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Impacto do tráfico de pessoas e de órgãos humanos em Moçambique

2. AS NOVAS AMEAÇAS À SEGURANÇA INTERNA ASSOCIADAS AO COT

2.1. O tráfico de pessoas e de órgãos humanos: sua origem, circuito e impacto em Moçambique

2.1.2. Impacto do tráfico de pessoas e de órgãos humanos em Moçambique

Todas as pessoas almejam os direitos positivos que, segundo Espada, “implicam pretensões relativamente a determinados bens sociais, económicos e culturais, tais como, educação, segurança social,

165 Idem, p. 20. 166 Ibidem, p. 21. 167 Ibidem, pp. 22-23.

habitação, cuidados de saúde”, entre outros que permitem um bem-estar e uma vida decente. 168

Como foi dito antes, muitos casos de tráfico de pessoas obedecem a “equação procura e oferta”, sendo as mulheres, as meninas e as crianças as pessoas mais procuradas pelas redes de traficantes, e sendo apontadas como principais causas:169

 A instabilidade político-militar que “distorce e aumenta as condições de dificuldades e de insegurança e, cria condições vantajosas para o tráfico ilegal.

 As calamidades naturais (cheias, secas e estiagens prolongadas), que tornam as comunidades afectadas muito vulneráveis;

 O desemprego que envolve grande número de mulheres, daí a facilidade de cair nas redes de criminosos com promessas de emprego e vida melhor;

 Morte dos progenitores que faz com que crianças sejam chefes de família de outras crianças, sem condições para se sustentar;

 A procura de oportunidade de emprego, de escolaridade ou de bem-estar.

No geral, tal como referido acima, o tráfico de pessoas, obedece à equação “procura e oferta”. Os factores acabados de referir na sua generalidade são os mesmos que se associam aos outros que contribuem para a concretização dessa equação “procura e oferta.170

Assim:

São factores que contribuem para a procura

168 João Carlos Espada, “Direitos Sociais de Cidadania”, Lisboa, Imprensa Nacional e

Casa da Moeda, 1997, p. 18.

169 UNESCO, op. cit., p. 31. 170 Idem, pp. 32-33.

 A aparente adaptabilidade das mulheres para trabalharem nas actividades de mão-de-obra intensiva de produção e cultura no sector informal, que é caracterizado por salários muito baixos, emprego esporádico, condições perigosas de trabalho e a falta de mecanismos de negociação colectiva. Portanto, tendo em conta as carências, tornam-se vulneráveis, pelo facto de terem que aceitar as condições impostas, quando aparece uma aparente oportunidade de melhores condições, não têm como rejeitar;

 Nos países de destino a procura de estrangeiros, carenciados para os trabalhos domésticos e de prestação de cuidados é um factor que faz com as redes do tráfico de pessoas privilegiem as camadas mais vulneráveis. Tanto que em muitos casos verifica-se ausência de estruturas reguladoras adequadas para apoio nesta área;

 O crescimento da indústria do sexo e do entretenimento, que envolve muito dinheiro (na ordem de milhares de milhões de dólares), incentiva o tráfico de crianças e adolescentes de ambos os sexos;

 O tráfico de pessoas é encorajado não só por causa de ganhos, mas também pela impunidade dos seus autores, pois, por ser uma modalidade de COT que envolve muito dinheiro, conseguem corromper as autoridades públicas e de justiça, nunca chegam a ser punidos, alegando-se insuficiência de provas;

 A falta de informação ou de acesso a recurso ou apelo legal, por parte das vítimas, é um dos maiores problemas. Já se fez menção que a generalidade das vítimas de tráfico é constituída por pessoas com enormes carências, sem meios

para acompanhar o que acontece no seu próprio país e fora das fronteiras nacionais;

 A desvalorização dos direitos das mulheres e das crianças, pois, as vítimas do tráfico nem têm noção dos direitos que lhes assistem como pessoa humana, bem como a sua condição de mulher ou de criança, devido às mesmas razões indicadas no ponto anterior.

