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Após a turbulenta fase de agenda setting, permeada por discussões e embates entre os diversos grupos de pressão, em 22 de outubro de 2013, foi promulgada a Lei 12.871, que instituiu formalmente a criação do PMM, embora a política pública em questão já estivesse sendo implementada desde o início do ano. As tratativas para a

27 Disponível em: <https://oglobo.globo.com/brasil/governo-faz-convenio-para-contratar-4-mil-medicos-

importação de médicos cubanos já eram noticiadas pela mídia28 desde abril de 2013,

demonstrando que nem sempre o processo de formação de políticas públicas reproduz o modelo trazido pela literatura29.

A Medida Provisória 621, de 8 de julho de 2013, deu início ao insólito caminho traçado pelo programa. Cabe ressaltar que o instituto legal da medida provisória é instrumento legislativo de caráter excepcional disponível ao chefe do Poder Executivo para ser manejado em casos que apresentem concomitantemente os requisitos de relevância e urgência. Seu uso para impor a iniciativa de um programa social sem a apreciação inicial do Poder Legislativo causou grande inconformidade junto aos parlamentares de ambas as casas.

Conforme noticiou a Folha de São Paulo30, a referida MP somente pôde ser

votada mediante a barganha entre a bancada governista, formada pelo Partido dos Trabalhadores (PT) e seus aliados e os partidos de oposição no sentido de aprovar a chamada minirreforma eleitoral. Após tensa negociação entre o PT e a oposição, os parlamentares aliados ao governo cederam à reforma da legislação eleitoral a fim de destrancarem a tramitação da análise da MP 621.

Nesse contexto, após a manobra legislativa pouco ortodoxa por parte da Presidência da República, a MP 621 foi aprovada, iniciando-se a implementação do PMM, que trouxe em seu bojo uma série de medidas que causaram grande impacto junto a diversos setores da sociedade. Grupos de interesse, como médicos e comunidade acadêmica, posicionaram-se contra dispositivos do diploma legal, dentre eles a dispensa do exame de revalidação de diploma para egressos de Institutos de Ensino Superior (IES) de outros países participantes do programa e o aumento em dois anos do curso de medicina, período no qual os estudantes prestariam serviço obrigatório dedicado à atividade de atenção básica familiar.

A abertura do primeiro edital do programa, em 8 de julho de 2013, contemplando vagas no interior do país, contou com pouca adesão dos médicos brasileiros. Houve a inscrição de 3.511 municípios no programa, totalizando 15.450

28 Disponível em: <https://oglobo.globo.com/brasil/dilma-assina-em-junho-decreto-para-contratar-

medicos-estrangeiros-para-trabalhar-no-interior-do-pais-8255153> Acesso em 18 out. 2017.

29 Teoria das fases das políticas públicas: Kingdon (2003), Capella (2006), Frey et alli (2000).

30 Disponível em: <http://acervo.folha.uol.com.br/resultados/buscade_talhada /?utf8=%E2%9C%93&

fsp=on&all_words=presidente+cede+a+minirreforma&phrase=&words=&without_words=&initial_date= 01%2F09%2F2013&final_date=30%2F10%2F2013&date%5Bday%5D=&date%5Bmonth%5D=&date %5Byear%5D=&group_id=0&theme_id=0&commit.x=13&commit.y=15&commit=Enviar> Acesso em 23 out. 2017.

vagas31. Pelos dados divulgados32, menos de 10% dos municípios carentes foram

atendidos. Isso demonstra em números o desinteresse da classe médica em desenvolver suas atividades em regiões pouco urbanizadas, ou afastadas das metrópoles.

Diante da situação, foi aberta nova convocação, visando o suprimento das vagas remanescentes com profissionais vindos de outros países. Esta contratação foi intermediada pela Organização Pan Americana de Saúde (OPAS), que formalizou tratativas junto ao Ministério da Saúde. De acordo com o sítio do Governo Federal33,

na primeira seleção, foram admitidos 1.096 profissionais com diplomas de IES do Brasil e 244 graduados no exterior, dentre eles, 99 de nacionalidade brasileira e 145 estrangeiros não-cubanos.

