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A teoria do trauma e a etiologia das neuroses no pensamento de Freud

3 FORMULAÇÕES SOBRE A CONSTITUIÇÃO DA PERSONALIDADE E SEUS

3.3 A teoria do trauma e a etiologia das neuroses no pensamento de Freud

No início de sua obra, Freud (1896) escreveu um artigo chamado Hereditariedade e a Etiologia das Neuroses, trabalho no qual afirma que a neurose é tanto produto de fatos adquiridos, logo, vivenciados, quanto consequência de aspectos herdados hereditariamente. Para explicar as causas herdadas da chamada ‘patologia nervosa’, Freud distingue a ‘hereditariedade similar’ da ‘hereditariedade dissimilar’.

Na primeira, não é possível verificar indícios de outra influência etiológica acessória além dos aspectos herdados, e os membros da família apresentam sempre a mesma patologia. Já na hereditariedade dissimilar é possível identificar a presença das mais diversas patologias nervosas em outros membros da mesma família, sem que seja possível identificar a lei que favorece o desenvolvimento de uma patologia ou de outra. Porém, Freud notou que alguns membros não adoeciam, o que o fez supor que o fator hereditário não é determinante no desenvolvimento da neurose.

Ainda no mesmo texto, Freud, para fazer menção aos eventos que influenciam o desencadeamento da doença em indivíduos pré-dispostos devido à sua constituição hereditária, propõe que os fatores etiológicos das neuroses sejam agrupados em três categorias: precondições, causas concorrentes e causas específicas. O termo ‘precondição’ refere-se à influência da hereditariedade na etiologia das doenças nervosas. Sua natureza é universal, sendo possível encontrá- la igualmente em muitas patologias. A ‘causa específica’ diz respeito àqueles eventos que diretamente concorrem para o adoecimento do indivíduo e sem os quais não poderia emergir a doença – esta sim, determinante para o surgimento da neurose. Já as ‘causas concorrentes’ são aqueles eventos ambientais que colaboram para o desencadeamento da neurose, porém a sua presença não é indispensável para o surgimento da patologia. Intoxicação, exaustão física e acidentes traumáticos são as principais causas concorrentes citadas por Freud.

Além da importância histórica de ter sido o primeiro texto em que Freud utilizou o termo ‘Psicanálise’, é também nesse artigo que ele apresenta sua teoria da sedução para elucidar a etiologia das neuroses. Diz Freud (1896; p. 174):

Esse agente é, de fato, uma lembrança relacionada à vida sexual, mas que apresenta duas características de máxima importância. O

evento do qual o sujeito reteve uma lembrança inconsciente é uma experiência precoce de relações sexuais com excitação real dos órgãos genitais, resultante de abuso sexual cometido por outra pessoa; e o período da vida em que ocorre esse evento fatal é a infância - até a idade de 8 ou 10 anos, antes que a criança tenha atingido a maturidade sexual.

Uma experiência sexual passiva antes da puberdade: eis, portanto, a etiologia específica da histeria. (grifos do autor)

Desta forma, Freud assevera que as causas concorrentes apenas seriam patogênicas sobre a histeria por despertarem a lembrança infantil inconsciente do evento traumático.

Mesmo entendendo que o fator hereditário era indispensável na ocorrência dos casos graves de psiconeurose, Freud considera que apenas a presença deste fator é insuficiente para produzir doenças mentais, sendo estritamente necessária a ocorrência de causas específicas, ou seja, a estimulação sexual precoce.

Porém, no ano seguinte, em 1897, com a célebre frase "não acredito mais na minha neurótica [teoria das neuroses]" (Freud, 1892-99/1986, p. 259), ele dá início ao abandono da teoria do trauma e inicia o desenvolvimento da concepção de que a sedução não precisa de fato ocorrer para que ideias ligadas a ela passem a desempenhar papel fundamental na organização libidinal do neurótico. Essa mudança dá origem, assim, à teoria da fantasia.

Freud entendia que aqueles sujeitos que mantêm defesas mais maduras (como a repressão, isolamento, formação reativa), e que têm algum nível de dissociação, podem ser considerados pacientes neuróticos, pacientes esses que frequentemente fantasiavam envolvimentos sexuais com adultos próximos. Mas o fato é que esse quadro se distancia muito dos pacientes que, como mencionamos acima, apresentam fragilidade do ego, ausência de controle dos impulsos, carência de canais sublimatórios, desvios em direção ao processo psíquico primário e operações defensivas primitivas como dissociação, idealização, identificação

projetiva, negação e desvalorização. Ou seja, uma dinâmica mental muito mais precária e próxima da psicose.