São factores que contribuem para a oferta

 O acesso diferenciado à educação e à formação profissional, que limita as oportunidades das mulheres e aumentam o seu rendimento, porque com melhores habilitações e especialização, conseguem melhores empregos e um status igual aos homens na sociedade;

 A falta de oportunidades de emprego que as mulheres nas comunidades rurais enfrentam;

 As políticas de emigração com diferenciação de género e políticas/leis muitas vezes instituídas como uma medida de “protecção” às mulheres, isso faz com que se limite a emigração legítima das mulheres, pois as oportunidades oferecidas são predominantemente, dominadas pelos homens, como são os trabalhos das áreas da construção civil, indústria mineira, entre outras. Isso condiciona para que qualquer oportunidade a mulher tenha que aceitar;  O menor acesso à informação no que respeita às

oportunidades de emigração ou de trabalho e, acima de tudo, uma falta mais notável de consciencialização sobre os riscos da emigração de mulheres em comparação com os homens.

Para além da equação “procura e oferta”, os altos lucros, os baixos riscos, as fronteiras facilmente penetráveis e a feminização da

emigração, são outras condicionantes importantíssimas para a efectivação do tráfico de pessoas, obedecendo às seguintes características:171

 A procura e oferta, porque “a globalização criou um mercado poderoso de procura de mão-de-obra barata e pouco especializada em sectores como a agricultura, processamento de alimentos, construção, serviços domésticos, manufactura com mão-de-obra intensiva, cuidados de saúde domiciliários, trabalho de sexo, entre outros”.

 Altos lucros, o tráfico de pessoas ocorre porque traz enormes lucros. As estimativas das Nações Unidas indicam que o tráfico só de mulheres e meninas, rende por ano entre sete e dez mil milhões de dólares. O fenómeno ocorre sem muitos sobressaltos porque “é mais fácil movimentar a mercadoria humana através das fronteiras do que a droga ou armas”. Os seres humanos são constantemente re- usados e re-traficados, o que não acontece com a droga. Por isso, o tráfico de pessoas é por definição um negócio complexo, clandestino e secreto. Mas acima de tudo, a cumplicidade das vítimas, torna difícil detectar-se que está- se perante o crime de tráfico de pessoas;

 Baixos riscos, “a própria natureza do tráfico é secreta e perigosa. As vítimas têm receio de retaliação por parte dos traficantes ou recriminação por parte das suas famílias e respectivas comunidades. Muitas vezes são as famílias e as comunidades que providenciam essa possibilidade de emprego das mulheres, no intuito de que com os ganhos ajudarão a suportar as despesas da família, não havendo

preferência do tipo de actividade, por isso têm medo do estigma da prostituição. Como resultado, poucas vítimas dão o seu testemunho contra os traficantes. O medo e a desconfiança na Polícia, a falta de documentação e o medo das vítimas serem consideradas cúmplices, também contribuem para manterem o silêncio. A maior parte das vítimas é pobre, analfabeta, provem de populações marginalizadas e, tal como foi referido atrás, são ignorantes com relação aos seus direitos. Por isso os traficantes exploram não só o corpo, mas também, as profundas inquietações e condições de vida desvantajosas das vítimas”;

 Fronteiras facilmente penetráveis, há uma tradição secular “de movimentação e emigração de moçambicanos para a vizinha África do Sul à procura de emprego ou melhores condições de vida, por isso, dá-se pouca importância ao fenómeno de tráfico de pessoas. Pressupõe-se que qualquer pessoa que é levada para África do Sul vai à procura de emprego;

 Feminização da emigração, durante muitos anos o movimento para a África do Sul à procura de emprego era feito somente por homens, enquanto as mulheres se dedicavam a cuidar da casa e dos filhos (essa prática ainda é comum nas zonas rurais). Assim, as poucas que têm acesso à informação, principalmente nas zonas urbanas e suburbanas, experimentam a procura de oportunidade juntamente com os homens, em muitos casos devido a falta de oportunidade de emprego no país.

