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Nesta seção da pesquisa, refletimos sobre a evolução, nas últimas duas décadas, das leis educacionais de natureza étnico-racial, que culminou na instituição da Lei 11.645/08, e suas implicações político-pedagógicas no âmbito do ensino-aprendizagem para a diversidade cultural, em particular, a indígena.

As políticas educacionais brasileiras, nas duas últimas décadas, proporcionaram avanços significativos no que diz respeito às proposições legislativas para a garantia do respeito e da valorização da diversidade étnico-cultural no interior das instituições de ensino do país.

Os progressos observados na legislação educacional para a diversidade, cujas prescrições reverberam, como veremos adiante, nos textos oficiais de diretrizes curriculares, são o resultado das reivindicações dos movimentos sociais indígenas, que, apoiadas por Universidades, Organizações Não Governamentais, setores da igreja Evangélica e Católica afinados com disposições transformadoras, além dos movimentos sociais negros, intensificaram-se a partir do processo de redemocratização do Brasil.

As lideranças dos movimentos étnico-raciais buscaram refletir criticamente sobre a tese culturalista do sociólogo pernambucano Gilberto Freyre, que com a publicação de Casa

como seu modelo de sociedade brasileira. Freyre fazia da mestiçagem uma questão ao mesmo tempo nacional, distintiva e idílica (SCHWARCZ, 1999, p. 276).

Porém, apesar de destacar as trocas e assimilações culturais que marcariam o caráter mestiço do Brasil, Freyre vislumbrou uma síntese da personalidade portuguesa, que predominava sobre a contribuição das culturas negra e indígena. Neste sentido, evidenciou-se uma hierarquização dos grupos e de suas diferentes contribuições, que desembocou na defesa da tese do constante branqueamento cultural e biológico da nação brasileira. Isto fez com que o trabalho de Freyre carregasse o que muitos críticos passaram a considerar como o mito da democracia racial (SCHWARCZ, 1999, p. 278).

No caso dos movimentos sociais, tanto negros quanto indígenas, surge a crítica a esta concepção de “democracia racial” existente no Brasil, que apontava para a ideia de “povo” brasileiro miscigenado e harmonioso, argumentando contra ela que a mesma obscurecia a percepção de que as relações sociais no país eram hierarquizadas e racializadas. Neste sentido, o debate se ampliou publicamente e os marcadores de diferença étnico-raciais foram utilizados como instrumentos para a definição de políticas públicas e aquisição de direitos.

Superando ao mesmo tempo todos os contornos atribuídos ao termo ao longo do século XX – das teses de extração biológica, da virada do século XIX para o XX, à democracia racial, passando pelas perspectivas das reminiscências da escravidão – etnia e raça passam, então, a significar um locus de direitos, um espaço de politização do discurso racial, agora, reatualizado pelos movimentos sociais que tendem a influenciar decisões políticas sobre os rumos do país. Esta efervescência e mudança do pensamento social brasileiro tornam raça e etnia – além do gênero – dimensões relevantes para a sociedade com importantes impactos sobre as políticas públicas, com especial atenção para as educacionais. (SILVÉRIO; VIEIRA, 2010, p. 4-5).

Os movimentos negros e indígenas têm priorizado, entre outras agendas de reivindicações, o embate político na área educacional pela defesa da autonomia, respeito e recuperação da autoestima cultural de seus povos. Com este intuito, é que foram alcançados alguns direitos que perpassam desde a Constituição Federal de 198830, até as legislações educacionais, tais como: a Lei 9.394/96, que implantou as Diretrizes e Bases da Educação Nacional (LDB)31, a Lei 10.639/0332 e a Lei 11.645/0833.

30 OLIVEIRA, Cláudio Brandão de. (Org.). Constituição da República Federativa do Brasil. Rio de Janeiro: Roma Victor, 2002.

31 BRASIL. Presidência da República. Lei nº 9394, de 20 de dezembro de 1996. Dispõe sobre o estabelecimento das diretrizes e bases da educação nacional. Diário Oficial [da] República Federativa do Brasil, Brasília, DF, 20 de dezembro de 1996.