Considerando essas evidências, podemos sustentar a possibilidade de que, nos casos em que a violência efetivamente ocorreu, a personalidade tende a se organizar de forma menos neurótica e mais fronteiriça.

No que se refere à etiologia das doenças mentais, Freud afirma nos ‘Três ensaios’ (1905; p. 243) que

Sem dúvida é concebível que haja também variações na disposição originária que levem necessariamente, e sem a ajuda de outros fatores, à configuração de uma vida sexual anormal. Poder-se-ia descrevê-los como “degenerativos” e considerá-los como a expressão de uma deterioração hereditária. Nesse contexto, tenho um fato notável a relatar. Em mais da metade dos casos de histeria, neurose obsessiva etc. que tive em tratamento psicoterapêutico, pude demonstrar com certeza que o pai sofrera de sífilis antes do casamento, quer se tratasse de tabes ou paralisia progressiva, quer a doença luética fosse indicada de algum outro modo pela anamnese. Quero observar expressamente que as crianças posteriormente neuróticas não traziam em si nenhum sinal físico de sífilis hereditária, de modo que justamente sua constituição sexual anormal é que devia ser considerada como a última ramificação de sua herança sifilítica. Embora eu esteja longe de afirmar que a descendência de pais sifilíticos é a condição etiológica invariável ou imprescindível da constituição neuropática, não creio que a coincidência por mim observada seja acidental ou sem importância. Este fragmento deixa bastante explicita a visão freudiana da influência orgânica no desencadeamento das neuroses.

Ainda em relação a esse assunto, Freud, na XXII de suas conferências introdutórias, publicada em 1917, assevera que a função libidinal tem uma evolução que quando atinge seu ápice, é colocada a favor da reprodução. Porém, durante o curso desse desenvolvimento, a libido pode sofrer fixação (inibição) ou regressão. Partindo dessa afirmação, não podemos deixar de reconhecer que durante essas transformações nem todas as etapas do desenvolvimento psicossexual são superadas completamente e/ou ultrapassadas com igual êxito: algumas inibições no

desenvolvimento geral ocorrerão. Freud chama de ‘fixação da pulsão’ esse retardamento de uma tendência parcial em um estágio anterior do desenvolvimento.

É possível também, ao longo do desenvolvimento, diz Freud no mesmo artigo, que as partes da libido que seguiram em frente retornem a estágios que já haviam sido ultrapassados anteriormente. Ele chama esse movimento de ‘regressão da pulsão’. O autor explica que o processo de regressão ocorre, principalmente, se o objetivo que levaria à satisfação for intensamente e/ou frequentemente frustrado.

Podemos sustentar a ideia de que fixação e regressão não são fenômenos independentes entre si e que sua compreensão é fundamental para o entendimento das neuroses: quanto mais uma pulsão estiver fixada em determinada etapa do desenvolvimento, mais facilmente ela regredirá diante de obstáculos que dificultem ou impeçam a satisfação do indivíduo.

A regressão pode ocorrer de dois modos: o indivíduo pode regredir voltando a buscar satisfação mediante os objetos que, em um tempo primevo, foram investidos libidinalmente; ou um retorno completo da pulsão a formas anteriores da organização sexual (objeto, objetivo, fonte). Embora a regressão implique fortes consequências para a vida psíquica, sua maior influência, diz Freud, é orgânica. Das duas formas por meio das quais se mostra a regressão, aquela que se apresenta como retorno a formas anteriores da organização sexual é a mais surpreendente.

Os dois conceitos anteriormente apresentados são necessários para que possamos compreender a etiologia das neuroses. Salientamos que, quando um indivíduo é impedido de alcançar satisfação para suas necessidades libidinais, ele tende a desenvolver uma neurose. Isso não implica que todos os sujeitos que foram frustrados adoecem de alguma neurose, mas que em toda neurose encontram-se elementos de frustração. Mas de qual frustração estamos falando e, além disso,

frustração de quem? Ou seriamos ingênuos ou rasos o suficiente para acreditar que todas as frustrações ocasionam impacto semelhante em um mesmo indivíduo, ou ainda que uma mesma experiência seja vivenciada de igual modo por duas pessoas?

É fato que os seres humanos conseguem tolerar certa quantidade de privação. Porém, também é fato que existe um limite pessoal em relação à elevação da tensão psíquica ocasionada por estímulos externos, assim como um limite superior de tolerância para a libido não satisfeita. Isso compreende que nem toda energia libidinal pode ser remanejada para outros objetos ou objetivos, assim como nem toda libido pode ser sublimada.

