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2 CRIMINOLOGIA, SAÚDE MENTAL E SEMI-IMPUTABILIDADE: A REALIDADE

2.7 A semi-imputabilidade e o Código Penal

Quando, a partir da perícia psiquiátrica, o infrator for considerado semi- imputável, o juiz tem a possibilidade de optar pela penalização – sendo o infrator encaminhado para unidade prisional – e consequente redução de um a dois terços da pena, ou mesmo impor a medida de segurança, o que leva aquele que praticou o delito à internação em Hospital de Custódia e Tratamento Psiquiátrico. Novamente: a medida de segurança não deve ser considerada uma punição pelo delito cometido,

visto que aqueles que apresentavam transtorno mental no momento do ato delituoso não podem ser totalmente responsabilizados e, consequentemente, punidos pelo ato; aquele a quem é imposta medida de segurança deve receber tratamento, assim como permanecer, se for o caso, em local onde não possa novamente praticar ato que prejudique a sociedade.

Dito isso, reconhecemos que a medida de segurança aplicada ao doente mental inimputável ou semi-imputável encaminhado para internação em HCTP pode transformar-se em prisão perpétua, caso os peritos responsáveis verifiquem em suas perícias anuais a manutenção da periculosidade do infrator.

Apesar de reconhecermos o valor da medida de segurança como forma de proteção social, não podemos deixar de observar que a periculosidade é uma característica humana, logo, todos os humanos são perigosos em potencial. Porém, na maioria das vezes, o homem consegue conter seus anseios destrutivos que, se atuados, fariam dele alguém realmente perigoso.

Cohen (1996; p. 83) afirma que o principal objetivo da criminologia é a identificação da periculosidade pré-delitiva. Diz o autor que:

Podemos entender a periculosidade pré-delitiva como a capacidade de alguém fazer um dano a si mesmo ou a outros ou então infringir um dano a algo que os legisladores consideram que deveria ser protegido.

A citação acima posiciona-se com a proposta, não de proteger apenas o sujeito, mas também aqueles com quem ele convive, por meio da avaliação do estado mental do paciente, que pode resultar em internação em unidade psiquiátrica a fim de evitar mal maior.

Objetivando favorecer a compreensão de fatos que serão posteriormente explanados, vejo neste momento a necessidade de apresentar algumas definições referentes ao processo penal.

Assim, inicialmente, a partir das afirmações de Moura (1996), entendemos culpabilidade como termo referente à faceta subjetiva do delito naquilo concernente à intenção com a qual ele é realizado. Ou seja, esse conceito está correlacionado aos objetivos que acometiam o autor do ato no momento da ação, no que se refere aos fatores intelectuais e afetivos. A partir dessa análise, podemos verificar a ocorrência de culpabilidade com dolo ou com culpa.

O dolo refere-se à intencionalidade do sujeito em cometer tal ação. Já a culpa diz respeito a um ato que não foi intencional, mas que poderia ser previsto pelo autor. A culpa do agente praticante do delito é oriunda da negligência, da imperícia ou da imprudência. Assim, a negligência refere-se à falta de observação e concretização de procedimento que o autor deveria realizar; a imperícia é característica do sujeito desprovido de determinadas habilidades e conhecimentos que o levam a praticar ato ilícito; e a imprudência é a falta de observação de ações protetoras usuais.

Moura (op. cit.) assevera que a culpabilidade depende da existência prévia de possibilidade do autor para agir conforme a lei, além de ser capaz de reconhecer a ilegalidade do ato cometido. Para tanto, é imprescindível a análise não apenas do ato em si, mas também das circunstâncias em que ele foi realizado. Em síntese, Moura (op.cit.; p. 89) entende que a culpabilidade abrange “(...) a imputabilidade, o potencial da licitude da consciência e a exigibilidade de conduta diversa”.

Seguindo os ensinamentos do mesmo autor, verificamos que a capacidade humana para conhecer o valor dos atos é uma adaptação da nossa espécie realizada de forma não apenas instintiva, mas, também, de forma consciente e inteligente, sendo esta última, a integração de funções outras como percepção, elaboração e expressão. Logo, todo cidadão que realiza uma ação ou omissão que

acarreta prejuízo a si ou a outrem é passível das sanções previstas na legislação. Tal contrato social visa à preservação da manutenção de existência do tecido social mediante o compromisso da responsabilidade civil.

Esse dado se mostra relevante a partir do momento em que “a responsabilidade é consequência e pressuposto da punibilidade, resultando do concurso dos requisitos que caracterizam a capacidade de imputação” (Moura, 1996; p. 92). Assim, a imputabilidade é anterior ao delito; a culpabilidade mostra-se ao autor no momento do ato; e a punibilidade é a consequencia natural do delito.

