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Imagens do Múltiplo e suas "Causas"

Natalie Curtis, no The Indians' Book, publicado em 1907, cita um notável mito sobre a origem do mundo, que lhe foi contado por um idoso chefe pima, Falcão-que-paira-no-alto:

No início só havia trevas em toda parte — trevas e água. A escuridão se tornava mais forte em certos lugares, acumulando-se e em seguida se separando, até que, finalmente, de um dos lugares onde as trevas haviam se juntado saiu um homem. Esse homem vagueou pelas trevas até que começou a pensar; ele descobriu então a si mesmo e que era um homem; ele soube que estava ali para algum fim.

[pág. 83]

Pôs a mão sobre o coração e puxou para fora um grande cajado. Usou-o para ajudá-lo a mover-se pela escuridão, e quando ficava cansado, nele se apoiava. Depois, criou pequenas formigas. Tirou-as do corpo e colocou-as sobre a vara. Tudo que fazia tirava do corpo, da mesma forma que havia tirado o cajado do coração. O cajado era de arbusto espinhoso e graxento, e da cera da madeira as formigas fizeram uma bola redonda em cima do cajado. O homem tirou a bola do cajado, e na escuridão colocou-a sob o pé, e em cima dela, rolou- a e cantou:

Eu faço o mundo, e vejam!, O mundo está feito.

Assim, eu fiz o mundo, e vejam!, O mundo está feito.

E assim ele cantou, chamando a si mesmo de criador do mundo. Cantava devagar, e durante todo o tempo a bola aumentava de tamanho enquanto a rolava sob o pé, até que, no fim da canção, vejam só, a bola era o mundo. Ele, nesse momento, passou a cantar mais rápido:

Que ele vá, que ele vá, Que ele vá, que comece!

E assim o mundo foi criado, e nesse momento o homem tirou de dentro de si uma pedra e dividiu-a em pequenos pedaços. Deles fez as estrelas e colocou- as no céu para iluminar a escuridão, Mas as estrelas não eram suficientemente brilhantes.

E assim ele criou Tau-mik, a Via-láctea. Mas Tau-mik não era suficientemente brilhante. Em seguida, criou a lua. Tudo isso fez de pedras que tirava de dentro de si mesmo. Mas nem mesmo a lua era suficientemente brilhante. Em vista disso, começou a pensar no que faria em seguida. Não podia tirar de si mesmo nada que pudesse iluminar a escuridão.

[pág. 84] Mas pensou. E de si mesmo fez duas grandes tigelas, encheu uma de água e cobriu-a com a outra. Sentou-se e observou as tigelas, e enquanto as observava, desejou que o que queria criar realmente acontecesse. E aconteceu como ele desejou, pois a água da tigela transformou-se no sol, que brilhou em raios através das fendas nos lugares onde as duas tigelas se tocavam.

Ao ser criado o sol, o homem tirou a tigela de cima, puxou o sol para fora e jogou- o no Leste. O sol, porém, não tocou o solo. Permaneceu no céu onde ele o jogara, e nunca se moveu. Em seguida, da mesma maneira, jogou o sol para o Norte, o Oeste e Sul. Mas, em todas as ocasiões, ele simplesmente ficava no céu, imóvel, pois nunca tocava o chão. Em vista disso, jogou-o mais uma vez para o Leste, e, desta vez, ele tocou o chão, quicou e começou a subir. Desde então, o sol nunca mais deixou de mover-se. Faz a volta do mundo em um dia, mas, todas as manhãs, tem que quicar de novo no Leste.8

E impossível ler essa história sem pensar no abrangente tema do Velho Mundo sobre o gigante primordial, de cujo corpo nasceu o universo e que, até o fim dos tempos, permanece nas formas do universo como o "self de tudo".

"No início, esse universo foi apenas o self em forma humana", lemos no Brihadaranyaka Upanishad sânscrito.

Ele olhou em volta e nada viu, senão ele mesmo. Em seguida, no início, gritou: "Eu sou ele!" Daí veio o substantivo Eu. É esse o motivo por que, mesmo hoje, quando interpelada, uma pessoa declara inicialmente "Sou eu", e, em seguida, diz o outro nome, pelo qual é conhecido.

