obesidade. A pergunta é: que processos ocorreram na história moderna que levou ao aumento do peso corporal em uma ordem global e nesta magnitude nas últimas 04 décadas?

Sobre isso, como discutimos na Unidade I, já consideramos que há um consenso sobre a etiologia da obesidade como multifatorial, que congrega uma rede envolvendo fatores de toda ordem, incluindo os históricos, ecológicos, políticos, socioeconômicos, psicossociais, biológicos e culturais1. Entretanto, como também já observamos, mesmo não tendo clareza do papel e do peso de cada um destes fatores, os estudos e as políticas tendem a se concentrar nos fatores de ordem biológica e comportamental: atividade física e dieta, aliadas, por vezes, a psicoterapias e terapias medicamentosas ou cirúrgicas.

Porém, é perceptível e comprovado que essas estratégias não têm sido suficientes para dar conta do problema de ordem epidêmica, que só vem crescendo.

Assim, a ênfase nos processos biológicos e psicológicos, em detrimento dos determinantes políticos, sociais e culturais, como vimos na discussão acima, precisa ser revisitada. E, cabe salientar, não se trata de enfatizar uns em relação a outros. As ações e estratégias precisam ser conjugadas e integradas, assim como os processos de análise da determinação da obesidade.

1 Veja uma interessante abordagem sobre o tema no artigo das pesquisadoras Emanuela Nogueira WANDERLEY e Vanessa Alves FERREIRA, intitulado Obesidade: uma perspectiva plural. Publicado na Revista Ciência e saúde coletiva:

<http://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S1413-81232010000100024&lng=pt&nrm=iso>.

Imagem: freestocks

Tais considerações nos levam a algumas perguntas.

Por exemplo, como podemos ampliar a nossa atuação na promoção da alimentação saudável frente ao modo de produção de alimentos vigente, pautado no agronegócio, no qual a comida é tratada como uma mercadoria?

Desse modo, os modelos agroecológicos parecem contribuir com a construção de processos alternativos aos padrões dominantes no sistema alimentar, o que poderá oportunizar um olhar crítico sobre ele, despertando questões como: “por que comemos o que comemos?”, “quando fazemos tal escolha alimentar, a quais modelos de produção estamos beneficiando?”, “quais as práticas utilizadas para produção e disponibilidade desse alimento?”, “que relação possuem com grupos humanos e com a sustentabilidade humana e do mundo?”.

Contribuições da agroecologia para melhores impactos sobre a saúde humana e do planeta.

A agroecologia surge questionando o modelo de sistema agroalimentar e destaca-se como prática agrícola que objetiva centralmente fortalecer a identidade do agricultor familiar, resgatando suas raízes culturais e sua autonomia, com práticas tradicionais e locais que o mantenham independente do complexo industrial agrícola externo à sua propriedade. Pauta-se na perspectiva de viabilizar os chamados circuitos regionais de produção e comercialização, reduzindo o consumo de combustível para seu transporte, reduzindo o uso de combustíveis fósseis e a produção de gases do efeito estufa. Deste modo, a forma de produção de alimentos na perspectiva agroecológica tem baixo impacto ambiental e promove saúde e qualidade de vida.

Destacamos algumas premissas que fundamentam a agroecologia: oferta de alimentos saudáveis e de elevado teor nutricional, ausência de agrotóxicos e outros contaminantes (fertilizantes, aditivos sintéticos, antibióticos e outras drogas veterinárias) que ponham em risco a saúde do agricultor e do meio ambiente, auto sustentação da propriedade agrícola no tempo e no espaço, respeito à integridade cultural dos agricultores e a preservação da saúde ambiental e humana, além do estímulo à participação social, a partir do empoderamento dos agricultores. Desta maneira, os fundamentos da agroecologia nos conduzem a compreender seu potencial para subverter o modelo alimentar vigente, não apenas respeitando a vida e saúde humana e do planeta, mas sendo capaz de promovê-la.

Fontes:

AZEVEDO, E.; PELICIONI, MCF. Promoção da Saúde, Sustentabilidade e Agroecologia: uma discussão intersetorial. Saúde Soc, São Paulo, v.20, n.3, p.715-729, 2011.

AZEVEDO, E.; PELICIONI. MCF. Agroecologia e promoção da saúde no Brasil. Rev Panam Salud Publica, v. 31, n. 4, p. 290–5, 2012.