Os profissionais foram alocados em 516 municípios e 15 distritos sanitários indígenas. A segunda seleção foi aberta em 19 de agosto de 2013 para adesão de outros municípios bem como de médicos nacionais e estrangeiros (MINISTÉRIO DA SAÚDE, 2013).

Ainda no mês de julho de 2013, a Associação Médica Brasileira (AMB) ingressou, junto à Justiça Federal, com um requerimento para a anulação do Programa Mais Médicos. Como argumento, a AMB alegou a falta de urgência e relevância do programa e a ilegalidade do exercício da profissão por médicos estrangeiros sem a validação de diplomas. No mesmo período, a Federação Nacional dos Médicos (Fenam) também recorreu à Justiça para suspender a implementação do programa.

Indiferente às reações, o governo federal anunciou, em agosto do mesmo ano, a vinda de 400 médicos cubanos, que atuariam nas vagas remanescentes às duas primeiras etapas de contratação do programa. Posteriormente, em um terceiro ciclo, foi anunciada a contratação de mais 2 mil médicos cubanos para o mês de outubro de 2013.

Como já ressaltado, essa forma de contratação foi um dos pontos polêmicos da implementação do programa, gerando manifestações na mídia até culminar na

31 Disponível em: <http://www.brasil.gov.br/saude/2013/08/profissionais-estrangeiros-comecam-a-

chegar-ao-brasil-para-compor-equipes-do-mais-medicos> Acesso em 12 mar. 2017.

32 Programa Mais Médicos - 2 Anos – Ministério da Saúde, 2015. Disponível em:

<http://bvsms.saude.gov.br/bvs/publicacoes/programa_mais_medicos_dois_anos .pdf> Acesso em 15 ago. 2016.

33 Disponível em: <http://www.brasil.gov.br/saude/2013/08/profissionais-estrangeiros-comecam-a-

interferência do MPT. O órgão posicionou-se contra as condições de trabalho e a baixa remuneração dos médicos intercambistas através da interposição de Ação Civil Pública, em 27 de março de 2014. Conforme já visto, a ingerência do MPT resultou em sensíveis mudanças nas relações de trabalho celebradas entre o MS e os médicos intercambistas.

Em fevereiro de 2014, foi oportunizada a adesão ao PMM dos médicos participantes do Programa de Valorização da Atenção Básica (PROVAB). O PROVAB é um programa de fomento à atenção básica em localidades carentes, mediante a oferta de bolsas de estudos aos médicos egressos das IES. Os profissionais, que já atuavam em atividades voltadas para a atenção básica em municípios abrangidos pelo PMM tiveram a alternativa de ingressar no programa, desde que optassem pelas novas regras contratuais. O PROVAB ainda continua em vigor, com ampla participação de médicos e demais profissionais da saúde, em que pese seu planejamento esteja voltado para sua total encampação ao PMM34.

A contratação de médicos brasileiros diplomados no exterior também foi uma linha de ação adotada pelo PMM. O programa oportunizou o aproveitamento desses profissionais, que antes encontravam impeditivos legais para atuar no país. Todavia, a medida adotada pelo Ministério da Saúde, ao admiti-los sem a necessidade da prestação do exame nacional de revalidação do diploma (Revalida) causou reação imediata da comunidade acadêmica, que se aliou ao grupo antagônico, composto pelo Ministério Público, médicos e parlamentares da oposição.

Em setembro de 2014, foi autorizada a criação de 39 novos cursos de medicina em 11 estados brasileiros. No total, se efetivamente implantados, seriam ofertadas 2.290 vagas de graduação. Os municípios contemplados com os cursos não possuíam curso superior em sua área e não eram capitais de Estado, fatores que contribuíram para a interiorização do ensino da medicina (Programa Mais Médicos – 2 anos, 2015).

Nesse ínterim, em 10 de julho de 2015, os então ministros da Educação, Renato Janine Ribeiro, e da Saúde, Arthur Chioro, anunciaram novas instituições de ensino superior particulares que deveriam implantar cursos de medicina até o ano de 2016. Os estabelecimentos de ensino foram escolhidos em seleção realizada em três etapas.