Ele estava com medo. É por esse motivo que pessoas têm medo de ficar sozinhas. Ele pensou: "Mas do que é que eu tenho medo? Não há nada, exceto eu mesmo." E daí em diante desapareceu seu medo (...)

Ele se sentia infeliz. É por esse motivo que pessoas não se sentem felizes quando

       

estão sozinhas. Ele queria uma companheira.

[pág. 85] Tornou-se tão grande quanto um homem e uma mulher abraçados. E dividiu esse corpo, que era ele mesmo, em duas partes. Dessa separação surgiram marido e mulher (...) Por conseguinte, esse corpo (antes que o homem case com a esposa) é como uma das metades de uma ervilha partida (...) Ele se uniu a ela e disso nasceram homens.

Ela pensou: "Como pode ele unir-se comigo depois de ter me produzido de si mesmo? Bem, neste caso, vou me esconder." Ela se transformou numa vaca; mas ele se transformou num touro e se uniu a ela: e daí nasceu o gado. Ela se tornou uma égua, e ele, um garanhão; ela, uma jumenta, ele, um jumento, uniu-se com ela e daí nasceram os animais de cascos (...) Ela se tornou uma cabra, e ele um bode; ela se tornou uma ovelha, e ele, um carneiro, e se uniu com ela e daí nasceram os caprinos e os ovinos. Dessa maneira, ele projetou em pares tudo o que existe, descendo até as formigas.

Nesse momento, ele soube: "De fato, eu mesmo sou a criação, pois projetei todo o mundo." Por isso, ele foi chamado de Criação (...)9

Ás vezes, como nesse caso, a projeção do mundo é descrita na mitologia bramínica como voluntária; em outras ocasiões, como na Kalika Purana,10 onde os deuses surgem espontaneamente da contemplação yóguica do demiurgo, Brahma, a criação é uma sucessão de surpresas, até para o criador. Nos Eddas islandeses, como recorda o leitor, o hermafrodita cósmico, Ymir, gera Gigantes- de-rima pelas mãos e pés, mas é atacado mais tarde por deuses jovens, Wotan, Wili e We, estraçalhado e transformado em todo o teatro do cosmos.11 Em comparação, no famoso "Épico da Criação" babilônico, o jovem deus Marduk mata, esquarteja e forma o universo com o corpo do monstro primal do caos, Tiamat. Ovídio, no primeiro capítulo do Metamorfoses, declara que um deus, no princípio, instituiu ordem ao caos.12 E aprendemos na antiga teologia egípcia mefita que o Egito, o universo e todos os deuses originaram-se de Ptah, "O Grande", "O-da-bela-face".13

[pág. 86]

       

9 Brhadaranyaka Upanisad I. iv. 1-5.

10 Ver também Heinrich Zimmer, The King and the Corpse, The Bollingen Series XI (Nova York: Pantheon

Books, 1948; 2a. ed., com índice, 1956), p. 239 e ss. 11 The Prose Edda, Gylfaginning IV-VIII.

12 Ovídio, Metamorfose 1, 21.

13 Cf. Henri Frankfort, Kingship and the Gods (Chicago: University of Chicago Press, 1948), p. 25 e passim. Ver

No sistema metafísico indiano do Vedanta, que supostamente seria uma tradução da imagística metafórica dos mitos bramínicos para termos filosóficos abstratos, a entidade primordial, da qual procede o universo, é descrita como uma fusão de Consciência Pura (brahman, vidya) e Ignorância (maya, avidya), na qual a Ignorância (maya) é comparada à fêmea do par mitológico, fornecendo simultaneamente o útero e a substância da criação. Em virtude de seu poder obscurecedor, ela tapa a luz do Brahman Absoluto, e devido ao seu poder projetador, refrata o fulgor do Absoluto nas formas da miragem do mundo, mais ou menos como um prisma decompõe a luz branca do sol nas sete cores do arco- íris — pois, como Goethe expressou o mesmo conceito no Fausto: "Am farbigen