AZEVEDO, E. Alimentos orgânicos: ampliando os conceitos de saúde humana, ambiental e social. São Paulo:

Editora Senac São Paulo, 2012. 386p.

Para reflexão...

Como será que se configura o sistema alimentar no seu município? Que alimentos produz? E destes quais, são consumidos no local? Que tipo e de onde vem os alimentos que chegam à mesa dos moradores do seu município?

Dessa maneira, os sistemas alimentares baseados no agronegócio têm sido indicados como danoso à saúde da humanidade e do planeta, nos convidando a pensar em novas estratégias para esse enfrentamento, colocando em questão a necessidade de, juntamente com o desenvolvimento de formas ambientalmente sustentáveis de produção, desenvolvermos mecanismos diferenciados de comercialização e consumo.

Assim, a agroecologia pode nos auxiliar nessa aproximação, uma vez que busca promover o desenvolvimento de iniciativas que estruturam processos diferenciados de desenvolvimento rural, em diálogo com o periurbano e urbano, pautados em articulações regionais, nacionais e internacionais, tendo como um dos pilares de sustentação a construção de circuitos de proximidade de comercialização e a valorização dos mercados locais (PEREZ-CASSARINO; FERREIRA, 2013, p. 174).

Desse modo, Giordani, Bezerra e Anjos (2017) destacam que agroecologia implica uma profunda transformação na relação com o ambiente, ao envolver um sistema de produção que renova os significados dos elementos da natureza, a energia e as várias dimensões do sistema, acaba igualmente por produzir diversos outros sentidos acerca do alimento. Dessa maneira, a alimentação resgata e reflete uma ligação primordial do ser humano com a natureza e sua posição genuína de dependência e cuidado para com o planeta – aciona redes de sentido, não restrita à sua função nutricional.

Assim posto, modelos de sistemas alimentares pautados na agroecologia1 poderão nos proporcionar novas formas não apenas de produção, mas de consumo alimentar, o que poderá impactar sobremaneira na saúde global, integrando homem e mundo, e poderá afetar, por sua vez, nos dados sobre obesidade, uma vez que está fortemente imbricada com os modelos de produção e consumo vigentes no mundo moderno.

1 Veja um pouco sobre agroecologia, com o vídeo “Vida na terra”, com Ana Maria Primavesi, pioneira no tema no Brasil:

https://www.youtube.com/watch?v=FRyvSjpOAeg

Figura 16: Agricultores Familiares. Imagem: Tamires Kopp/MDA.

Tais estratégias de mudanças do modelo de produção e circulação dos alimentos têm sido fundamentais para a construção de ambientes alimentares saudáveis, contrapondo ao que vem sendo denominado como ambientes obesogênicos, os quais podem ser compreendidos como aqueles potencialmente capazes de promover ou favorecer o processo de aumento do peso corporal dos sujeitos (SWINBURN et al., 1999).

Ratifica-se, então, que o cuidado a pessoas com obesidade requer medidas estruturais de possibilidades de acesso a práticas saudáveis, que incluem as escolhas alimentares, equipamentos e instalações de lazer, uso e circulação em espaços públicos com segurança, bem como estabelecer regras de regulamentação da publicidade de alimentos.

Imagem: Bernard-Hermant -- unsplash

Saiba mais sobre Ambientes Obesogênicos

Dantas e Silva (2019), em uma revisão narrativa, trazem algumas características de um ambiente obesogênico, entre as quais destacamos:

a alimentação é caracterizada pela maior disponibilidade de alimentos ultraprocessados, energeticamente densos e pobres em nutrientes, em detrimento da oferta de alimentos in natura, ricos em fibras, vitaminas e minerais;

exclui ou diminui consideravelmente a disponibilidade e o acesso a instalações de lazer;

reduz a disponibilidade em locais circunvizinhos aos locais de moradia e de trabalho a possibilidade de acesso à compra de alimentos considerados protetores para o desenvolvimento da obesidade;

sofre forte influência das diversas mídias na formação dos comportamentos alimentares, associada ao apelo visual das peças publicitárias relacionadas a produtos alimentícios destinados especialmente ao público infantil.

