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CAPÍTULO 2 EXPERIÊNCIA RELIGIOSA INFANTIL

2.2 BRINCAR TORNA-SE MAIS IMAGINATIVO SEGUNDA INFÂNCIA

2.2.1 A importância do imaginário

Gaston Bachelard foi um dos primeiros a trazer a ideia da imaginação como primordial ao desenvolvimento humano.

Pretende-se sempre que a imaginação seja a faculdade de formar imagens. Ora, ela é antes a faculdade de deformar as imagens fornecidas pela percepção. É, sobretudo, a faculdade de libertar-nos das imagens primeiras, de mudar as imagens. Se não há mudança de imagens, união inesperada das imagens, não há imaginação, não há ação imaginante. Se uma imagem presente não faz pensar numa imagem ausente, se uma imagem ocasional não determina uma prodigalidade de imagens aberrantes, uma explosão de imagens, não há imaginação. Há percepção, lembrança de uma percepção, memória familiar, hábito das cores e das formas. O vocábulo fundamental que corresponde à imaginação não é imagem, mas imaginário. [...] Graças ao imaginário, a imaginação é essencialmente aberta, evasiva. É ela, no psiquismo humano, a própria experiência da abertura, a própria experiência da novidade (BACHELARD, 1990, p.1).

O imaginário infantil pode ser compreendido como um dos fatores construtores da personalidade da criança, afinal, a imaginação é a base para toda atividade criativa se manifestando em todos os aspectos da vida cultural.

A importância do trabalho criador (imaginativo) se verifica no desenvolvimento da criatividade infantil, na evolução e no amadurecimento da criança, pois no plano imaginário podem ser observados os desenvolvimentos cognitivos, pelo raciocínio estimulado, assim como a memória além de uma amplitude nas noções de valores morais. (VYGOTSKY, 1996, p.18).

A imaginação é um ingrediente fundamental do processo de conhecimento e é a peça das experiências criadoras. Nesse sentido, uma criança inovadora é capaz de imaginar mundos distintos, coisas diferentes, tendo a capacidade de transgredir a lógica do senso comum e de atrever-se a pensar de uma maneira nova de se enxergar e enxergar o mundo, captando melhor a realidade global pela referência do imaginário.

O imaginário diferencia-se da simples imaginação ou ilusão. Constituído e expresso por símbolos, é parte integrante do ser humano. Não se trata de uma transposição através de imagens de uma realidade externa, mas de uma construção interpretativa desta. A imagem que fazemos de um objeto, pessoa ou relação nunca é a coisa em si e sim uma faceta do que sabemos sobre essa exterioridade. Ela só existe para nós na medida em que a percebemos e interpretamos. O real é o fruto da interpretação dos humanos sobre a realidade exterior. O imaginário está comprometido com o real e não com a realidade. O imaginário é o espaço da liberdade, em que novas relações e interpretações são criadas a cada momento, transformando esse real já interpretado. [...] O imaginário não é delirante, pois possui princípios

de ação, racionalidade e causalidade coerentes. (GUERRIERO, 2000, p.99- 101 apud. NEISS, 2010, p.18).

Adam G. Oehlenschlager (1857, apud Papalia; Feldman, p.244) afirma que “as crianças vivem em um mundo de imaginação e sentimento [...] Elas aplicam a forma que lhes agrada ao objeto mais insignificante, e veem nele tudo o que desejam ver.” A criança, até aproximadamente os cinco anos de idade, não sabe distinguir a realidade da imaginação. Ela cria o amigo imaginário, dá vida aos objetos e aos brinquedos (animismo), age com os brinquedos como se eles possuíssem emoções ou comportamentos humanos. Para algumas crianças do Primeiro ano, ao relatarem a sua experiência com a Clelinha, nas atividades cotidianas ou nas brincadeiras, fica nítido o animismo. Podemos observar abaixo, os verbos grifados referentes à ação ou sentimento da boneca:

_ A Madre Clélia me viu patinando.

_ Ela ajudou quando eu estava arrumando o meu quarto.

_A visita de Madre Clélia em casa foi inesquecível. Oramos a ela, ela amou minha cama e os meus amigos de pelúcias e que também são amigos dela.

_Eu e Madre Clélia fomos passear no Parque da Água Branca. Lá

brincamos com meu amigo Pedro no trepa-trepa, vimos o sapo no lago e achamos

dois ovos de galinha. Voltamos, jantamos e fomos dormir.

