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1.5. A constituição da Antropologia acadêmica brasileira: novas imagens sobre os

1.5.1. Imagens do protagonismo indígena

Os tradicionais posicionamentos antropológicos, que constroem a imagem dos índios em contato com a sociedade de não-índios como elementos “submissos”, “aculturados” e, consequentemente, fadados à depopulação e à extinção, recentemente têm sido contrariados por proposições de produções acadêmicas que versam sobre o protagonismo e a resistência indígena contra o histórico processo de exploração e dominação oriundo do contato.

Neste sentido, trabalhos como os publicados por Carneiro da Cunha (1992), Dantas, Sampaio e Carvalho (1992), Monteiro (1992), Oliveira (1998), Ferreira (2009) e Almeida (2010), procuram sensibilizar a atenção dos leitores para a participação ativa dos indígenas em eventos sócio-históricos nacionais, em que suas ações visam, sobretudo, atender aos seus interesses particulares e aos interesses coletivos dos respectivos grupos aos quais pertencem.

Carneiro da Cunha, em sua introdução à História dos índios no Brasil, atesta que os índios foram atores importantes de sua própria história, pois, nos interstícios da política indigenista, vislumbra-se algo do que foi a política indígena. Assim, observa ainda a autora que, por exemplo, “os Tamoio e os Tupiniquins tinham seus próprios motivos para se aliarem aos franceses ou aos portugueses. [...] no século XVII, grupos Conibó (Pano) querem aliados

espanhóis (missionários) para contestar o monopólio piro (arawak) das rotas comerciais com os Andes.” (CARNEIRO DA CUNHA, 1992, p. 18).

Na perspectiva das obras antropológicas sobre o protagonismo, os próprios indígenas são porta-vozes de sua história, elaborando narrativas em que se enfatizam os seus pontos de vista particulares acerca de determinadas experiências, até então percebidas apenas sob lentes etnocêntricas. Neste particular, “a etno-história do contato é [...] contada como uma iniciativa que partia dos índios ou até como uma empresa de “pacificação dos brancos”. (CARNEIRO DA CUNHA, 1992, p. 19).

Dantas, Sampaio e Carvalho abordam o protagonismo e agência, tomando como exemplos os casos das reações dos membros de alguns grupos indígenas do Nordeste brasileiro ao contato em diversas situações históricas específicas. Os índios desta região do Brasil estavam, geralmente, presentes em revoltas armadas como, por exemplo, a conhecida “Guerra dos Bárbaros” de 1687, reação ao movimento expansionista dos portugueses sobre as terras indígenas após a vitória sobre os holandeses e que só se encerraria no início do século XVIII. Eles marcavam ainda a sua atuação por meio de estratégias de cunho político, como nas recorrentes demandas que pleiteavam diante das autoridades, no sentido de que se cumprissem as leis, principalmente, aquelas que diziam respeito à posse de suas terras (DANTAS; SAMPAIO; CARVALHO, 1992).

Assim, entendemos que

Ao longo de todo o reinado de Pedro II cristalizou-se no imaginário dos índios a figura quase messiânica do imperador, a quem a tradição oral de muitos grupos atuais do Nordeste atribui a doação das terras que hoje habitam (CARVALHO, 1984; DANTAS; DELLARI, 1980; MOTA, 1989; MOONEN, 1989 apud DANTAS; SAMPAIO; CARVALHO, 1998, p. 450). Invocando a “paternal proteção” e muitas vezes reportando-se às leis, os índios recorriam ao imperador mediante vários escritos, ou tentavam colocar de viva voz suas queixas e reivindicações. (DANTAS; SAMPAIO; CARVALHO, 1992, p. 450).

Neste particular, como afirma Lisboa (2011), a incorporação pelos índios do aparato legal, jurídico e burocrático do Estado brasileiro moderno, além de não representar uma intromissão ameaçadora em suas culturas, pois, ao contrário, os índios mostram que sabem usá-lo ao seu favor, seria decorrente da própria lógica interna desses grupos, em que o exterior e o diferente são indispensáveis para a permanente reinvenção do grupo e de sua identidade.

Ferreira examina a história da conquista colonial do Estado do Mato Grosso no século XIX e sua contrapartida, a resistência indígena, baseando-se nos relatos de militares e administradores que atuaram na região do Rio Paraguai e Pantanal, publicados na Revista do

IHGB. O que o autor pretende demonstrar é que a destruição das alianças indígenas

Guaicuru/Guana e o estabelecimento das alianças entre portugueses e indígenas foi fundamental para a construção do Estado-Nacional no Brasil (FERREIRA, 2009).

Através das fontes consultadas, Ferreira constata a existência de duas modalidades de estratégias políticas que envolviam as relações entre colonizadores e índios: a estratégia de dominação colonial, que reproduzia a lógica do “dividir para governar” e que demandava certo conhecimento das tradições culturais indígenas, bem como a manipulação dos conflitos e contradições internas de sua organização social, e as estratégias de resistência indígena, expressas, principalmente, através dos termos “soberba” e “instabilidade” do caráter indígena (FERREIRA, 2009).