A primeira fase, de caráter eliminatório, elencou as instituições que atendiam a pré-requisitos relativos à estabilidade financeira da administração, buscando as IES com capacidade econômico-financeira para ofertar curso de medicina. Essa etapa adotou metodologia desenvolvida pela Fundação Getúlio Vargas para a escolha das instituições (Programa Mais Médicos – 2 anos, 2015).

Na segunda etapa, foi analisado o know-how das universidades habilitadas através dos seguintes critérios: indicadores de qualidade das IES junto ao Ministério da Educação, índices alcançados por seus cursos da área de saúde, existência de residência médica ou pós-graduação stricto sensu e efetividade de processos de supervisão.

A fase final selecionou os projetos mais adequados, levando em consideração o projeto pedagógico proposto bem como o plano de infraestrutura da IES. Também fizeram parte dessa análise a estrutura para prestação de serviços na área da saúde, ações e programas de saúde existentes no município, e, finalmente, projetos de implantação de residência médica, bem como possível oferta de bolsas para alunos (Programa Mais Médicos – 2 anos, 2015).

A seleção das 39 cidades aptas a receberem os novos cursos de medicina deu- se em 2014 e, segundo o sítio do Ministério da Saúde, buscou atender a critérios que fomentassem a expansão do ensino da medicina em regiões críticas. Os municípios selecionados possuíam em torno de 70.000 habitantes ou mais, não contando com a graduação em medicina em sua área de atuação. As IES situavam-se em 11 estados de quatro regiões diferentes, em áreas interioranas ou compondo regiões metropolitanas. Os municípios selecionados à época foram:

Tabela 1: Cidades e vagas autorizadas para recebimento de médicos do PMM

UF Município Mantenedora

Vagas Autorizadas

RO Vilhena Associação Educacional de Rondônia 50

PA Tucuruí Não houve proposta 0

PE Jaboatão dos

Guararapes Sociedade de Educação do Vale do Ipojuca 100

BA Alagoinhas Sociedade de Ensino Superior Estácio de Sá 65

BA Eunápolis Pitágoras – Sistema de Educação Superior 55

BA Guanambi Sociedade Padrão de Educação Superior Ltda 60

BA Itabuna Instituto Educacional Santo Agostinho 85

BA Jacobina AGES Empreendimentos Educacionais Ltda 55

BA Juazeiro IREP – Sociedade de Ensino Superior, Médio e

Fundamental, Ltda 55

ES Cachoeiro do

Itapemirim

EMBRAE – Empresa Brasileira de Ensino e

Extensão Ltda 100

MG Passos Centro Educacional Hyarte - ML 50

MG Poços de Caldas Sociedade Mineira de Cultura 50

MG Sete Lagoas Centro Educacional Hyarte - ML 50

RJ Angra dos Reis Sociedade de Ensino Superior Estácio de Sá 55

RJ Três Rios Sociedade Universitária Para o Ensino Médico e

Assistencial 50

SP Araçatuba Missão Salesiana de Mato Grosso 65

SP Araras Sociedade Regional de Ensino e Saúde S/S Ltda 55

SP Bauru Associação Educacional Nove de Julho 100

SP Cubatão Instituto Superior de Educação Santa Cecília 50

SP Guarujá Associação Prudentina de Educação e Cultura –

APEC 55

SP Guarulhos Associação Educacional Nove de Julho 100

SP Jaú Associação Prudentina de Educação e Cultura –

APEC 55

SP Limeira Não houve proposta 0

SP Mauá Associação Educacional Nove de Julho 50

SP Osasco Associação Educacional Nove de Julho 70

SP Piracicaba Sociedade Educacional S/A 75

SP Rio Claro Sociedade Educacional S/A 55

SP São Bernardo do

Campo Associação Educacional Nove de Julho 100

SP São José dos Campos Sociedade Educacional S/A 100

PR Campo Mourão Centro Educacional Integrado 50

PR Guarapuava Campo Real Educacional S/A 55

PR Pato Branco Associação Patobranquense de Ensino Superior 50

PR Umuarama Associação Paranaense de Ensino e Cultura 60

SC Jaraguá do Sul Sociedade de Ensino Superior Estácio de Sá 50

RS Erechim Fundação Regional Integrada 55

RS Ijuí UNISEB – União dos Cursos Superiores SEB 50

RS Novo Hamburgo Associação Pró Ensino Superior de Novo

Hamburgo 60

RS São Leopoldo Não houve proposta vencedora 0

Fonte: Ministério da Saúde/Programa Mais Médicos, 2015.

