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A Imagem do Segundo Nascimento

Os ritos, então, juntamente com as mitologias que lhe dão origem, constituem o segundo útero, a matriz da gestação pós-natal do Homo sapiens placentário. Esse fato, além disso, era certamente do conhecimento dos pedagogos da raça desde o período dos Upanishades e, provavelmente, desde o das cavernas aurignacianas. No Mundaka Upanishad, por exemplo, lemos:

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"Há dois conhecimentos a serem conhecidos — e, na verdade, os conhecedores de Brahman costumam dizer: um superior e um inferior. Entre

       

38 Ibid., p. 82.

estes, o inferior é o Rig Veda, o Yajur Veda, o Sama Veda, o Atharva Veda, a Pronúncia, o Ritual, a Gramática, a Definição, a Métrica e a Astrologia. O superior é aquele através do qual se apreende o Imperecível."40 "Os que vivem em meio à ignorância, auto-iludidos com sua sabedoria, pensando que são cultos, golpeados duramente pela vida, andam pelo mundo iludidos, como cegos guiados por outro cego. Pensando que o sacrifício e o mérito são as coisas principais, nada melhor do que isso sabem(...) Mas aqueles que praticam a austeridade e a fé na floresta, os conhecedores pacíficos que vivem de esmolas, partem tranqüilamente através da porta do sol para o local onde se encontra aquela Pessoa imortal, até aquele Espírito imperecível."41

Na Índia, o objetivo é nascer no útero do mito, não permanecer nele, e aquele que consegue esse "segundo nascimento" é na verdade o "duplamente nascido", libertado dos instrumentos pedagógicos da sociedade, dos engodos e ameaças do mito, do mores local, das esperanças habituais de benefícios e recompensas. Ele é realmente "livre" (mukti), "liberado enquanto ainda vivo"

(jivan muktí), aquele "super-homem" tranqüilo que é o homem perfeito —

embora, em nosso jardim de infância de equívocos libidinosos, ele se mova como um ser de uma outra esfera.

A mesma idéia de "segundo nascimento", sem dúvida fundamental para o Cristianismo, é simbolizada pelo batismo. "A menos que nascido da água e do espírito, o homem não pode entrar no reino de Deus. Aquele que nasce da carne é carne; e o que nasce do Espírito é espírito."42 Não poderíamos pedir definição mais vivida da doutrina dos dois úteros: o útero do mamífero e o útero do homem perfeito.

Na Igreja cristã, contudo, houve uma tendência, historicamente bem- sucedida, de anatematizar as implicações óbvias dessa idéia, com o resultado de um obscurecimento geral do fato de que regeneração significa ir além, não permanecer dentro, dos

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confins da mitologia.

       

40 Mundaka Upanisad, 1.1, 4-6. Tradução de Robert Ernest Hume, The Thirteen Principal Upanishads (Londres:

Oxford University Press, 1921), pp. 366-67.

41 Ibid., 1.2, 8-11, em Hume,op.cit., pp. 368-69. 42 João, 3:5-6.

Enquanto que no Oriente — na Índia, Tibete, China, Japão, Indochina e Indonésia — espera-se que todos, pelo menos em sua encarnação final, deixem o útero do mito, cruzem a porta do sol e se apresentem diante dos deuses, no Ocidente — ou, pelo menos, na maior parte do desenvolvimento judaico-cristão- islâmico — Deus continua a ser o Pai e ninguém pode ir além Dele. Esse fato explica, talvez, a grande diferença entre a religiosidade varonil do Oriente e a infantil do Ocidente recente. Nas terras do "duplamente nascido" o homem é, no fim, superior aos deuses, ao passo que, no Ocidente, até os santos devem permanecer dentro do corpo da Igreja e o "segundo nascimento" é interpretado como nascer dentro da Igreja, e não fora dela. O resultado histórico foi o rompimento dessa bolsa marsupial particular no século XV.

Não há necessidade de multiplicar exemplos do tema do renascimento nas filosofias e ritos religiosos do mundo civilizado. As filosofias neoplatônica e taoísta, os mistérios gregos, os mitos e ritos da Fenícia, Mesopotâmia e Egito, bem como os dos celtas e germânicos, aztecas e maias, abundam em aplicações dessa idéia. Nem é ela menos proeminente nos mitos e ritos dos povos primitivos do mundo. "Morte e renascimento", declara Róheim, "são o conteúdo típico de todos os ritos de iniciação."43

Entre os Keraki da Nova Guiné, os zunidores desempenham um papel de destaque nas cerimônias de iniciação. Os meninos são mandados sentar, com os olhos cobertos pelos velhos, e em seguida os zunidores começam a soar. Os meninos pensam que estão ouvindo a voz da divindade-crocodilo que preside o ritual. O som chega mais perto, como se o monstro estivesse se aproximando para engoli-los, e em seguida, quando estão diretamente acima de suas cabeças, os velhos retiram as mãos e os meninos vêem os zunidores.44 Dessa maneira, eles se tornam conscientes, de forma brusca, da fonte do som que, durante toda sua infância, haviam considerado como a voz de um monstro vivo.