Abglanz haben wir das Leben".bNo Vedantasara do século XV, esse casamento de Ignorância e Consciência, de Ilusão e Verdade, de Maya e Brahman, é descrito como a causa eficiente e material de todas as coisas. "A consciência associada à Ignorância (e esta última possuidora dos dois poderes) é a causa eficiente e a causa material do universo (...), da mesma forma que a aranha, quando considerada do ponto de vista de seu próprio self é a causa eficiente da teia e, quando considerada do ponto de vista de seu próprio corpo, é também a causa material da teia."14

Traduzida em termos kantianos, a Ignorância, da forma aqui interpretada, corresponde às formas a priori da sensibilidade (tempo e espaço), que são as fronteiras mais interna e externa e as precondições de toda experiência empírica: essas formas a priori tapam a luz do reino metafísico da realidade absoluta e projetam o universo da fenomenalidade. Mas o que o "verdadeiro ser" da realidade final, dissociada de nossos modos de experiência, poderia ser, jamais saberemos, pois, como disse "o grande chinês de Königsberg": "Was es für eine

Bewandniss mit den Gegenständen an sich und abgesondert von aller dieser Receptivität unserer Simnlichkeit haben möge, bleibt uns gänzlich unbekannt. "c

[pág. 87]

Dessa maneira, o Falcão-que-paira-no-alto, o Brihadaranyaka Upanishad, o Kalika Purana, o Eddas, o "Épico da Criação" babilônica, Ovídio, a teogonia

       

b Fausto, Parte II, último verso: "Em colorido reflexo, temos nossa vida". 14 Vedantasara, 55-56.

c Immanuel Kant, Kritik der reinen Vermunft, I.8.i. "O que se poderia dizer a respeito das coisas em si, separadas

menfita, a filosofia vedanta, Kant e Goethe, através de grandes variedades de metáfora, formularam e repetiram um único pensamento — e, aliás, o que aparentemente seria um pensamento fácil de formular, isto é: o Uno, por algum jogo de mãos ou truque não percebido pelo olho, transformou-se no Múltiplo. Ainda assim, em vez de expressar diretamente esse pensamento, eles empregaram veículos alegóricos, ora de caráter pictórico, ora abstrato, e, curiosamente, embora cada um dos veículos consiga transmitir pelo menos um vislumbre do teor da mensagem, nenhum realmente a elucida — nenhum realmente a explica, ou mesmo representa diretamente o mistério do Múltiplo saído do Uno. E, neste particular, a formulação de Kant não é mais satisfatória do que a do Falcão-que-paira-no-alto.

Reexaminando o problema, porém, verificamos que ele não é susceptível à elucidação direta, pois é o problema da relação entre um termo conhecido (o universo) e um incognoscível (sua denominada origem), ou melhor, ele é, rigorosamente falando, um problema metafísico, não empírico. Seja um problema desses posto para exame na linguagem pictórica do mito ou na linguagem abstrata da filosofia, ele, simplesmente, só pode ser apresentado, nunca elucidado. E uma vez que é, dessa maneira, em última análise, inexprimível, nenhuma única metáfora, e tampouco uma combinação delas, pode esgotar-lhe as implicações. A menor mudança de ponto de vista, e toda a concepção passa por uma transformação caleidoscópica, como acontece também com os veículos correlatos da imagística e da comunicação. O Uno primordial, por exemplo, pode ser representado como masculino (como no caso de Brahma), feminino (como na Mãe do Mundo), hermafrodita (como nos casos do "Eu" e Ymir), antropromórfico (como na maioria dos exemplos acima apresentados), teriomórfico (como no mito persa do Touro Mundial esquartejado), botanomórfico (como na imagem Eddica da Cinza do Mundo, Yggdrasil), simplesmente ovóide (como nos yantras tântricos), vocais (como nos casos da sílaba sagrada védica, OM, e no tetragama cabalístico), ou absolutamente transcendente (como nos casos do vazio budista e no Ding-an-sich kantiano).

[pág. 88]

Mas até mesmo a idéia de Unicidade do primordial é, em última análise, apenas uma metáfora — referindo-se retroativamente a um termo inconcebível,

além de todos os pares de opostos, como o Uno e o Múltiplo, masculinidade e feminilidade, existência e não-existência.