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Mitologias de Engajamento e Desprendimento

Duas funções contrastantes do símbolo religioso podem ser agora mencionadas. A primeira é a da referência e engajamento; a segunda, de desprendimento, êxtase e metamorfose. A primeira é exemplificada pela mandala social da cidade-estado hierática, que engaja todos os membros em um contexto de significado experimentado, relacionando-o como parte de um todo. Um exemplo equivalente seria a mandala medieval da Igreja Militante, Sofredora e Triunfante. A significação, ou fundamento final, de tal símbolo é inegável. Tal como a obra de arte bem-sucedida, ela constitui um fim em si mesma, comunicando à mente que a contempla uma noção de felicidade e à vida dela participante um sentido de significado. Como disse o Dr. Jung, o símbolo, em contraste com o sinal, é "a melhor designação ou fórmula possível para algo relativamente desconhecido, mas, ainda assim, reconhecido como presente ou necessário".72 Quando, portanto, o

       

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símbolo está funcionando no engajamento, as faculdades cognitivas são mantidas fascinadas e aprisionadas pelo próprio símbolo e, portanto, são simultaneamente informadas por ele e protegidas do desconhecido. Mas quando funciona no caso do desprendimento, do êxtase e da metamorfose, o símbolo se torna uma catapulta, a ser deixado para trás. Encontramos um esclarecedor exemplo do símbolo funcionando dessa maneira no Mundaka Upanishad:

A sílaba AUM é o arco; a flecha é a alma:

Diz-se que Brahman é o alvo. Concentrado (meditando sobre AUM), o homem deve atingir o alvo. E tornar-se uno com ele, como uma flecha.73

O ritmo do tambor do xamã é a sílaba AUM, e seu transe o vôo de ave da flecha emplumada. Sua mente, desligada da proteção do símbolo, deve ir diretamente ao encontro do mysterium tremendum do desconhecido.

O desconhecido, no entanto, é de dois tipos. Há (1) o relativamente desconhecido e (2) o absolutamente incognoscível. Pode-se dizer que o relativamente desconhecido é representado, psicologicamente, pelo conteúdo do inconsciente; sociologicamente, pela dinâmica da história; e cosmologicamente, pelas forças do universo. Este é o desconhecido ao qual referência é feita pelo termo paroksa, já discutido,h que significa "além ou mais alto do que o alcance do olho". As referências de um vocabulário paroksa não são imediatamente perceptíveis à consciência de vigília. Diz-se que elas são adhidaivata, "angélicas", ou "divinas". São percebidas por santos e sábios em suas visões e, por isso, se diz que pertencem ao campo do "sonho". No mundo moderno, porém, viemos a falar e a pensar nessas coisas de um modo muito diferente do empregado pelos sábios do passado. Aquino teve razão quando sustentou que as Escrituras deviam ser julgadas verdadeiras nos níveis físico e espiritual. No momento em que foram escritas, eram julgadas fisicamente

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verdadeiras e sua verdade espiritual era inerente ao mundo físico que

       

73 Mundaka Upanisad

s 2.2.4.

descreviam. Hoje, esse mundo físico desapareceu, substituído por outro: correlativamente, desapareceu também esse mundo espiritual e outro assumiu, ou está assumindo, seu lugar. Mas nenhum sistema vivo de símbolos que funcione no caso do engajamento pode sobreviver quando perde contato com os mundos consciente e inconsciente concretos de sua sociedade — quando suas referências ao campo da consciência de vigília foram refutadas e seus avisos aos pontos de origem da motivação não são mais recebidos. Tal como os sinais que se referem ao conhecido, os símbolos que se referem ao relativamente desconhecido são funções dos conhecimentos da época.