Em acréscimo, entendo que o aparelho psíquico de qualquer pessoa apresenta limites no que se refere à utilização de mecanismos de defesa que impeçam a vivência de dor, sem que para isso o contato com a realidade seja significativamente prejudicado. Desta forma, chegamos à premissa de que a fixação da libido diz respeito ao fator interno da causa das neuroses. Já a frustração e a hiperestimulação dizem respeito aos fatores externos de sua etiologia. Logo, é possível afirmar que a etiologia da neurose é tanto exógena quanto endógena.

Freud diz que por mais que um caso pareça exclusivamente motivado ou por fixação da libido ou por sua frustração, ainda sim existem, mesmo que em quantidades muito discrepantes, ambas as influências. O autor assevera que na situação em questão existe uma preponderância na importância dos fatores predisponentes à neurose.

Segundo Freud (1917), os indivíduos podem apresentar um ‘fator independente’ em relação à forma pela qual a libido investe e se fixa em determinados objetos – ou seja, pode tanto existir ou não. E, caso exista, pode ter as

mais vaiadas intensidades. Além disso, as causas desta adesividade – que leva à neurose – são desconhecidas. No caso dos perversos, essa adesividade é ‘fator determinante’ na patologia: todos os perversos têm esta fixação, essa adesividade inflexível no que se refere à configuração da forma de satisfação da libido.

Mediante observação clínica dos pacientes que atendia, Freud verificou que em muitos casos nos quais ocorria um início repentino da doença mental, o que podia ser facilmente identificado era um intenso conflito entre impulsos plenos de desejos; ou seja, um conflito psíquico. Porém, o autor reconhece que a vida de todos os humanos é constantemente permeada por conflitos de vários tipos, o que não implica o adoecimento mental de todas as pessoas. Qual seria, então, o diferencial encontrado naquelas pessoas que sucumbiam à doença?

Freud responde a esta questão ao afirmar que quando ocorre frustração da satisfação da libido, esta procura novas formas para obter êxito, tanto pela mudança de objeto, quanto pela eleição de novos objetivos ou fontes. Porém, se uma parte da personalidade do indivíduo desaprovar esta nova forma de satisfação da libido, sintomas serão formados. Essa afirmação nos leva a reconhecer que o sintoma, de modo disfarçado, é uma forma de satisfação da libido diante da frustração externa ou desaprovação da nova forma de satisfação por parte da personalidade. Em resumo, existem três fatores que contribuem para o desencadeamento da neurose: frustração, fixação da libido, e conflito entre partes da personalidade em relação às novas formas de satisfação encontradas.

Na conferência XXIII, Freud (1917) retoma o tema da formação dos sintomas e inicia o texto afirmando que os sintomas são comportamentos indesejados que frequentemente causam sofrimento. Afirma, também, que os sintomas acarretam

gasto excessivo de energia mental, o que pode favorecer a interrupção das atividades laborais, domésticas e/ou relacionais do indivíduo.

Nesse texto, ele afirma que a libido pode romper as repressões já instaladas e voltar a investir objetos infantis que haviam sido abandonados. Para Freud, é ao período da infância que o sujeito retorna, pois foi nesta fase que suas ‘tendências pulsionais’ herdadas com sua disposição inata se manifestaram pela primeira vez. E, além disso, outras pulsões são colocadas em atividade devido às experiências vivenciadas pelo acaso da realidade externa. Apesar das disposições inatas serem reconhecidamente importantes para Freud, ele afirma que determinadas experiências ocorridas na infância são suficientes para promover fixações libidinais.

Assim, Freud chega à premissa de que a fixação da libido é desencadeada pela constituição herdada e pela disposição adquirida no início da infância. Esses dois fatores Freud chama de ‘séries complementares’. Diz Freud (1905; p. 181):

