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Qual a raridade dos serviços da Defensoria Pública? Os serviços de advocacia não são de uso corrente. Todavia, em relação à Defensoria Pública, é preciso considerar que um dos motivos porque o recurso a seus serviços torna-se um evento raro na vida de uma pessoa, principalmente das mais pobres, é o fato de que as injustiças estruturais dificilmente podem ser combatidas por meio do recurso aos tribunais. Caso pudessem, a demanda por defensores públicos seria certamente mais frequente. A pobreza em si é uma injustiça, mas como combatê-la no contexto de um sistema social que a considera algo normal, um simples problema de acesso a alguns bens materiais?

Para os pobres, a proximidade é um imperativo, enquanto que para os ricos é uma comodidade. Ora, ninguém mais do que estes reside próximo aos empregos e à oferta de bens e serviços mais raros e especializados, nestes incluídos os da Defensoria. Parece contraditório, mas é o que se observa na maior parte dos casos. A partir de dados obtidos pela Ouvidoria da Defensoria Pública em uma pesquisa de satisfação realizada em 2012, tentamos compreender a expressão territorial da oferta dos serviços e dos locais de residência das pessoas atendidas.

Buscando uma compreensão mais ampla a respeito do uso do território pela Defensoria paulista, tentamos compreender a relação entre objetos e ações empreendidos pela instituição e o uso do território tanto pelas pessoas atendidas quanto pelas potenciais demandantes. Estas primeiras investigações contribuem para começarmos a compreender a expressão espacial do problema. Os dados que apresentaremos a seguir foram fornecidos pela Ouvidoria-Geral da DPESP e pelo IBGE. Na pesquisa de satisfação foram ouvidas, por amostragem, pessoas que foram atendidas nas unidades de atendimento das cidades de São Paulo, São Bernardo do Campo, Santos e Jundiaí. Entre as informações levantadas estava o endereço dos atendidos, o que tornou possível a elaboração de alguns mapas relacionando a origem das pessoas e as localizações das unidades de atendimento. Os dados do IBGE permitiram identificar, em cada município, o percentual de domicílios por setor censitário30 que apresentavam rendimento médio mensal de até três salários mínimos. Isso permitiu

30 O setor censitário é a menor unidade territorial, formada por área contínua, integralmente contida em área

urbana ou rural, com dimensão adequada à realização da coleta de dados por um pesquisador que vai a campo por ocasião do censo. O setor constitui um conjunto de quadras, no caso de área urbana, ou uma área do município, no caso de uma área não urbanizada.

75 identificar as porções dos territórios dos municípios onde há mais domicílios com até 03 salários mínimos de rendimento médio mensal.

O mapa 2 mostra os resultados obtidos para o município de São Paulo. Pode-se observar que as porções que apresentam os tons mais escuros correspondem aos lugares com mais alto percentual de domicílios com rendimento mensal até três salários mínimos, enquanto que o contrário se verifica nas áreas mais claras. Isso significa que, no caso de São Paulo, a maior parte das populações mais pobres reside nas áreas mais periféricas. Isso comprova que o território é diferentemente usado pelas diferentes classes sociais: há as porções habitadas pelos ricos e aquelas onde vivem os pobres. As estrelas representam os locais de residência de cada uma das pessoas entrevistadas, os losangos representam as unidades de atendimento e o círculo representa a unidade de triagem (todos os que desejam ser atendidos devem passar antes pela unidade de triagem para que a Defensoria averigue se elas se enquadram nos critérios de renda).

A obrigatoriedade de passar pela triagem é um obstáculo a mais para o acesso ao atendimento na cidade de São Paulo, uma vez que se trata de um município de grande extensão territorial e as pessoas não são igualmente dotadas de mobilidade: como já afirmamos, aos mais pobres as distâncias se impõem de maneira mais perversa, pois, ao mesmo tempo em que estão distantes dos lugares onde estão os bens e serviços de que necessitam, os gastos com as tarifas do transporte público representam um percentual mais elevado de suas rendas. A centralização da triagem, impondo um maior número de deslocamentos, não deixa de se apresentar como uma dificuldade para aqueles a quem a fluidez do território é negada.

Também é necessário considerar a distribuição territorial dos atendidos, assim como a distribuição territorial da pobreza. Há uma correspondência entre as porções do território onde vivem as pessoas mais pobres (áreas periféricas) com os lugares de origem dos atendidos. A distribuição dos atendidos indica que quem procura a Defensoria são, em sua maior parte, as pessoas que vivem na periferia, o que valida e reforça o argumento de que as ações da instituição devem estar ancoradas na compreensão do território. O que se verifica no caso de São Paulo é que a instituição está buscando essa atuação: ao descentralizar o atendimento, instalando unidades em lugares mais periféricos, ela se aproxima dos mais pobres.

