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UM INCÊNDIO E DOIS ASSASSINATOS: MARCAS, LÍNGUAS E SINAIS COMO LINGUAGENS EM SALVADOR NA TRANSIÇÃO PARA O SÉCULO XX.

CAPITULO I-ESCOLAS DO POVO: EDUCAR-SE NAS RUAS DA BAHIA NA PASSAGEM DO SÉCULO XX A UNIVERSIDADE DO

UM INCÊNDIO E DOIS ASSASSINATOS: MARCAS, LÍNGUAS E SINAIS COMO LINGUAGENS EM SALVADOR NA TRANSIÇÃO PARA O SÉCULO XX.

Ilustração 1: Planta da Cidade de Salvador, 1894.

Elaborado pelo Engenheiro Adolfo Morales de Los Rios.

Acervo : Biblioteca do Arquivo Público do Estado da Bahia. Seção Mapas e Plantas. Foto: Aníbal GONDIM. Salvador, fevereiro de 2006.

Salvador, capital da Bahia, 1890, freguesia do Passo, 04 de março de 1890, oito e trinta da manhã. Um “gigantesco” incêndio irrompeu do prédio número 28, no segundo terço da ladeira do Taboão, uma das principais vias de ligação entre as freguesias centrais da cidade - Sé, Passo, Pilar e Conceição. Era também acesso a quem vinha da cidade baixa para as

freguesias do Sacramento de Santana e Santo Antônio além do Carmo, em seus dois distritos, e para a de Brotas.

Segundo o noticiário da época, este incêndio foi uma verdadeira hecatombe, ficando conhecido como a “catástrofe do Taboão”, ensejando inclusive fotos como souvenir’s1, e

gerou um processo contra o comerciante Eduardo Ávila2, que explorava uma loja de ferragens e drogas em geral no prédio identificado como origem do mesmo, sendo o interessado o Estado, designado como “a Justiça”. O jornal “Diário da Bahia” do dia seguinte, 5 de março, assim noticiou na página principal

“Enorme desastre

“A explosão foi violentíssima; o predio desabou todo immediatamente, cahindo sobre os predios fronteiros, ns 26 e 30, que cahirão também.

Os predios ns. 23, 25 e 27 ficarão em ruinas.

No momento da explosão, voarão sobre as casas visinhas pedaços de madeira, telhas, pedras e outros projectis, que cobrirão o telhado de varias casas á rua dos Ourives.

O abalo tremendo quebrou vidraças e abateu o soalho de muitas predios. A igreja do Rosario da Bahia dos Sapateiros soffreu diversas avarias: cahiu a cruz, partirão-se vidraças3.”

Continuando, o redator informava que “Sob a violenta impressão d’este ruido pavoroso, o povo, inquieto, indagava do motivo, e logo diversos boatos espalharão-se explicando os facto”, ante a confusão instalada, com apitos de guardas, gritos dos transeuntes, gemidos dilacerantes dos feridos e moribundos, e o bimbalhar dos sinos, dando sinais duplos de incêndio e de morte.

Na narrativa do jornal, as origens do sinistro eram diversas. Uns afirmavam “que explodira a caldeira do Plano Inclinado (...)”. Para outros, a questão era de outra gravidade,

1 Infelizmente só temos a referência sobre fotógrafos terem tirados fotos do incêndio e das ruínas dos prédios, presente no Jornal “ Diário da Bahia”. Não conseguimos achar nenhuma destas imagens.

2 APB .Seção Judiciária.Estante: 10. Caixa:340 .Doc :04. Reu: Avila, Eduardo da Silva. Núcleo: Tribunal de Justiça Interessados: a Justiça. Juízo de Direito do 1° Districto Criminal. pp 2. Ilmo Sr. Dr. Juiz Substituto do 1º

Districto Criminal. Promotor Publico Bacharel Oscar Vianna.10 7 páginas..

3 Acervo Biblioteca Central da Bahia. Setor Obras Raras. Jornal “Diário da Bahia”. 05/03/1890. Ano: XXXVI, quarta-feira. Nº 51, 2ª e 3ª coluna. Salvador, Bahia. Todas as notas seguintes que narram o incêndio são desta edição. Os grifos são de nossa responsabilidade.

já que viviam em período conturbado, tendo experimentado a sociedade a Abolição, em 1888, e a República há pouco mais de três meses. Para estes, uma Revolução seria a causa de tanta gritaria, fumaça e vítimas e “alguns affirmavão que rebentara uma revolução e que o extraordinario estrondo era a detonacao de canhões do Forte do Mar, bombardeando a cidade.”