Para exemplificar o tipo de discurso vinculado às estratégias de dominação colonial, baseadas no lema “dividir para governar”, em que se exploravam as dinâmicas das relações sociais e contradições entre os Guaicuru e Guana, apontava-se que

Procure-se persuadir por todos os modos e maneiras aos Guana das aldeias abandonadas, que devem tornar a elas, e à nossa amizade, fazendo-se lhes lembrar do que já sofreram da má fé e orgulho dos Guaicuru, e do motivo por que não se devem fiar neles, e cair em nossa indignação. [...] Desta sorte, semeando a divisão entre aqueles chefes, obteremos o meio mais seguro de chegar aos fins que melhor convêm às nossas circunstâncias (D’ALINCOURT, 1857 apud FERREIRA, 2009, p. 121).

Já os discursos administrativos que tratavam das estratégias de resistência indígena, observavam que a “soberba” dos Guaicuru indicava a sua posição dominante na região do interior do Mato Grosso e traduzia a auto-imagem que o grupo fazia de si mesmo. Além disso, ela evidenciava o contraste entre seus usos e costumes, emblemáticos do sistema autóctone e os padrões dos colonizadores, bem como as formas de poder e capacidade política desses índios, que combinavam modalidades de ação guerreira com táticas de resistência cotidiana para manter o seu poder e autonomia (FERREIRA, 2009, p. 126).

A instabilidade do caráter indígena, que se refletia na efemeridade das alianças com as potências coloniais e com os diversos grupos nativos, caracterizou mais uma das suas estratégias de resistência. Desta forma, entendemos que as relações dos colonialismos espanhol e português com os Guaicuru e demais índios oscilavam rapidamente da guerra à aliança política e comercial, de acordo com os interesses mais imediatos dos nativos. A guerra de resistência e revolta poderia ser movida pelos Guaicuru contra os espanhóis com o apoio dos portugueses ou contra os portugueses com o apoio dos espanhóis (FERREIRA, 2009, p. 120).

Oliveira analisa, através da observação das situações de contato entre índios e não- índios no Nordeste brasileiro, o processo de desintegração das identidades indígenas – “os índios misturados” - e o recente fenômeno da “etnogênese”, que nos últimos trinta anos, abrange tanto “a emergência de novas identidades como a reinvenção de etnias já reconhecidas.” (OLIVEIRA, 1998, p. 53).

Segundo as reflexões deste autor, nos últimos anos do século XIX, em decorrência do contato, já não se falava mais em povos e culturas indígenas no Nordeste. Destituídos de seus antigos territórios, os índios não eram mais reconhecidos como coletividades, porém, referidos individualmente como “remanescentes” ou “descendentes”. São os “índios

misturados de que falam as autoridades, a população regional e eles próprios, os registros de

suas festas e crenças sendo realizados sob o título de ‘tradições populares’.” (OLIVEIRA, 1998, p. 58, grifo do autor).

Neste particular, Oliveira observa a “territorialização” como o movimento pelo qual um objeto político-administrativo - como as comunidades indígenas brasileiras - vem a se transformar em uma coletividade organizada, estabelecendo uma identidade própria, instituindo mecanismos de tomada de decisão e de representação e reestruturando as suas formas culturais (OLIVEIRA, 1998, p. 56). A territorialização funcionaria como um instrumento “antiassimilacionista, criando condições supostamente naturais e adequadas de afirmação de uma cultura diferenciadora, e instaurando a população tutelada como um objeto demarcado cultural e territorialmente.” (OLIVEIRA, 1998, p. 58-59).

Para este autor, no recente processo de “emergência étnica”, cada comunidade indígena é imaginada, por exemplo, como uma unidade religiosa, que garante a unificação e permite criar as articulações internas para o exercício do poder.

Uma metáfora acionada por diversos grupos, em contextos variados, conecta as gerações do passado e do presente. Os antepassados seriam “os troncos velhos” e as gerações atuais “as pontas de rama”. Quando as cadeias genealógicas foram perdidas na memória e não há mais vínculos palpáveis com os antigos aldeamentos, as novas aldeias têm de apelar para os “encantados” para afastar-se da condição de “mistura” em que foram colocadas. Só assim podem reconstruir para si mesmas a relação com seus antepassados (o “tronco velho”), podendo [...] redescobrir-se enquanto “pontas de rama”. (OLIVEIRA, 1998, p. 61).

Portanto, no contexto contemporâneo, em conjunturas favoráveis, tanto do ponto de vista político – propiciado pelos movimentos indígenas e pelos direitos garantidos com a

Constituição de 198829 - quanto intelectual – propiciado pelas novas abordagens teóricas e conceituais da Antropologia e da História – inúmeros grupos indígenas reaparecem no cenário político e na história do Brasil (ALMEIDA, 2010). Desta forma, em imagens recentes (fig.9) é cada vez mais recorrente a presença de indígenas participando, por exemplo, de manifestações coletivas em defesa de seus direitos relacionados, entre outras demandas, às questões de propriedade da terra, saúde e educação.

Ao invés de desaparecerem, como era previsto por posicionamentos teóricos pessimistas, os grupos indígenas de hoje crescem e se fortalecem politicamente, exercendo importante influência sobre os estudos acadêmicos. Os próprios índios entram nas universidades e produzem conhecimentos sobre suas culturas e histórias. Saem dos bastidores e, paulatinamente, vão conquistando espaços no palco da história nacional (ALMEIDA, 2010, p. 160).