A Constituição do Brasil, no seu artigo 242, inciso primeiro, estabelece que “o ensino da História do Brasil levará em conta as contribuições das diferentes culturas e etnias para a formação do povo brasileiro.” O artigo 26, inciso quarto, da LDB, determina que “O ensino da História do Brasil levará em conta as contribuições das diferentes culturas e etnias para a formação do povo brasileiro, especialmente das matrizes indígena, africana e europeia.” Já a Lei 10.639/03, artigo 26-A, inciso primeiro, torna obrigatório o ensino sobre História e Cultura Afro-Brasileira. Finalmente, a Lei 11.645/08, modificou a Lei 10.639/03, em seu artigo 26-A, para incluir a obrigatoriedade do ensino de História e Cultura indígena.

Já nos Parâmetros Curriculares Nacionais (PCNs), dos anos 1990, há significativos avanços quanto ao reconhecimento da diversidade sócio-cultural brasileira.34 Num de seus objetivos centrais, os PCNs postulam a necessidade do aluno

[...] conhecer e respeitar o modo de vida de diferentes grupos, em diversos tempos e espaços, em suas manifestações culturais, econômicas, políticas e sociais, reconhecendo semelhanças e diferenças entre eles, continuidades e descontinuidades, conflitos e contradições sociais. (BRASIL, 1998, p. 43).

Nos PCNs há ainda a percepção de que tratar a temática da pluralidade cultural nas escolas é colaborar para o combate à discriminação e ao preconceito “em suas mais perversas manifestações” (BRASIL, 1997, p. 24) e contribuir também para a “construção da cidadania na sociedade pluriétnica e pluricultural”. (BRASIL, 1997, p. 59).

Neste sentido, sobre os índios brasileiros e a necessidade de valorização e reconhecimento das suas histórias e culturas nas escolas, os PCNs priorizam que “Tratar da presença indígena, desde tempos imemoriais em território nacional, é valorizar sua presença e reafirmar seus direitos como povos nativos, como tratado na Constituição de 1988.” Este documento aponta, também, que “É preciso explicitar sua ampla e variada diversidade, de forma a corrigir uma visão deturpada que homogeneíza as sociedades indígenas como se

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BRASIL. Conselho Nacional de Educação. Diretrizes Curriculares Nacionais para a Educação das Relações Étnico-Raciais e para o Ensino de História e Cultura Afro-Brasileira e Africana. Diário Oficial [da] República Federativa do Brasil, Brasília, DF, 22 de junho de 2004.

33 BRASIL, Presidência da República. Lei nº 11.645, de 10 de março de 2008. Dispõe sobre a obrigatoriedade dos estudos de história e cultura afro-brasileira e indígena nos estabelecimentos de Ensino Fundamental e de Ensino Médio, públicos e privados, no Brasil. Diário Oficial [da] República Federativa do Brasil, Brasília, DF, 11 mar. 2008.

34 Durante a década de 1990, o processo de elaboração e publicação dos PCNs pode ser observado como resultado dos debates educacionais do período, cujos argumentos convergiam no sentido de se considerar a educação escolar como meio imprescindível para a efetivação dos ideais de cidadania e, no interior de um contexto neoliberal, como principal fonte de formação intelectual para os jovens que pretendessem ingressar no tão competitivo mercado de trabalho. Os PCNs foram elaborados, procurando-se respeitar as diversidades regionais, culturais e políticas existentes no país, considerando a necessidade de se construir referências comuns ao processo educativo em todas as regiões brasileiras (BRASIL, 1998).

fossem um único grupo, pela justaposição aleatória de traços retirados de diversas etnias.” (BRASIL, 1997, p. 29).

Em termos gerais, leis, como as acima referenciadas, visam instaurar políticas de ações afirmativas35 para a reparação de injustiças, desigualdades sociais e raciais, e a eliminação de discriminações e preconceitos historicamente cometidos contra os negros e índios no Brasil. Em seus conteúdos, percebemos a existência de prescrições que orientam modificações nos currículos escolares para a contemplação igualitária e mais justa de suas culturas em ambiente escolar.