76 Mapa 2 - MUNICÍPIO DE SÃO PAULO: Domicílios com rendimento médio mensal até 03 salários mínimos por setor censitário, localização da unidade da Defensoria Pública e origem das pessoas atendidas, 2012. Fonte: Ouvidoria da Defensoria Pública e IBGE (Censo 2010). Elaboração cartográfica: Willian Alcântara.

77 Cabe observar ainda que, como é de se esperar, a maior parte dos atendidos é do próprio município. Todavia, é importante notar que os poucos atendidos que não moram em São Paulo vêm de municípios vizinhos, indicando que a área de influência das unidades de atendimento não se estende para muito além dos limites dos municípios que as abrigam. Tal fato constitui um dado essencial quando se tem em conta que os municípios desprovidos de unidades da Defensoria apresentam elevados percentuais de população pobre, e esta se vê obrigada a se deslocar para o município vizinho. Embora sejam municípios com menor população absoluta – o que implica necessariamente em menor participação, pois os municípios onde se localizam as unidades apresentam uma população significativamente maior que a dos seus vizinhos –, sua pouca expressividade em relação à demanda que bate às portas da Defensoria parece indicar a maior dificuldade de chegar até o atendimento.

No que diz respeito ao município de São Paulo, importa considerar que ele é o maior do país em população (maior mesmo que grande parte dos estados da federação), com aproximadamente 11 milhões de habitantes, e que possui uma grande extensão territorial. Nesse sentido, entre uma e outra unidade de atendimento, há enormes distâncias, que podem ser expressas tanto pelos milhões de habitantes aí residentes como pelas distâncias físicas. Além disso, há ainda grandes áreas não atendidas, como é o caso da porção sul do município. Tudo isso expressa a grande demanda potencial existente e que reside distante de uma unidade de atendimento.

O caso de São Bernardo do Campo (Mapa 3) é bem parecido com o de São Paulo: há porções mais centrais que correspondem às áreas habitadas pelas pessoas de rendimentos mais altos, enquanto que as porções periféricas são habitadas pelas mais pobres. Aqui também se verifica que os atendidos de outros municípios aparecem em menor número e têm origem nos municípios vizinhos. A unidade de atendimento também se localiza na porção mais central, enquanto que os atendidos tem origem nos lugares mais periféricos. Apesar de possuir uma localização aparentemente privilegiada em relação à circulação de transportes (está no centro do município), a unidade da Defensoria está mais distante das porções do território onde vivem as pessoas que são as mais necessitadas de seus serviços, conforme critérios estabelecidos pela própria instituição. A localização da unidade de atendimento obedece àquela relação apontada por Rochefort entre o serviço e o centro de atividades terciárias da cidade. Trata-se de uma relação óbvia conquanto é o melhor lugar em termos de infraestruturas e outros serviços. Todavia, nosso problema é que a esses “pontos luminosos” o acesso é mais difícil para os mais pobres. Essa é a contradição enfrentada pela Defensoria: numa lógica de ações que se realizam por meio exclusivo de objetos fixos em dados pontos do

78 território, o que é bom para a instituição não é necessariamente a melhor situação para os demandantes do serviço.

Embora não acreditemos ser a solução a existência de várias unidades, uma em cada lugar onde há maior concentração de pessoas pobres, acreditamos que é fundamental conhecer o território e atuar em consonância com as necessidades por ele expressas. A partir desse conhecimento, é possível pensar em estratégias de ação diferentes das atuais. Um exemplo é que as pessoas, de maneira geral, não sabem da existência da Defensoria e quais são os serviços oferecidos, fato que exige ações mais especificamente direcionadas a esta ou àquela porção do território. Assim, acreditamos ser a proximidade um pressuposto básico das ações da Defensoria Pública.

Por se tratar de um município litorâneo, em Santos as porções do território ocupadas pelas pessoas mais ricas são aquelas mais próximas ao oceano (Mapa 4). Isso em função da valorização imobiliária, que resulta na construção de edifícios na orla, cujos apartamentos atingem valores astronômicos, inacessíveis aos mais pobres. Isso atribui uma característica diferente ao caso de Santos: a unidade de atendimento da Defensoria localiza-se no centro, contudo este é caracterizado por elevados percentuais de domicílios com renda até três salários mínimos. Quanto à origem dos atendidos, novamente se verifica uma forte relação com as áreas mais pobres. E, novamente, os atendidos de outros municípios são uma minoria com origem nos municípios mais próximos. No tocante à relação entre demanda e oferta dos serviços, há também um problema: Santos possui aproximadamente 430.000 habitantes e apenas uma unidade de atendimento da Defensoria, o que nos leva a uma desproporção que deve ser investigada. A compreensão do território revela sua importância. Conhecê-lo significa compreender as dinâmicas da vida daqueles que possivelmente necessitam da instituição, o que dá a possibilidade de atribuir maior precisão às ações.

