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IMPEACHMENT: A MALDIÇÃO DE PAULO BROSSARD

Diego Werneck Arguelhes | Felipe Recondo1

A Comissão Especial do impeachment pode ser eleita por voto fecha- do? E com chapa avulsa? O presidente da Câmara, Eduardo Cunha, acertou ou errou ao rejeitar sumariamente o pedido de impeachment do vice-presidente Michel Temer? Cunha pode limitar o recebimento da denúncia do impeachment a fatos relativos a 2015?

As duas primeiras questões já foram respondidas pelo Supremo; as duas últimas, provavelmente estão em pauta nas próximas semanas. Além das dificuldades de respondê-las no mérito, todas elas escondem uma pergunta transversal e cada vez menos visível: o Supremo deveria mesmo tentar respondê-las, ou deveria apenas deixar que o Congresso as resolva?

Nas manifestações de ministros do Supremo no impeachment até aqui, especialmente quando tratavam de suas relações com o Congresso, o nome de Paulo Brossard surgiu em vários momentos. Brossard, ministro do Supremo entre 1989 e 1993 – após longa carreira política – sempre defendeu que, ao apreciar atos do Congresso, o Supremo deveria res- peitar claros limites constitucionais entre o terreno judicial e o funcio- namento interno do legislativo.

O ministro encarnava algo que há tempos deixou de existir no Supremo: um compromisso sistemático com a deferência à autonomia decisória das casas do Congresso. Por isso mesmo, na verdade, as referências que os ministros de hoje fazem ao ministro Brossard são, na maior parte, quase ficcionais. Seu nome é invocado para simbolizar moderação, em doses homeopáticas, nas relações entre juízes e legisladores: podemos intervir e com frequência intervimos na política, mas, quando pontualmente achamos melhor deixar o Congresso decidir, citamos Brossard.

Mas não era isso que o ministro defendia e praticava. Especificamente no caso do processo de impeachment, tema sobre o qual escreveu uma obra clássica no direito brasileiro, Brossard sempre foi claro: na nossa tradição, processar e julgar o presidente é tarefa exclusiva do Congresso, sem qualquer interferência do judiciário. Não porque seja uma questão política, e não jurídica, nem porque seja um assunto interna corporis – 1 Artigo publicado no JOTA em 07 de abril de 2016.

IMPEACHMENT DE DILMA ROUSSEFF: ENTRE O CONGRESSO E O SUPREMO pois envolverá interpretação correta de normas constitucionais, e não apenas acordos políticos sobre normas regimentais. Mas, digamos, por uma decisão geográfica dos constituintes, que pegaram essa função tipicamente judicial e a colocaram nas mãos de um órgão legislativo. Com isso, segundo Brossard, o Supremo seria incompetente para intervir.

Foi a decisão política do constituinte, e não uma suposta “natureza” desse processo, que excluiu o Supremo do impeachment. Aqui, quem erra por último é o Congresso. Como disse Brossard em um dos MS de Collor, “ao falar-se na jurisdição do Senado, logo se alude a poder arbitrário e a decisões arbitrárias; parece que o Senado tem o monopólio do arbítrio e do erro; o fato é que, bem ou mal, a Constituição elegeu o Senado e nenhum outro órgão, nem mesmo o Supremo Tribunal Federal, para processar e julgar determinados comportamentos de de- terminadas autoridades”. São ideias radicais, mas foram testadas na expe- riência, na prática parlamentar e judicial. Como ministro do Supremo, Brossard foi consistente com sua posição teórica quando precisou decidir o impeachment de Collor. Vencido, defendeu até o fim que o Congresso deveria resolver internamente os problemas levantados por Collor – mesmo quando discordava da interpretação dada pelos legisladores.

Foi como votou, por exemplo, no último dos mandados de segurança do caso Collor, quando, após renunciar ao cargo, pediu ao Supremo que anulasse sua condenação, pelo Senado, a oito anos de suspensão de direitos políticos. Para Collor, a Constituição só previa a suspensão de direitos políticos como efeito acessório da pena de perda do cargo; como já havia renunciado ao cargo, Collor não poderia ser mais removido e, portanto, não podia sofrer a perda de direitos políticos. Para o Senado, porém, e para a maioria dos ministros do Supremo, as duas penas são autônomas. A renúncia impedia que Collor fosse removido do cargo, mas ainda poderia sofrer a segunda pena e perder seus direitos políticos.

