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1.1. Visões dos estrangeiros: cronistas, viajantes e missionários religiosos

1.1.2. Os índios na visão dos missionários religiosos

Várias foram as imagens sobre os índios construídas pelos missionários religiosos europeus em solo americano, tendo sempre em vista o desenvolvimento e efetivação satisfatória das atividades de conversão do “gentio” nativo ao cristianismo. Desta forma, como veremos mais adiante, os missionários associaram aos indígenas figuras de animais ferozes e selvagens, contrários à “domesticação”, de rebentos de pomares que não geravam bons frutos, de indivíduos luxuriosos, crianças que necessitavam da sua proteção paternal, e, posteriormente, de súditos cristãos e das monarquias metropolitanas, além de camponeses rústicos europeus.

Os jesuítas buscavam legitimar as suas empresas de conversão do índio brasileiro ao cristianismo por meio da utilização de metáforas. Dentro deste esquema, os indígenas assumiam várias representações simbólicas, eram “ovelhas perdidas, uvas de uma vinha que não produz bons vinhos”, enquanto que os frades loiolanos eram vistos como os “bons pastores”, os “agricultores”, destinados ao bom cuidado delas. (ASSUNÇÃO, 2000, p. 130).

A associação da imagem dos índios aos animais tomava forma variada de acordo com o grau de resistência apresentado à ação missionária dos jesuítas. Desta maneira, as imagens de animais como os “tigres”, “lobos” e “leões” foram utilizadas para representar a força, a agressividade e antropofagia dos nativos brasileiros (ASSUNÇÃO, 2000, p. 138).

Os missionários religiosos europeus, imbuídos dos dogmas cristãos católicos, observavam os modos de vida dos indígenas da América por meio de pontos de vista exógenos, desvinculados dos universos particulares das culturas nativas, e, isso se revelava, principalmente, nas avaliações que realizavam de aspectos da sexualidade indígena.

A sexualidade indígena suscitou grande interesse entre os “gestores de almas”. Assim, eles consideravam insólitos os seus

[...] costumes matrimoniais, a poliginia associada ao prestígio guerreiro, o levirato, o avunculado – ou seja, o privilégio de casamento do tio materno sobre a filha da irmã – a liberdade pré-nupcial contrastando com o ciúme pela mulher casada e o rigor com o adultério, a hospitalidade sexual praticada com aliados mas também com os cativos. A iniciação sexual dos rapazes por mulheres mais velhas, os despreocupados casamentos e separações sucessivos [...]. Os jesuítas debruçar-se-ão com especial cuidado sobre estes costumes [...], e isto por uma razão prática: tratava-se de construir famílias cristãs com os neófitos indígenas. (CARNEIRO DA CUNHA, 1990, p. 13).

Nos aldeamentos amazônicos dos missionários portugueses do século XVIII, a ideia de um caráter infantil dos indígenas funcionava como metáfora para as ações pedagógico- catequéticas. Desta forma, os jesuítas incorporavam o título de “mestre de meninos” e justificavam a aplicação de métodos rigorosos para a doutrinação dos nativos, como os castigos, que serviam tanto de punição quanto de reforço à aprendizagem da catequese. Eles consideravam que “[...] a melhor persuasão para [os índios] chegarem à doutrina é a palmatória nos menores e a prática mais eficaz para irem à missa os adultos é o castigo [...].” (DANIEL, 1977, p. 202 apud QUADROS, 2011, p. 3).

Nos aldeamentos, os jesuítas denominavam os índios de “filhos”, e estes deviam tratar-lhes como “pais”. Os filhos deveriam servir aos padres (seus pais) que, por sua vez serviam ao Reino. Os religiosos representam o Rei, tanto o celeste quanto o terreno, diante dos índios, que se configurariam, neste aspecto, enquanto seus vassalos (DANIEL, 1976 apud QUADROS, 2011, p. 4).

Desenvolveu-se ainda, entre os missionários, a proposição de que o continente americano seria ao mesmo tempo selvagem e civilizado. O selvagem era representado pelos americanos: os naturais eram considerados os dispersos pelas florestas e ainda não submetidos ao jugo das ações missionárias de conversão; os civilizados eram os índios reduzidos e os europeus que lá habitavam. Assim, ao igualar os índios catequizados à população branca, o que se pretendia era ressaltar o papel utilitário das missões, que realmente estariam contribuindo para a expansão da civilização cristã e onde os nativos estariam sendo formados para vivenciarem-na adequadamente (GILIJ, 1992 apud QUADROS, 2011, p. 10).

Neste sentido, ainda na segunda metade do século XVIII, foram elaboradas imagens que evocam a ideia de “civilidade” pretendida para os índios reduzidos. Desta forma, na gravura (fig.4) inserida na obra Ensayo de Historia Americana (1780), de autoria do missionário jesuíta italiano Felipe Salvador Gilij (1721-1789), que atuou nos aldeamentos amazônicos, apesar de os indígenas surgirem em suposta cena de antropofagia, eles são representados com feições e traços de comportamento semelhantes aos dos homens europeus, como percebemos na descrição da imagem realizada a seguir:

Não fossem os pedaços claramente humanos sendo assados, a gravura poderia ser a representação de um piquenique na Europa. Os índios [...] apresentam-se vestidos, destacando-se o conjunto calça-camisa do “cozinheiro” [à direita] e os longos vestidos das mulheres [na extremidade superior esquerda]. A estranheza do ritual [antropofágico] é neutralizada pela incomum ausência da flora americana. Nenhum elemento fornece indicações do lugar onde ocorre a curiosa refeição. Aliás, esta nem parece

Figura 4 – Gravura inserida na obra Ensayo de Historia Americana (1780), de autoria do missionário jesuíta italiano Felipe Salvador Gilij (1721-1789).

Fonte: QUADROS, Eduardo Gusmão de. Luzes e sombras sobre a alma nativa: dois jesuítas expulsos da Amazônia. Disponível em:<http://www.ifch.unicamp.br/ihb/textos/gt48eduardo.pdf>. Acesso em: 10 set. 2011.

ocorrer. [...] Os personagens estão dispersos, distraídos, com as bocas fechadas. O “cozinheiro” oferece uma perna, mas ninguém lhe presta atenção. O índio que está sentado assemelha-se a um filósofo refletindo. O ar helênico da figura é ainda reforçado pelo ramo de oliveira na orelha de dois homens. [...] A civilidade do ato dos selvagens é impressionante. (QUADROS, 2011, p. 13-14).

Os indígenas das missões foram comparados, pelos missionários religiosos, aos camponeses rústicos da Europa. Partindo desta concepção, os religiosos ao aproximarem os nativos da América ao povo rústico da Europa, executavam uma dupla operação intelectual: estabeleciam serem os índios humanos plenos e normais e conservavam o status de subalternos, carentes de educação, como os camponeses pobres, carência que poderia ser superada a partir dos trabalhos de catequese missionária (QUADROS, 2011, p. 11).