A existência dos ambientes obesogênicos e o impacto da obesidade como um problema global estão ligados também à marcada inércia política, à falta de urgência sobre o tema e às ações sobre a obesidade, que muitas vezes não estão associadas a atividades em outras áreas (por exemplo, agendas alimentares separadas das agendas de saúde, ação social, e sustentabilidade ambiental)1.

Acrescenta-se, ainda, que, apesar de a sociedade civil apoiar políticas de regulação das grandes empresas de alimentos, isso não se traduziu em demanda pública suficiente para fazer frente à indústria predatória alimentar e de bebidas e à inércia política, o que nos convida a pensar acerca da necessária mobilização e remodelação de ações para seu enfrentamento. Mais ao final deste capítulo destacaremos algumas ações de enfrentamento para a sindemia global.

Neste sentido, podemos antever que um ambiente saudável, aliado à educação alimentar e nutricional, é fundamental para oportunizar fazermos melhores escolhas alimentares. Todavia, também é muito importante ressaltar que as práticas, comportamentos e escolhas alimentares são também socialmente determinadas2. Nessa perspectiva, ações de educação alimentar e nutricional são basilares para estimular as pessoas a pensarem de forma crítica e contextualizada sobre suas práticas de alimentação e saúde, favorecendo, assim, o desenvolvimento de uma consciência mais crítica e comportamentos que reflitam mais empoderamento e autonomia no enfrentamento desta realidade sindêmica. Iremos discutir mais sobre este tema nos próximos módulos.

1 Para ver um pouco mais sobre alimentação e sustentabilidade: RIBEIRO, Helena; JAIME, Patrícia Constante; VENTURA, Deisy. Alimentação e sustentabilidade. Estud. av., São Paulo, v. 31, n. 89, p. 185-198, abr. 2017 . Disponível em: http://www.scielo.br/pdf/ea/v31n89/0103-4014-ea-31-89-0185.pdf

2 Sobre comer ser um ato político veja: http://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S1413-81232011000100014&lng=pt&nrm=iso Imagem: Arshad Pooloo - Unsplash

Síntese – Unidade II

Vimos até agora a magnitude da questão da obesidade no mundo, no Brasil e na Bahia, discutindo quando e como se transforma em um problema de saúde pública. Nesta Unidade, passamos pela discussão sobre as narrativas explicativas quanto ao fenômeno da obesidade.

Discutimos a complexidade e multidimensionalidade da obesidade, articulada a outros problemas que se imbricam e afetam a saúde planetária, como as mudanças climáticas e a desnutrição, decorrentes do modo de produção da vida moderna, que inclui sistemas alimentares predominantemente nocivos à realidade atual. Não negamos suas contribuições para alimentar a crescente população mundial, mas fazemos ressalvas de que, hoje, seus impactos negativos superam os positivos.

Nesta esteira da produção de novas narrativas no momento atual, apresentamos aspectos do Relatório da Sindemia global da obesidade, desnutrição, mudanças climáticas, publicado pela Comissão de Obesidade do The Lancet, que poderá contribuir com novos olhares e narrativas sobre essas questões, por seu lugar de fala na saúde nos espaços científicos e acadêmicos, podendo reverberar em um pensar-agir diferente, ampliado, sobre a obesidade, a desnutrição e as mudanças climáticas.

Ao final, discutimos sobre possibilidades de enfrentamentos, como os sistemas pautados na agroecologia, o trabalho intersetorial, apoiado por instituições e atores sociais locais, os quais, de forma coletiva e mais ordenada, poderão provocar mudanças mais sistêmicas para o enfrentamento da obesidade, bem como da desnutrição e mudanças climáticas.

Resta-nos questionar, diante deste esforço intelectual para contemplar uma visão mais ampla da obesidade, como a área de saúde participa desse processo tão relevante para o enfrentamento da obesidade que, por seu turno, escapa das ações desenvolvidas historicamente do âmbito da saúde? Como tais questões nos levam a refletir sobre as nossas ações em torno da obesidade?

Mas não deixamos de lembrar que há questões que saltam aos olhos e à experiência dos sujeitos que vivem a obesidade, como processos de estigmatização e outros, que impactam de forma importante sobre seu estar no mundo, com suas vivências e subjetividades. Essas discutiremos na próxima Unidade.

Imagem: Flávia Ramos

O fenômeno da obesidade como