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Esse despertar brusco é característico da tradição da iniciação em toda parte. O que para a criança eram terrores disciplinares tornam-se os implementos

       

43 Géza Róheim, The Eternal Ones of the Dream (Nova York: International Universities Press, 1945), p. 116. 44 Richard Thurnwald, "Primitive Initiations-und Wiedergeburtsriten", Eranos-]ahrbuch 1939 (Zurique: Rhein-

Verlag, 1940), pp. 364-66. Todo esse volume, por falar nisso, deve ser consultado por alguém que tenha dúvida sobre a universalidade da idéia do renascimento.

simbólicos do adulto que sabe. Não obstante, o resultado não é que os símbolos sejam considerados como fraudes. Ao contrário, os zunidores dos Keraki recebem oferendas de alimentos.45 Eles são divindades: os guardiões do Estilo de vida. "Na criação do mundo", disse um feiticeiro dos Pawnee do Kansas e Nebraska, "foi arranjado que deveria haver poderes menores. Tirawaatius, o poder supremo, não podia aproximar-se do homem, não podia ser visto ou sentido por ele, de modo que poderes menores foram permitidos. Eles serviam de intermediários entre o homem e Tirawa."46 Os mitos e a parafernália dos ritos de passagem representam esses poderes e, portando, a eles são conferidos a força da fonte, do apoio e do fim da existência.

O fato de alguns enterros do homem das cavernas musteriano terem incluído implementos e um quarto de carne sugere que a idéia de regeneração, do outro lado do véu da vida, deve ter sido aceita há cerca de 50 mil anos antes de Cristo. Sepulturas paleolíticas posteriores, com o corpo na posição agachada do feto no útero, reforçam o mesmo tema, ao salientar a idéia de um segundo nascimento. E, finalmente, o desenho de um feiticeiro nu dançando na caverna aurignaciana de Trois Frères, em Ariège, França, sugere que forçosamente deve ter havido, há 50 mil anos, iniciados, cientes da força e do significado dos símbolos. Seria ir talvez longe demais sugerir que, em qualquer sociedade primitiva, possam ter existido pedagogos ou mistagogos cuja interpretação da idéia do renascimento tenha ido tão longe quanto a dos hindus. Não obstante, não se pode negar que, nas mitologias e ritos primitivos, encontramos a imagem da porta do sol, de rochas que se chocam, de morte e ressurreição, de encarnação, de casamento sagrado e expiação pelo assassinato do pai, empregados não ao acaso, mas nas mesmas relações que nos mitos das culturas mais avançadas.47

[pág. 75] A unidade real do folclore representa, ao nível popular (declara Ananda K. Coomaraswamy), exatamente o que a ortodoxia de uma elite representa no ambiente relativamente culto. A relação entre o popular e a metafísica erudita é, além do mais, análoga e parcialmente idêntica à que existe entre os menores e os

       

45 Ibid., p. 369.

46 Alice C. Fletcher, The Hako: A Pawnee Ceremony, Twenty-second Annual Report, Bureau of American

Ethnology (Washington, D.C, 1924), Part 2, p. 27.

47 Cf. Jeff King, Maud Oakes e Joseph Campbell, Where the Two Came to Their Father: A Navaho War

maiores mistérios. Em um grau muito alto, ambos empregam os mesmos símbolos, que são aceitos mais literalmente em um caso e, no outro, entendidos como uma parábola: por exemplo, os "gigantes" e "heróis" da lenda popular são os titãs e os deuses da mitologia mais erudita; as botas de sete léguas do herói correspondem aos passos de um Agni, ou de um Buda; e o "Pequeno Polegar" não é outro que o Filho, que Eckhart descreve como "pequeno, mas imensamente forte". Enquanto o material do folclore for transmitido, há terreno disponível

sobre o qual pode ser construída a superestrutura da plena compreensão iniciatória.48

Se, ou não, em qualquer dada cultura, o indivíduo pode renascer realmente, ou é obrigado a permanecer espiritualmente fetal até que seja libertado do purgatório, o mito é, em toda parte, o útero do nascimento especificamente humano do homem: a matriz há longo tempo usada e testada, dentro da qual o ser incompleto é levado à maturidade, protegendo simultaneamente o ego em crescimento contra os fatores libidinais, que ele não está preparado para enfrentar, e lhe fornecendo os necessários alimentos e sucos para seu desabrochar normal e harmonioso. A mitologia favorece uma ontogênese intuitiva e instintiva, bem como racional, e através de todo o domínio da espécie, a morfologia desse órgão espiritual peculiar do Homo

sapiens não é menos constante do que o bem conhecido e facilmente

reconhecível físico humano em si.

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