Mas há outro grau ou categoria do desconhecido, que se pensa que está além até das mais altas referências do vocabulário paroksa, místico, esotérico, "espiritual" ou "angélico". "O Tao que pode ser nomeado não é o verdadeiro Tao", escreveu Lao-tzé no início de seu Tao Te Ching. 74 "Porque", escreveu Aquino, "porque só conhecemos Deus realmente quando acreditamos que ele está muito acima de tudo que o homem pode possivelmente pensar de Deus."75 E ouvimos nas palavras do Kena Upanishad:

E outro, na verdade, que não o conhecido E, além do mais, acima do desconhecido.76

Esta é a categoria ou grau do desconhecido às quais, em última análise, visam todas as grandes mitologias e as grandes religiões. Ela é reconhecida, contudo, como absolutamente inexprimível, um plenum de incognoscibilidade, inesgotável em sua escuridão, e em relação a ela, duas atitudes foram adotadas. A primeira é a de terror absoluto, submissão ou, como dizemos, religiosidade. O homem não tenta penetrar no segredo, porque isso seria hybris: permanece com seu símbolo, como o único meio possível de relação. Este é o caso da Igreja Sofredora, Militante e Triunfante. A segunda atitude, porém, é a do místico, cuja alma se torna uma flecha e, neste caso, o símbolo funciona apenas no caso do desprendimento.

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74 Tao Te Ching,1.

75 São Tomás de Aquino, Summa contra Gentiles, Cap. V. 76 Kena Upanisad, 1.3.

O termo sânscrito é moksa, "libertação". E ao passo que o símbolo que funciona no caso do engajamento tem que permanecer convincente em todos os níveis da referência física e espiritual, no caso do desprendimento não tem que se referir a nenhuma das duas. Sua função é simplesmente a de impulsionar a alma.

"Antes de começar a xamanizar", contou o velho xamã do Tungus acima mencionado, "fiquei de cama durante um ano inteiro. Tornei-me xamã aos 15 anos. A doença que me obrigou a tornar-me xamã tomou a forma de inchação do corpo e desmaios freqüentes.i Quando eu começava a cantar, a doença geralmente desaparecia." Em seguida, falou das visões que teve no período de doença. "Meus ancestrais me apareceram e começaram a xamanizar. Puseram- me de pé como se eu fosse um bloco de madeira e atiraram em mim com seus arcos até que perdi os sentidos. Retalharam minhas carnes, separaram os ossos e os contaram, e comeram crua a minha carne. Quando contaram meus ossos, descobriram que havia um em excesso. Se não tivesse havido o suficiente, eu nunca teria podido me tornar xamã. Enquanto eles realizavam esse rito, eu, durante um verão inteiro, nada comi ou bebi. No fim, os sacerdotes xamãs beberam o sangue de uma rena e me deram também um pouco para beber. Depois desses fatos, um xamã tem menos sangue e parece pálido."

"A mesma coisa acontece com todos os xamãs do Tungus", continuou o velho. "Só depois de seus ancestrais xamãs lhe cortarem o corpo dessa maneira e separarem os ossos é que ele pode começar a praticar."77

O arco do xamã do Tungus não tinha absolutamente o poder do arco do Mundaka Upanishad, porque enviava a flecha de sua alma só até a esfera de seus ancestrais no inconsciente, o relativamente desconhecido. Digna de nota nessa fantasia, contudo, é o traço paleolítico de não atribuir qualquer significação universal, cósmica, à visão individual. Os poderes espirituais encontrados foram os ancestrais do xamã, apenas, e a referência foi a si mesmo.

Mas como vimos no mito dos Apaches Jicarilla, essa orientação fortemente individualista tornou-se arcaica e perturbadora,

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i O menino índio americano Alce Negro teve sintomas semelhantes antes e durante sua experiência da "grande

visão". Cf., supra, p. 139. Os sintomas são descritos em Neihardt, op.cit., pp. 21-22.

tirânica e demoníaca, logo que se completou a organização neolítica do universo, em volta de um único centro de poder. Temos agora, por conseguinte, de tentar desenvolver nossa idéia sobre o símbolo funcionando no caso do desprendimento, sob a limitação dessa ressalva — isto é, dentro do universo da própria mandala. E proponho-me a fazer isso através de uma descrição curta — e necessariamente esquemática — da evolução dos ideais e atitudes do iogue asiático em relação à sociedade.

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