Parece que o contexto era deveras perigoso, nebuloso, pois o jornal afirmava ter este boato encontrado eco profundo entre as pessoas “e ganhou credibilidade diante do espetáculo da soldadesca que desembocava de muitas ruas”. Porém, logo o mistério foi desvendado. Ocorrera “uma explosão de barris de polvora, na loja de ferragens e drogas da casa de negocio dos Srs. Silva Ávila E C. estabelecidos na loja do predio n. 28 a rua do Taboão”. Infelizmente, saber a origem não diminuiu sua magnitude. A semana foi marcada pelo desenrolar da explosão, fazendo com que “ Muitos moradores da rua do Passo, mudarão-se com receio da propagação do incêndio”

O jornal “Diário da Bahia” , que vem nos servindo de fonte, enfatizou a característica de via de ligação urbana da ladeira do Taboão, o que concorreu para uma maior expressão da tragédia, pois

“Á hora em que se deu o desastre é a ladeira do Taboão bastante transitada, principalmente por empregados do commercio e negociantes, que descem para seus afazeres.

Ponto de communicação entre dous centros commerciaes, e por sua vez ponto de negocio, a ladeira do Taboão, estava naquelle instante cheia de transeuntes: carroceiros occupados no trafego; creanças que ião para a eschola, empregados do commércio, pessoas que ião fazer compras,

ganhadeiras etc.

Pudemos também apreender a magnitude do desastre pelo deslocamento das principais autoridades para o local, ao toque de incêndio, desde as autoridades religiosas, médicas, até a administrativas, nas pessoas dos cidadãos,

“Luiz Tarquínio, intendente da municipalidade; capitão Paulo Xavier de

Jesus, subdelegado da freguezia da Rua do Passo; Domingos Adrião Rebello, director da companhia dos bombeiros; Duarte de Oliveira Junior, empregado da mesma companhia; tenente Machado, auxiliar das delegacias de policia d’esta capital; professor Tantu, subdelegado da

cívica na Sé; alferes Pamphilio Garrity Pessoa do 16o Batalhão; Luiz Freire de Carvalho, engenheiro da municipalidade; Manuel Duarte de

Oliveira, subdelegado de Santo Antonio

Logo depois, quando se tinha uma visão mais real da tragédia, “...Às 11 horas chegou o dr. Manoel Victorino Pereira, governador d’estado.”

Ilustração 2: Detalhe da Planta da Cidade de

Salvador, 1894. Acervo Biblioteca Francisco Vicente Vianna, APB.

Enfoque no entorno da ladeira do Taboão, no contexto das freguesias do Passo; Pilar e Conceição da Praia, com os quarteirões marítimo- comerciais.

Em azul : trajeto da Ladeira do Taboão.

Em verde: Ponto do cotovelo formado por esta

ladeira com a ladeira do Julião, próximo ao prédio nº 28.

O combate foi cruel e desleal, com vantagem para o fogo. Apesar de serem socorridos pelas empresas seguradoras, que empenharam suas “bombas das companhias Alliança e Interesse Publico, e do arsenal da marinha, que comparecerão, não puderão, entretanto, prestar todos os soccoros que se devião esperar, pelo máo estado do material e pela falta d’agua.”

O fogo só foi debelado quando o encanamento de água da rua foi cortado, lembrança do “Dr. Oscar Vianna e negociante Aurelino Magalhães lembrarão que se cortasse o encanamento d’agua para alimentar a mangueira de uma bomba”, sendo que o primeiro terá uma importante participação no desenrolar deste caso, como promotor de justiça. O proprietário do estabelecimento, ao chegar ao mesmo no outro dia, 05 de março, sofreu, como era de se esperar, uma tentativa de linchamento da multidão,

“...sendo acompanhado até a estação policial da freguesia da Sé.(...)

O povo, dando-lhe responsabilidade do grande desastre, acompanhou-o cobrindo-o de imprecações e quis arrancar-lhe a vida, o que não se deu

Contabilizando o incêndio, em termos de vítimas foram ao todo quarenta e oito mortos, alguns no momento mesmo da explosão, outros no dia imediato e nos seguintes O processo que gerou, possibilitando nossa análise, tem como anexo os laudos dos médicos legistas, e a ele logo voltaremos. Porém, podemos começar a perguntar o que um processo criminal, sobre autoria e culpabilidade de incêndio, pode interessar a uma pesquisa sobre educação na Bahia oitocentista? Como informamos, ao realizarmos o projeto de pesquisa do doutorado uma fonte de inspiração foi o livro de Jorge AMADO, “ Tenda dos Milagres”, cuja temporalidade elástica se estende do meado do século XIX até o ano de 1943, num contínuo feed-back. Apesar de tratar de Salvador, centra o lócus das suas vivências no Pelourinho, mas especificamente no Terreiro de Jesus, tendo como um dos principais cenários a Faculdade de Medicina e o que chamou “Universidade do Pelourinho”- a ladeira do Taboão e circunvizinhanças,

No amplo território do Pelourinho, homens e mulheres ensinam e estudam.