Em todo o caso deve-se referir que o tráfico de pessoas é um problema bastante complexo, em muitos casos envolve famílias e

comunidade que almejam melhores condições e nunca imaginam ser algo que esteja relacionado ao mundo do crime. Foi referido acima que há um esforço das autoridades para criminalizar de forma exemplar os autores, tanto que para além da lei, o CP aprovado muito recentemente (2014) apresenta medidas severas. A tabela 4 abaixo ilustra casos de tráfico de pessoas ocorridos entre 2002 e 2008 conhecidos pelas autoridades, alguns com responsabilização dos implicados.

Tabela 4: Casos conhecidos de tráfico de pessoas em Moçambique entre 2002 e 2008

Período Local Relato(s)

2002

Zona Baixa da Cidade de

Maputo

A Polícia neutralizou um indivíduo que negociava a venda de seu primo menor de 11 anos com um cidadão sul-africano, ao preço de 150 mil meticais.

2003 Cidade de

Maputo

Dois indivíduos foram detidos por terem sido surpreendidos a venderem dois menores, no Bairro de Magoanine (Cidade de Maputo), ao preço de 30 mil meticais cada menor.

2004

Cidade de Lichinga, província de

Niassa

Um casal foi detido depois de frustrada a venda do filho de 8 anos por 25 mil meticais, no Bairro de Namacula, arredores da Cidade de Lichinga. 2004 Distrito de Nipepe, Província de Niassa

Um cidadão foi abordado e detido pela Polícia quando pretendia vender seu parente a um comerciante estrangeiro, recém instalado naquele distrito.

Distrito de

Foi detido pela Polícia um cidadão em conexão com a tentativa de venda de um menor de 5 anos de idade, filho de seu

2005

Dondo, Província de

Sofala

cunhado, ao preço de 30 mil meticais. A detenção foi graças à denúncia de um amigo do indiciado.

Cidade de Quelimane, Província da

Zambézia

Uma criança de 11 anos de idade escapou das mãos dos raptores nos arredores da Cidade de Quelimane. Os indiciados que depois ficaram detidos pela Polícia, pretendiam vender o menor por 150 mil meticais.

2008

Cidade de Maputo

Três meninas foram aliciadas por uma senhora (também moçambicana), com promessas de bom emprego e boa vida na África do Sul, onde depois eram exploradas sexualmente e cuja patroa era a raptora. Caso julgado pela justiça sul-africana, a raptora condenada à prisão perpétua (caso Diana). Cruzamento de Inchope, Distrito de Gondola, Província de Manica

Interpelado um veículo pesado de carga com 39 crianças, provenientes de Nampula, cujos destinos, segundo os transportadores, eram as Cidades de Maputo, Matola em Moçambique e a vizinha África do Sul, onde segundo eles, iam frequentar as escolas islâmicas.

Fonte: Carlos Serra, Tráfico de Menores em Moçambique, 2005, pp. 9-27. No seu artigo Serra apresenta casos de extracção de órgãos humanos para o tráfico ou para a prática de superstição.172 A tabela 5

abaixo, embora não faça referência à finalidade dos órgãos humanos extraídos, dá indicação das circunstâncias que estiveram em volta do acto praticado.

Tabela 5: Casos conhecidos de extracção de órgãos humanos e partes de

corpo em Moçambique

Período Local Relato(s)

2001 2001 Posto Administrativo de Bobole, Distrito de Marracuene, província de Maputo

Assassinato de um cidadão de 29 anos de idade, posteriormente extraídos a língua, o cérebro, os olhos e a orelha esquerda. A cabeça foi encontrada no Bairro da Maxaquene (arredores da cidade de Maputo), o resto do corpo encontrado próximo da sua residência. Há quatro indivíduos detidos em conexão com caso.

Cidade Portuária de Nacala-Porto,

Província de Nampula

5 Indivíduos confessaram perante a Polícia terem sido os autores do rapto, assassinato (à catana) e extracção de línguas de três crianças para posterior venda desses órgãos aos tripulantes de navios atracados no porto local. Os restos mortais dessas crianças foram encontrados numa mata, nos arredores da cidade de Nacala-Porto.

2001

Cidade de Nacala-Porto,

Província de Nampula

Assassinato de uma menor de 11 anos de idade e extracção dos órgãos genitais, língua e orelhas. Dois indivíduos detidos em conexão com o caso.