A posição de Brossard era completamente distinta das duas acima. Brossard concordava no mérito com a interpretação de Collor, e não com a da maioria de seus colegas de tribunal. Havia inclusive defendido essa interpretação em seus textos. Mas, antes e acima disso, discordava do próprio poder do tribunal de responder àquela questão. Sua con- vicção sobre o papel institucional do Supremo se sobrepunha à sua certeza quanto à interpretação da Constituição nesse caso: “o Senado […] consagrou um entendimento, que não é o meu, mas que tem o sufrágio de autores ilustres. Cuido que a doutrina vitoriosa no Senado não seja a melhor; isto não me autoriza, porém, a deferir o mandado de segurança pleiteado pelo ex-presidente”.

Portanto, já no caso Collor, em uma época de muito maior deferência judicial aos poderes políticos, o tribunal não seguiu Brossard. O que dizer do Supremo do impeachment de agora? Quando temos clareza quanto às suas ideias, o nome de Brossard não deveria funcionar como argumento de autoridade ou benção para o Supremo de hoje. Ao con- trário, ele aponta para uma maldição.

Na ADPF 387, o Supremo precisou responder se Cunha poderia ter realizado à eleição da Comissão Especial do impeachment por voto se- creto. O Min. Fachin entendeu que “sim”. O ministro Barroso divergiu e disse que “não”. O caminho brossardiano seria uma terceira opção, que não foi efetivamente articulada por nenhum ministro naquela decisão: o Supremo não tem uma resposta a dar aqui; a resposta cabe à própria Câmara.

A mesma lógica poderia ser aplicada a todas questões que ainda sur- girão nas próximas semanas. Sem dúvida, um Supremo completamen- te brossardiano seria impensável no atual processo de impeachment. Vivemos em uma época em que tribunais poderosos são parte do cenário político em qualquer democracia ocidental. Mesmo assim, seria possível tomar Brossard como um alerta quanto aos perigos da imoderada inter- venção judicial na política. Aqui, a maldição de Brossard se torna mais visível. Quanto mais o Supremo avança, mais difícil fica a sustentar e justificar uma posição de moderação. Cada vez mais chamado a inter- pretar alíneas, incisos, parágrafos e vírgulas do Regimento, o tribunal não poderá mais dizer, tão facilmente, que essa ou aquela questão deve ser resolvida pelo Congresso. Afinal, como justificar que o Supremo possa decidir uma questão regimental, mas não outra? Depois de intervir no processo como já fez, qualquer moderação futura poderá soar insincera.

O Supremo de hoje está em situação delicada. Nas próximas semanas, os ministros provavelmente serão provocados a responder: (i) se pode

impeachment por fato do mandato anterior, (ii) se a Comissão Especial

pode fazer referência a fatos que não estavam na inicial, e até (iii) se os áudios ilegalmente publicizados pelo juiz Moro podem integrar o conjunto probatório. Não são simples questões de procedimento. Impactam diretamente no mérito, e talvez alguns ministros comecem a se sentir desconfortáveis nessa posição.

Agora, porém, ficou mais difícil para o tribunal dizer “isso não é co- migo”. A imagem de moderação depende também de como as ações do tribunal são interpretadas. Um “isso não é comigo” agora, após tantos “deixa que eu decido”, corre o risco de ser lido mais como sinal de co-

IMPEACHMENT DE DILMA ROUSSEFF: ENTRE O CONGRESSO E O SUPREMO vardia ou ação estratégica, e cada vez menos como uma crença sincera nos limites do papel do tribunal. Brossard via longe em seu radicalismo. Sabia que entrar na política é uma rampa escorregadia.

Mas, afinal, porque é ruim para o Supremo entrar em todos esses conflitos no impeachment? O próprio Brossard responde, no julgamento do Mandado de Segurança 21.564: “Por mais trabalhadas que sejam as instituições, por não serem perfeitas, não chegam a impedir o erro, o excesso, o abuso, sempre possível, a despeito de todos os mecanismos engendrados pelos espíritos mais esclarecidos”.

Alguém terá que errar por último – e é importante, no caso, que seja o Congresso. Não só por separação de poderes, mas para preservar a integridade do Supremo. Quando o processo de impeachment chegar ao fim, qualquer que seja ele, uma retrospectiva será feita. A intervenção do Supremo terá interferido decisivamente no resultado? Terá contribuído para este ou aquele desfecho? O Supremo foi pró ou contra o impeach­

ment? Foi árbitro ou parte? São perguntas que a história vai responder.

Estarão os ministros preparados para ouvir as respostas? Para além de suas biografias, isso afetará a imagem da instituição. O Supremo é, ao mesmo tempo, guardião e produto da Constituição. Quem guardará por ele?

O VOTO DO IMPEACHMENT E