Universidade vasta e vária, se estende e se ramifica pelo Taboão, nas portas do Carmo e em Santo Antônio Além-do-Carmo, na Baixa dos Sapateiros, nos mercados, no Maciel, na Lapinha, no Largo da Sé, no Tororó, na Barroquinha, nas Sete Portas e no Rio Vermelho, em todas as partes onde homens e mulheres trabalham(...) Os professores estão em cada casa, em

cada tenda, em cada oficina.(...) Na Tenda dos Milagres, Ladeira do

Taboão, 60, fica a reitoria desta universidade popular”4.

Este trecho lido há muito tempo, na adolescência longínqua, e relido quando o tempo permite, sempre causou – nos profunda impressão. E, no deslanche desta pesquisa indicou um dos caminhos de reflexão, ainda que tenha algumas vezes pensado em abandoná-lo, dadas as dificuldades encontradas para alcançar essa “universidade popular”, que consideramos parte de estratégias e táticas de educar-se dos pobres.

Interessante que o uso do termo Reitoria nos remete exatamente ao inverso da problemática deste capítulo - a educação não escolarizada. Encontrar, ainda que em rastros e

4 AMADO, Jorge. Tenda dos Milagres. 2000. ( 40.º edição) . Ed. Record. R. J. Grifos nossos. O escritor refere- se aos principais mercados populares de abastecimento da população de Salvador , na passagem do século XIX/XX, os Mercados de Santa Bárbara e do Ouro, na região do cais, e o de São Miguel, na rua da Vala, depois J.J. Seabra, Baixa dos Sapateiros.

vestígios mínimos, sinais de experiências de educação não escolarizadas é o nosso objetivo. As formas como a população gestava a educação dos seus filhos, parentes, aderentes, não em si, mas no processo mesmo de sua existência, e de como foram sofrendo tentativas de escolarização., reveste-se de grande importância para os historiadores que priorizam uma abordagem “vista de baixo”5 . Deste processo, os marcos são encontráveis desde os primeiros dos anos 20, do século XIX, ainda que historicamente diferenciados.

Para alcançar esse processo de escolarização, adotamos como estratégia partir do final do período 1890, até as bases da escolarização que procuramos -1870 - e que elegeu como sujeitos os pobres, homens, mulheres e crianças, do século XIX, no intuito de torná-los os desejáveis cidadãos de um Brasil futuro. Para tanto buscamos alguns dos caminhos da cidade do Salvador. E o Taboão era o umbigo da cidade.

Inicialmente, relativo a este território é importante atentar a demarcação territorial efetuada por Clarival VALLADARES6 médico e crítico de arte baiano dos anos 1940/70, no que chamou “o aperfeiçoamento dos artesanatos”, ao estudar os ofícios e artes populares. Indica como local de concentração e excelência dos serviços dos artesãos a Ladeira do Taboão, centro de uma tradição de arte popular, denominando-a “A Universidade do Taboão”, termo do qual AMADO se apropriou e utilizou no seu livro.O Taboão, na descrição de Valadares,

“( ...) refere-se a um pequeno trecho urbano da cidade do Salvador, o Taboão, uma ladeira em ziguezague, ligação da Baixa dos Sapateiros com a cidade baixa e também confluência da Ladeira do Pelourinho, da Ladeira do Carmo e da Ladeira do Passo. Na metade do percurso, frente ao pórtico do elevador do Taboão, deriva uma outra ladeira, de sobrados e armazéns, por tradição conhecida pelo nome de Caminho Novo do Taboão.(...) Esse trecho urbano nunca teve importância como sede de obra de arte nem de monumento histórico. Também nunca ouvi falar de um restaurante que lhe desse fama, nem de nenhum colégio,

5 Para esta discussão remetemos aos textos clássicos de SHARPE, Jim. A história vista de baixo;1987. HOBSBAWM, Eric .A história de baixo para cima;1998. THOMPSON, Edward.” A história vista de

baixo.2000.

6 Clarival do Prado VALADARES foi um dos mais originais e fecundos críticos de arte baiano.Médico de formação, autodidata, interessou-se pela “arte popular”, efetuando diversas pesquisas sobre o que chamou ”artesanato”, como os riscadores de milagres, a pirogravura e xilogravura de anúncios populares, rótulos de comestíveis, de literatura de cordel, etc. Este trabalho foi publicado em 1963, porém refere-se a uma memória histórica sobre o Taboão, que remonta ao meado do século XIX.

grêmio, sede de partido, repartição,casa de nenhum homem célebre, local de ato heróico, enfim, de nenhuma dessas coisas que enobrecem e romantizam os recantos da urbe 7”.