79 Mapa 3 – SÃO BERNARDO DO CAMPO: Domicílios com rendimento mensal até 03 salários mínimos por setor censitário, localização da unidade da Defensoria Pública e origem das pessoas atendidas. Fonte: Ouvidoria da Defensoria Pública e IBGE (Censo 2010). Elaboração cartográfica: Willian Alcântara.

80 Mapa 4 – SANTOS: Domicílios com rendimento mensal até 03 salários mínimos por setor censitário, localização da unidade da Defensoria Pública e origem das pessoas atendidas. Fonte: Ouvidoria da Defensoria Pública e IBGE (Censo 2010). Elaboração cartográfica: Willian Alcântara.

81 De modo semelhante aos municípios anteriormente mencionados, Jundiaí também apresenta diferenciações territoriais baseadas na renda (Mapa 5). É possível identificar uma porção central do território onde há predominância de domicílios com rendimento mensal superior a três salários mínimos e onde se localiza a unidade de atendimento. No entanto, o mapa revela a presença de porções territoriais um pouco mais periféricas onde predominam as populações de mais baixa renda e é delas que se origina a maior parte das pessoas atendidas pela Defensoria. Além disso, há as pessoas que residem em municípios vizinhos.

Em Jundiaí, e nesse aspecto São Bernardo apresenta características semelhantes, é importante destacar a presença de áreas urbanas (porção do território onde os setores censitários são de menor extensão) e áreas rurais (porções periféricas onde os setores são bastante extensos). Tal fato faz com que possamos identificar uma periferia urbana pobre e uma periferia rural pobre com algumas “ilhas” de riqueza. O mapa indica que o território de Jundiaí expressa necessidades diferentes a depender de qual porção está sendo considerada. Isso exige da Defensoria ações em consonância com essa realidade.

82 Mapa 5 – JUNDIAÍ: Domicílios com rendimento mensal até 03 salários mínimos por setor censitário, localização da unidade da Defensoria Pública e origem das pessoas atendidas. Fonte: Ouvidoria da Defensoria Pública e IBGE (Censo 2010). Elaboração cartográfica: Willian Alcântara.

83 A análise dos mapas permite ao menos três confirmações das ideias que discutimos até agora. A primeira delas refere-se à localização das unidades da Defensoria naqueles lugares onde há maior concentração de pessoas de mais alta renda, indicando a relação entre o serviço e um lugar no município onde há melhor oferta de bens e serviços. Em segundo lugar, como era de se esperar, dados os critérios de renda utilizados pela Defensoria, os atendidos residem nos lugares onde há prevalência de pessoas mais pobres. Por fim, a demanda por proximidade dos serviços parece ficar evidente quando se verifica entre os atendidos a pouca presença de pessoas de municípios mais distantes. Para as pessoas que necessitam dos serviços da Defensoria, a proximidade espacial se mostra indispensável.

Acreditamos que essas primeiras informações evidenciam a importância de se considerar o território para pensar as ações da Defensoria Pública. A partir da compreensão da expressão territorial da demanda pelos serviços, é possível começar a compreender os limtes impostos à atuação da DPESP. A existência dessa instituição está envolta numa série de contradições. A primeira delas, como vimos, é ser destinada exclusivamente às pessoas mais pobres e estar organizada sob um modelo de atendimento que consiste em instalar unidades em um dado ponto do território e esperar que as pessoas a procurem. Embora, nas condições atuais, esta seja a solução mais lógica, uma vez que esses pontos são os mais bem servidos por toda uma série de infraestruturas, acessá-los torna-se mais custoso para quem, por força das coações capitalistas, mora distante deles. A contradição maior é que a existência da Defensoria Pública, de pobres e de uma organização territorial que limita o acesso dos pobres aos lugares dotados dos melhores serviços só é possível numa estrutura social fundada na produção de desigualdades. A dificuldade de acesso aos serviços da Defensoria em função do uso do território apenas expressa a contradição, indicando que não se trata somente de mais defensorias e de mais defensores em mais lugares pobres. Trata-se, outrossim, da necessidade de uma transformação social que torne a atual discussão sem sentido, pois nesta nova sociedade não haveria pobres e as diferenças territoriais seriam exclusivamente explicadas pela diversidade cultural. Contudo, debrucemo-nos ainda mais sobre o tema para tornar essa contradição ainda mais evidente.

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CAPÍTULO 5