Durante esse período de latência total ou apenas parcial erigem-se as forças anímicas que, mais tarde, surgirão como entraves no caminho da pulsão sexual e estreitarão seu curso à maneira de diques (o asco, o sentimento de vergonha, as exigências dos ideais estéticos e morais). Nas crianças civilizadas, tem-se a impressão de que a construção desses diques é obra da educação, e certamente a educação tem muito a ver com isso. Na realidade, porém, esse desenvolvimento é organicamente condicionado e fixado pela hereditariedade, podendo produzir-se, no momento oportuno, sem nenhuma ajuda da educação. Esta fica inteiramente dentro do âmbito que lhe compete ao limitar-se a seguir o que foi organicamente prefixado e imprimi-lo de maneira um pouco mais polida e profunda. Tendo em vista todas essas afirmações realizadas em diversos momentos de sua obra, entendo que Freud deixa bem clara sua visão sobre a influência da hereditariedade na etiologia das neuroses. Porém, será que estas observações podem ser aplicadas diretamente aos transtornos de personalidade? Poderia um transtorno de personalidade ser desencadeado exclusivamente por influência genética? Ou, assim como nas neuroses, seria necessário um ambiente que

estimulasse os fatores congênitos para que a patologia fosse desencadeada? Penso que, antes de prosseguir com a presente discussão, precisamos lançar luz sobre outros fatores.

Freud (1908; p.192) já reconhecia os aspectos que mantêm as sociedades e, também, os fatores que poderiam dificultar, ou mesmo impedir, o convívio social:

Nossa civilização repousa, falando de modo geral, sobre a supressão dos instintos. Cada indivíduo renuncia a uma parte dos seus atributos: a uma parcela do seu sentimento de onipotência ou ainda das inclinações vingativas ou agressivas de sua personalidade. Dessas contribuições resulta o acervo cultural comum de bens materiais e ideais. Além das exigências da vida, foram sem dúvida os sentimentos familiares derivados do erotismo que levaram o homem a fazer essa renúncia (...). Aquele que em consequência de sua constituição indomável não consegue concordar com a supressão do instinto, torna-se um ‘criminoso’, um ‘outlaw‘, diante da sociedade — a menos que sua posição social ou suas capacidades excepcionais lhe permitam impor-se como um grande homem, um ‘herói.

Ou seja, a consequência da ausência daquilo que Freud chamou de ‘sentimentos familiares derivados do erotismo’ é o prejuízo na construção das noções de ‘si-mesmo’ e de ‘outro’, que acarreta a construção de um sistema de valores e crenças particulares caracterizados principalmente pela falta de empatia, isso frequentemente leva ao desrespeito pelo outro. Assim, os valores necessários à convivência social acabam sendo introjetados de maneira falha, ingrediente principal dos comportamentos antissociais.

A frustração de necessidades básicas é vivenciada como violência pela criança, e a expõe aos aspectos disposicionais que nela existem. Quando estes se apresentam em elevado grau, podem fazer com que a libido se torne introvertida, ou seja, com que o sujeito deixe, em alguma medida, de investir na realidade, pois esta o frustra persistentemente. Apenas se o indivíduo tem outra parte da personalidade suficientemente forte para manter sua relação com a realidade é que se mostra

possível o desenvolvimento de um conflito no qual o comportamento-sintoma, por fim, é formado.

Freud (1911) considera os processos primários inconscientes como os mais antigos na vida mental. O propósito dominante neste processo é o princípio de prazer, que se esforça por alcançar prazer e afastar-se de qualquer atividade que possa causar desprazer. A respeito desse tema, Freud (1911. p. 283) diz que:

A educação pode ser descrita, sem mais, como um incentivo à conquista do princípio de prazer e à sua substituição pelo princípio de realidade; isto é, ela procura auxiliar o processo de desenvolvimento que afeta o ego. Para este fim, utiliza uma oferta de amor dos educadores como recompensa.

O ser humano vivencia desprazer quando ocorre um aumento da tensão psíquica devido à ausência de satisfação perante suas necessidades internas. No caso dos bebês, este aumento de tensão psíquica o leva a tentar livrar-se do desprazer mediante a descarga motora. Ele se debate, grita e esses movimentos fazem com que ele experimente satisfação devido à aproximação de sua mãe – que provavelmente alucinou anteriormente.

Com o tempo e mediante experiências continuadas e repetidas de satisfação, o aparelho psíquico da criança passa a buscar uma concepção da realidade externa visando a realizar uma alteração real nesta. Nesse momento inicia-se a introdução de outro princípio de funcionamento mental: o princípio de realidade, que passou a buscar a realidade real, mesmo que esta se mostre, inicialmente, desagradável.

Esse aumento na complexidade e possibilidades do aparelho psíquico faz com que a descarga motora, que antes era utilizada apenas para o alívio da tensão mental, passe a ser empregada na alteração apropriada da realidade. Tal alteração ocorre, inicialmente, mediante movimentos expressivos, mímica facial e

manifestações de afeto e, posteriormente, mediante as mais complexas ações humanas.

3.4 Desdobramentos a partir de Melanie Klein: a teoria do pensar, em