Aprender a interpretar símbolos é uma tarefa essencial na infância, visto que em sua maioria, as pessoas adquirem conhecimento sobre seu mundo por meio dos símbolos, e através deles, há a possibilidade de se ter experiências que constroem a base para outros campos da vida humana, principalmente na sua dimensão psicossocial.

Portanto, conforme Papalia e Feldman (2013, p. 182) “as crianças devem tornar-se orientadas para o símbolo: atentas ao símbolo e às suas relações com as coisas que eles representam.” O símbolo da Clelinha é um sinal que permite a criança entrar em uma realidade invisível, ou seja, pela inteligência visível, a criança se conecta com a dimensão espiritual que é invisível, acreditando e confiando na proteção da representatividade da boneca: uma pessoa que viveu em grau de santidade. As crianças enxergam na figura da boneca algo não palpável, mas real.

O imaginário da experiência religiosa que o símbolo da Clelinha produz na imaginação da criança “contagia” a família ao entrar em contato com o divino que ela representa. Mircea Eliade (1992, p.12, grifo do autor) já dizia que “o sagrado

manifesta-se sempre como uma realidade inteiramente diferente das realidades naturais”.

As figuras 1 e 2 são de crianças do Infantil III. O relato que acompanha foi escrito por um de seus familiares, e ambos expressam a bênção e proteção que a presença de Madre Clélia traz em seus lares.

Fonte: Colégio Sagrado Coração de Jesus-SP

_ Madre Clélia chegou em nossa casa e deixou toda a família feliz. Ela passeou por todos os ambientes, foi comigo ao shopping e depois buscou o meu irmão numa festa sentada ao meu lado no carro. Quando voltamos para a casa, Madre Clélia sentou-se na minha cama e ouviu as nossas orações. Ela dormiu ao meu lado, perto da cama e me protegeu durante o sono. A visita da Madre Clélia abençoou a minha família e encheu nossa casa de luz. Obrigada, Madre Clélia!

Na figura 1, a criança desenha a Clelinha com raios ao redor de seu corpo. Este detalhe da luz destaca o desenho, como raios que saem da boneca. Na arte sacra, a luz aparece como elemento revelador de verdades humanas e divinas, a tudo que é superior e verdadeiro.

O relato da figura 2, mais que uma interpretação do desenho, representa a família que vivencia os benefícios da representatividade do sagrado na Clelinha ao ir peregrinar no seu lar, sendo interpretado como sinal da bênção divina para o empreendimento que estava sendo inaugurado no mesmo dia:

_ Assim que a mamãe viu a Madre Clélia achou ela linda demais, ficou contente com a sua visita. A vovó Rose não sabia quem era a Madre Clélia e a Rafa

teve que explicar pra ela. A Rafa mostrou pra todo mundo e ainda levou no novo restaurante do papai. Porque ontem foi a inauguração do restaurante e a Rafa desejou que a Madre Clélia desse a proteção ao lugar. Adoramos a passagem da Madre Clélia, ela é linda.

Figura 2 - Clelinha aclamada

Fonte: Colégio Sagrado Coração de Jesus-SP

No símbolo compreende-se o sentido do fenômeno. Percebe-se nitidamente como o fenômeno religioso se manifesta para o grupo de crianças que rogam, piedosamente, a uma boneca a proteção divina. Sem restrição de gênero, menino e menina estiveram com a Clelinha em suas atividades diárias durante os dias que a levaram para peregrinar em seus lares. Alexandre Vergínio Assunção, (2011, p.24) ao abordar o termo imaginário, refere que,

Não é apenas um termo que designa uma reunião de imagens incomuns, mas remete para uma esfera psíquica onde imagens adquirem forma e sentido devido a sua natureza simbólica. O imaginário não se desenvolve em torno de imagens livres, mas sim lhes impõe uma lógica, uma estruturação, que faz dele um mundo de representações. E esse mundo de representações é abastecido por imagens mentais que reproduzem o real (percepções) e por imagens que produzem/criam novas dimensões da realidade (lembranças, metáforas, alegorias, figuras, símbolos). Por causa disso, o estudo do imaginário permite elaborar uma lógica dinâmica de composições de imagens narrativas ou visuais, de acordo com as suas estruturas antropológicas(ASSUNÇÃO, 2011, p.24).