Desconhecidos aliciaram com roupa e dinheiro a um menor de 9 anos, raptaram-no, de seguida extraíram órgãos genitais (pénis

2003 Bairro 25 de Junho, Cidade de Chimoio, Província de Manica

e testículos), depois o abandonaram com vida. Foi socorrido e tratado no Hospital local, encontrando-se vivo. Os relatos dão indicação de ser o segundo caso que ocorre naquela cidade. No primeiro a vítima era também uma criança, mais tarde encontrada morta e sem o coração.

2004

Arredores da Cidade de

Nampula

Uma freira, religiosa brasileira do Mosteiro

Mater Dei, denunciou um sul-africano e sua

esposa dinamarquesa de serem traficantes de órgãos humanos, pois aliciavam crianças com ofertas e depois raptavam-nas. Os órgãos eram traficados para África do Sul e Brasil. Os indiciados não eram investigados porque tinham uma certa protecção. Contudo, apesar dos populares não acreditarem, o assunto chamou a atenção pelo desaparecimento misterioso de crianças em vários pontos da província de Nampula. Posto Administrativo de Muite, Distrito de Mecuburi, Província de Nampula

Seis indivíduos detidos em conexão com o assassinato de uma mulher de 39 anos de idade e sua filha de 3 meses e de seguida, extraídos os órgãos genitais de ambas. Os indiciados confessam o crime e dizem que teriam recebido 12 mil meticais de um mandante.

2004

Distrito de Nacaroa, Província de

Nampula

14 Indivíduos foram surpreendidos na posse de órgãos humanos, tais como braços, pernas, costelas e corações, cuja finalidade era “magia negra”, para se tornarem ricos.

2005

Cidade da Matola, Província de

Maputo

Desconhecidos assassinaram uma criança de 8 anos e extraíram o cérebro, o nariz, as orelhas, os lábios e a garganta no Bairro de Congolote.

Mossurize, sul da Província de

Manica

Dois irmãos foram surpreendidos quando após terem assassinato a sobrinha, extraíram o coração e os pulmões, que pretendiam vender por 3 milhões de meticais. O mandante nunca foi localizado.

2015

Distrito de Moma, Província de

Nampula

Quatro indivíduos raptaram um cidadão portador de albinismo, assassinaram-no e extraíram órgãos para o posterior tráfico, acto frustrado pela pronta intervenção das autoridades, depois de denúncias populares. Os envolvidos foram condenados a 40 anos. Fonte: Carlos Serra, op. cit., pp.9-27

Foi referido que levou muito tempo até que as autoridades aceitassem que o tráfico de pessoas era um facto que ocorria no país, principalmente quando, em 2008, se deram os dois casos referidos anteriormente, o caso “Diana”, que envolve três meninas traficadas para África do Sul para a exploração sexual, e o caso das trinta e nove crianças transportadas num camião. Estes casos, juntamente com as

notícias veiculadas pelos media, incentivaram a necessidade de criação de uma lei específica, já que o anterior CP não fazia menção à essa prática. Foi assim que se aprovou a Lei nº 6/2008, de 9 de Julho, com sanções severas como forma de desencorajar essa prática anti-social que afecta significativamente as famílias carenciadas.

Assim, para além do caso “Diana”, cuja autora cumpre pena de prisão perpétua, considera-se medida exemplar também a já referida anteriormente, aplicada pela justiça moçambicana, a condenação a 40 anos de prisão dos quatros indivíduos que raptaram, assassinaram e esquartejaram um cidadão portador de albinismo, que pretendiam traficar as partes do corpo para a vizinha Tanzânia.

Os raptos e assassinatos de albinos é um fenómeno associado ao tráfico de órgãos humanos, não para fins de medicina convencional (transplante), mas sim para a superstição, tal como foi referido na introdução. Os órgãos ou as partes do corpo são depois entregues aos mandantes em troca de dinheiro. Do mesmo modo, este tipo de crime violento, diferencia-se dos raptos a empresários, cuja finalidade é a obtenção de muito dinheiro, estando claro que é um fenómeno intimamente ligado ao branqueamento de capitais.

2.2. Tráfico de droga em Moçambique: origem, circuito e