Moura (op. cit.; p. 93) define a imputabilidade como “(...) a aptidão para ser culpável”, sendo esta, então, dependente da capacidade do sujeito para compreender o quanto o seu comportamento está de acordo com as normas legais vigentes e, também, ser capaz de atuar de acordo com essa compreensão. Do contrário, caso não exista essa capacidade de compreensão, a inimputabilidade se mostra e a culpabilidade, logo, é suspensa.

Apesar de verificar a necessidade de expor os conceitos acima apresentados, para os fins que esta pesquisa se propõe, o conceito mais importante – ou central – se refere à semi-imputabilidade.

Diferentemente da inimputabilidade, que foi desenvolvida por juristas, a ideia de semi-imputabilidade foi inserida no rol de conhecimentos das ciências jurídicas por profissionais de saúde, particularmente psiquiatras, diz Moura (1996). Aquele que tem compreensão do ato que realizou, porém, não é capaz de aferir a magnitude do ato e as consequências advindas deste por incapacidade psíquica é considerado semi-imputável.

Entendemos que é especificamente aqui que se inicia, efetivamente, o problema abordado por este trabalho. Isso porque nos casos em que se verifica a

semi-imputabilidade do autor, o juiz do caso (profissional com pouca ou nenhuma experiência em psicopatologia e saúde mental) deve decidir se vai diminuir a pena do infrator ou substituí-la por medida de segurança. Ou seja, caso seja constatada a semi-imputabilidade do autor do delito, o juiz encaminhará o preso para uma penitenciária (frequentemente o preso aguarda julgamento em Centro de Detenção Provisória [CDP], ou em cadeia pública) para o cumprimento da pena. Porém, como a perícia identificou diminuição da capacidade de entendimento do sujeito no momento do ato, o magistrado deve, obrigatoriamente, reduzir a pena de um a dois terços.

Moura (1996) diz que os indivíduos portadores de patologias que ocasionam disfunções na personalidade são aqueles que frequentemente são identificados como semi-imputáveis. Trata-se dos seguintes quadros:

Personalidade anti-social – o indivíduo possui um histórico com repetidos problemas legais; tem comportamento sexual perverso porlimorfo; não modifica o seu comportamento apesar das punições; não sente culpa pelo que faz ou não cria vínculos sociais duradouros; Transtornos fronteiriços ou borderline da personalidade – o relacionamento social do indivíduo é instável, com mudanças de atitude e algumas condutas impulsivas, imprevisíveis e potencialmente perigosas para si e para os outros; existe uma alteração da sua identidade, que causa uma incapacidade em seu funcionamento social ou laboral. (p.94)

Em face dos dados da citação acima, mostra-se imprescindível a investigação minuciosa do potencial de periculosidade do infrator considerado semi- imputável.

Porém, existe uma situação de merece a mais elevada atenção. Como dito anteriormente, não é possível a ocorrência do sistema de duplo-binário composto pela somatória entre a pena e a medida de segurança. O magistrado deve decidir por apenas uma das possibilidades. Essa situação faz com que os casos fronteiriços (semi-imputáveis) nos quais o quadro mórbido predomina após várias penalizações

– e consequente envio do apenado para cumprimento da pena em penitenciária, com sua respectiva redução –, o juiz decidirá pela semi-imputabilidade do sujeito e a consequente aplicação de medida de segurança cumprida em HCTP.

Essa situação tem várias consequências. A partir do momento em que o infrator reincidente, que apresenta transtorno fronteiriço ou personalidade antissocial, é encaminhado para HCTP como semi-imputável, é inserido em um ambiente onde inexiste possibilidade de separação dos internados por características pessoais ou traços de personalidade. Esse fato tem como consequencia os mais graves tipos de abuso de pacientes psicóticos por parte dos semi-imputáveis. Suponho que essa situação, em que o doente mental infrator é colocado, por um agente representante do estado de direito, junto a outros que, sabidamente, vão abusar dele, ainda guarda resquícios dos anseios sociais por vingança mencionados anteriormente.

Se aplicada a indivíduo imputável, a punição já é reconhecidamente prejudicial e desprovida de eficácia quando temos em mente a reabilitação ou reinserção social. O que pensar, então, da exclusiva restrição de liberdade quando aplicada aos semi-imputáveis? A esse respeito, Piedade Júnior (1982; p. 72) é taxativo ao afirmar que

(...) o sistema punitivo ou intimidativo, que formaliza a execução da pena privativa de liberdade, na opinião de grande parte dos penalistas, como se demonstrou, aplicado a esses anômalos mentais, só pode resultar nocivo.

Tal entendimento fundamenta-se no reconhecimento das características desses infratores que os leva, compulsivamente, à reincidência criminal.

É a partir da junção, entendo, de todas as formas de punição acima expostas, que no final no século XIX surgiu a medida de segurança como meio (velado) de expulsar o infrator do grupo social, intimidar os indivíduos visando à

prevenção de futuros delitos, ‘regenerar’ o autor do delito e, obviamente, vingar a sociedade pelo mal cometido mediante o sofrimento do infrator.