Foi diante de uma atividade realizada pela professora Juliana (professora regente de uma das turmas da Primeira série) que foi possível observar o imaginário de um de seus alunos se tornando palpável perante o luto. Já no final do último

trimestre, primeira semana de dezembro de 2016, a professora encaminhou para cada aluno uma ficha de avaliação com a seguinte introdução:

O terceiro trimestre está chegando ao fim! Vamos recordar algumas situações que vivenciamos neste período? Bolinhas de gude e álbum de figurinhas; curiosidade sobre o bioma: Floresta Amazônica; conhecimento da obra da autora Ruth Rocha, entre tantas outras aprendizagens. Agora, registre o que mais gostou de aprender neste trimestre. Capriche no desenho e escreva um pequeno texto justificando a sua escolha.

Conforme informações colhidas, de forma oral, a professora disse que na última reunião de pais foi realizada uma dinâmica com os que estavam presentes. Ao serem sorteados, eles deveriam explicar a importância desse registro da criança partilhando a caminhada dela no último trimestre. O nome do Gabriel (codnome da criança real) foi sorteado. Sua tia, a responsável pela criança, disse que no desenho ele está mostrando a visita da Clelinha na sua casa, sendo essa atividade a que mais gostou. Nessa atividade realizada pelo Gabriel, houve um contexto pessoal que ali se refletiu como uma “experiência de superação do luto”. O Gabriel foi transferido para o colégio pelo fato da sua mãe estar doente. A mãe, sabendo que a doença dela já estava em um quadro terminal, não tendo muito tempo de vida, pediu para a sua irmã ter a guarda do seu filho. Sendo assim, a tia matriculou seu sobrinho na mesma escola de sua filha. Poucos dias depois, o garoto ficou órfão. Desde então, todas as noites, para conseguir dormir, a tia precisava ir deitar-se com ele e ficar de mãos dadas até pegar no sono. Ao levar a Madre Clélia Peregrina para a sua casa, Gabriel disse à tia que não precisava ir deitar-se com ele, pois ele iria dormir com a Madre Clélia e estando com a Madre ele estaria com a sua mãe, pois as duas estão

juntas no céu. No desenho tem ele, a prima, o tio e a Clelinha. A representatividade

de estar na presença de Deus, lugar onde está Madre Clélia e a sua mãe, é uma pintura em vermelho no canto direito. Na visita aos ambientes sagrados do colégio foi ensinado que, para os católicos, a lâmpada vermelha acesa, dentro da Capela, significa que Deus está ali presente na espécie do pão – Eucaristia.

Narrado pela tia, conforme informações colhidas, o Gabriel vivenciou o luto de sua mãe por meses. A hora do repouso estava sendo o momento mais difícil para ele, pois só dormia com a tia segurando a sua mão.

Ele escreve: “Gostei de rezar para Madre Clélia porque lembro da minha mamãe que me ensinou a rezar”.

Figura 3 - Clelinha protetora

Fonte: Colégio Sagrado Coração de Jesus-SP

O significado religioso da Clelinha passou do imaginário para a experiência religiosa, recordando como aborda o início desse capítulo ao citar Larrosa (2004) que a experiência “passa”, “acontece”, “toca” a pessoa na sua particularidade afetando e transformando algo. Na compreensão do Gabriel estar com a Clelinha é o intermédio (que a sua imaginação permite vivenciar) de estar consecutivamente com a sua mãe, por ambas se encontram juntas no céu e com Deus.

A morte tem seus diferentes significados socioculturais, mas para a o Gabriel, o que parecia ter sido uma perda, um distanciamento, tornou-se uma possibilidade de reencontro. Durand aborda a morte perante a realidade e o imaginário, ou seja, a morte é certa para todos os vivos, e não há nada a fazer para impedi-la, no entanto, pela fé em um rito, a morte não tem seu poder, pela fé se alcança a imortalidade.

O fantástico imagina o veículo de velocidade infinita. Envelhecemos no tempo, e a morte espreita-nos: sabemo-lo, porque somos capazes de identificar-nos com os outros. No entanto, não haverá um remédio, a prece de um Xamã que nos salve da morte? O imaginário encontrará a armadura invisível, a proteção sobrenatural que torna imortais os que têm fé no rito mágico ou religioso (DURAND, 1999, p.134).

Diante do exemplo referente ao Gabriel, fica claro que imaginar é, portanto, formar opiniões pensadas, refletidas; é descobrir-se em relação ao outro; é superar- se perante traumas, situações difíceis e desafiadoras; é construir a própria

personalidade. A criança pelo imaginário descobre significações entre ela e o mundo, e as interioriza. “A criança toma consciência do que é possível, mede a diferença entre imaginário e real” (POSTIC, 1992, p.22). Essa construção interna cheia de significações realiza o equilíbrio do ser na busca de sua autonomia.