Em face disso, em agosto de 2015, o Conselho Federal de Medicina ajuizou duas ações junto à Justiça Federal, em Brasília, pedindo o fechamento de cursos de medicina que, segundo sua análise, não possuíam condições de funcionar. As ações judiciais de obrigação de fazer traziam pedido de tutela antecipada contra o Ministério da Educação (MEC) e as IES. O CFM asseverou, no processo, que as IES estariam ofertando cursos de medicina sem apresentarem condições técnicas, deixando de observar a legislação específica. Nas palavras do presidente do CFM, Artur Vidal35

Estamos questionando o flagrante desrespeito às normas vigentes do próprio MEC, uma vez que não se pode admitir que sejam criados cursos sem a devida observância dos requisitos legais. São cidades que não possuem cinco leitos públicos para cada aluno e não respeitam o número máximo de três alunos para cada equipe de atenção básica, por exemplo.

35 Disponível em: <https://portal.cfm.org.br/index.php?option=com_content&view=article&id=25688:

Em que pese o mérito da questão, no qual alguns cursos efetivamente não correspondiam aos ditames legais propostos, questiona-se: se houvesse interesse da comunidade médica em fomentar o desenvolvimento tecnológico e aumentar o quantitativo de profissionais da área médica, notadamente, não existiriam soluções viáveis para a manutenção desses cursos? Ou ainda: os cursos de medicina já implantados, que funcionam regularmente há muitos anos, atendem integralmente os parâmetros previstos? Estudos técnicos revelam que não.

Prova disso é a avaliação anual de cursos realizada pelo Instituto Nacional de Estudos e Pesquisas Educacionais (INEP), divulgada no Diário Oficial da União em 18 de dezembro de 201436, a qual reprovou 27 cursos de medicina em pleno

funcionamento, os quais contavam com a chancela do CFM. A principal metodologia adotada pelo INEP no processo de qualificação das IES é o Conceito Preliminar de Curso (CPC). Trata-se de um indicador de qualidade aferido anualmente pelo INEP, levando em consideração o desempenho dos estudantes no Exame Nacional de Desempenho dos Estudantes (Enade), a formação do corpo docente e as condições de infraestrutura apresentadas pela IES, além de outros fatores.

Na avaliação quantitativa, as notas variam entre 1 a 5, sendo que 1 e 2 são consideradas avaliações insuficientes. Já no ano de 2013, cinco cursos de medicina de universidades federais haviam obtido conceito 237, a saber: Universidade Federal

do Pará (UFPA), Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS), Universidade Federal de Pelotas (Ufpel), Universidade Federal de Campina Grande (UFCG) e Universidade Federal de São João Del Rei (campus Divinópolis). No entanto, tal situação nunca foi alvo de atuação por parte do CFM.

Depreende-se, de todo o exposto, que há um tratamento diferenciado, parcial e inidôneo por parte do CFM com relação a criação de novos centros formadores, além de um boicote sistêmico das comunidades médica e acadêmica ao PMM. Hipóteses plausíveis para tal posicionamento seriam motivações ideológicas dos grupos de interesse em questão, ou, ainda, o desinteresse em aumentar a quantidade de oferta de mão de obra disponível no mercado de trabalho, visando manter a

36 Disponível em: <http://pesquisa.in.gov.br/imprensa/jsp/visualiza/index.jsp?data=18/12/2014&jornal=

1&pagina=23& total Arquivos=144> Acesso em 19 ago. 2017.

37 Disponível em: <http://download.inep.gov.br/educacao_superior/enade/relatorio_sintese/2013/

disparidade existente na relação oferta x procura para, assim, preservar a condição social privilegiada do médico na comunidade.