Para os fins desta pesquisa, que aborda as formas de constituição das imagens sobre indígenas nos livros didáticos de História, faz-se necessário debruçarmo-nos sobre as modalidades de prescrições acima mencionadas. Isso, pois, acreditamos que elas possuem enorme capacidade de ingerência sobre as formas de tratamento dispensadas às histórias e culturas dos índios tanto nas propostas pedagógicas das instituições de ensino como sobre a elaboração editorial de livros didáticos.

As apreciações das histórias e culturas indígenas em escolas de não-índios são objeto de reflexão entre membros de movimentos indígenas no Brasil. Neste sentido, o Conselho de Professores Indígenas da Amazônia (COPIAM), através de sua “Declaração de Princípios”, deliberou que “Nas escolas de não-índios será corretamente tratada e veiculada a história e cultura dos povos indígenas brasileiros, a fim de acabar com os preconceitos e racismo.” (LUCIANO, 2006, p. 144).

Em meio a estes debates e motivados pelas repercussões sociais das leis de educação para a diversidade, principalmente as da Lei 10.639/03 e as da Lei 11.645/08, a atenção dos pesquisadores volta-se para questões fundamentais acerca, por exemplo, dos impactos gerados sobre as práticas pedagógicas cotidianas (DIAS, 2011; SANTIAGO; AKKARI, 2010; TASSINARI; GOBBI, 2008), as dificuldades de aplicação das proposições legais por meio de projetos escolares (SANTOS, 2007) e de conteúdos dos livros didáticos (SILVA, 2007), além daqueles que se ocupam em apresentar subsídios teórico-pedagógicos para o trabalho com a temática da diversidade cultural em sala de aula (SANTOS; COSTA, 2007; COSTA, 2009; TEXEIRA; CARVALHO; SILVA, 2010; SALES; SALES, 2011).

Os resultados de pesquisas acadêmicas como as acima referenciadas demonstram, por exemplo, que é reduzido o comprometimento de algumas instituições de ensino, no sentido de se desenvolver e aplicar projetos pedagógicos para o trabalho com a temática da história e

35 Entendemos políticas de ações afirmativas como “conjuntos de ações políticas dirigidas à correção de desigualdades raciais e sociais, orientadas para a oferta de tratamento diferenciado com vistas a corrigir desvantagens e marginalização criadas e mantidas por estrutura social excludente e discriminatória.” (BRASIL, 2004, p. 12).

cultura afro-brasileira e indígena. Nelas persistem um isolamento pedagógico, refletindo-se na ausência de discussões e planejamentos coletivos, que se apresenta como problema notório para a implementação de políticas públicas e de práticas interculturais no cotidiano escolar (SANTIAGO; AKKARI, 2010, p. 12).

Diante deste quadro, há estudos que assumem a função de fornecedores de auxílios teórico-pedagógicos para a realização de atividades que priorizem a abordagem efetiva das temáticas étnico-raciais nas escolas de Ensino Básico. Esses subsídios envolvem desde sugestões, por meio de relatos de experiências bem-sucedidas, para o desenvolvimento de ações educativas que se utilizam dos museus como espaços de conhecimento e valorização da diversidade sócio-cultural indígena (TEIXEIRA; CARVALHO; SILVA, 2010), a observação das festas populares de origem africana e indígena como recurso de ensino-aprendizagem escolar (COSTA, 2009), além de propostas de cunho epistemológico, que apresentam posicionamentos inovadores sobre as histórias e culturas indígenas, no intuito de reelaborar e modificar as tradicionais imagens cristalizadas e caricaturadas que lhes são atribuídas (SALES; SALES, 2011).

Portanto, concluímos que ainda existe um hiato entre as proposições de respeito e valorização da diversidade sócio-cultural indígena presentes nas legislações educacionais brasileiras e as práticas de ensino-aprendizagem escolar. A efetivação satisfatória das prescrições destes dispositivos legais nos estabelecimentos de ensino parece demandar um maior lapso temporal, suficiente para a adequação e adaptação das instituições escolares às novas exigências pedagógicas deles advindas, proporcionadas, principalmente, pela formação continuada dos professores e gestores e pela posterior produção de projetos político- pedagógicos que contemplem as recentes exigências jurídicas para a educação das relações étnico-raciais.