O que interessava ao autor, na rua que identifica como marcada pela falta de importância e de fatores enobrecedores, numa Salvador que ainda se pretendia civilizar, era a concentração, desde o final do século XIX e adentrando o século XX até a década de 1960, de artesãos no território da Ladeira do Taboão e suas adjacências

Ilustração 3: Encruzilhada do Pelourinho, Salvador, 1920 .

Ladeira do Taboão à esquerda; em frente, subida da ladeira do Carmo; ao sul, sopé da Ladeira do Pelourinho; à direita, direção da Rua das Flores. DUVAL. Albúm das curiosidades

artísticas da Bahia.In: SAMPAIO, Consuelo Novais. 50 anos

de urbanização na Bahia. Salvador: Fundação Odebrecht. 1º lugar no Prêmio “Clarival do Prado Valadares”, 2005. Pp. 205.

Descrita por um memorialista como um trecho secundário do Pelourinho, (...) Vindo do Terreiro, ou da Baixa dos Sapateiros, ou do Taboão, o deslumbramento é o mesmo: está o visitante face a face com o mais belo conjunto arquitetônico brasileiro (...)8 via de trânsito entre os mercados que abasteciam os bairros centrais da cidade, o Taboão é para VALADARES uma área distinta das demais da cidade pelas atividades artesanais, que,

(...) levam o consumidor a procurá-lo, inda que sem o conhecimento prévio do profissional. Tem sido assim há mais de um século, um centro cultural de espírito universitário, formado por profissionais das mais diferentes atividades artesanais

7 VALLADARES, Clarival do Prado. O aperfeiçoamento dos artesanatos (II): a universidade do Taboão. RJ:Tempo Brasileiro: Revista de Cultura; N.º 04 /05. Jun/set. Ano II 1963 .P.p 151. Apesar de escrito em 1963, este artigo encadea-se a reflexões e pesquisas do autor desde os anos 1930, e referentes ao início do século XX. 8 TAVARES, Odorico. Bahia, imagens da terra e do povo. RJ: Ed. Civilização Brasileira; 1961. Pp. 123.

e artísticas, sem entretanto perderem a mais valiosa característica de relação humana- a comunhão – através da qual um único nome dá ao consumidor o endereço bastante.(...) a mais relevante característica desta pequena área urbana era o convívio, a impressionante inter-relação humana, bem construída conversa de porta, na comunicabilidade facílima das solicitações e préstimos, trazendo a intimidade imediata, a informação completa e criticada 9”.

A historiografia baiana sobre escravidão, trabalho e vida urbana, e portanto pobreza, aponta ter este território, das freguesias da Sé, Passo, e então o Taboão e suas adjacências, sofrido um paulatino esvaziamento da população de elite a partir das mudanças sócio-econômicas de 1870/80, como a queda da produção do açúcar e o empobrecimento da aristocracia do Recôncavo baiano. Conjuntamente, ocorreu uma crescente apropriação pelos pobres, livres e libertos; negros, mestiços e brancos; brasileiros e estrangeiros, espraiando-se pelas freguesias limítrofes de Santo Antônio, Santana e Pilar.

As fontes que utilizamos trazem essa transmutação dos moradores da Freguesia da Sé e adjacentes. Tanto em SANTANA, VIANNA OU VALLADARES, as ruas do Pelourinho, a ladeira e a Rua do Passo; a rua e a ladeira do Carmo, são territórios visíveis em sua diversidade étnica, social e cultural, ainda que perpassados por distintos olhares, constituídos pela historicidade dos sujeitos que deixaram esses registros, quais sejam , o olhar do ex- morador, mestiço e ligado organicamente às camadas populares e seus modos de vida , o de Miguel Santana. O olhar feminilizado de média burguesia intelectualizada - olhar de moça de fino trato, na feliz expressão de Claúdia FONSECA, que marca a obra da folclorista Hildegardes Vianna. Ou ainda o olhar analítico de Valadares, tentando categorizar as vivências do Taboão, sob as teorias e interpretações da crítica artística dos anos 1950/70, de forma a valorizar uma cultura popular brasileira .

Demarcando esses locais de enunciação dos discursos sobre o Taboão, voltamos ao incêndio, em 1890. Nele, a presença dos pobres foi marcante, tornada visível na tabela por nós elaborada a partir do “relatório das vitimas”, entregue vinte dias depois do ocorrido pelos médicos João Antonio de Castro Loureiro e Manoel Gordilho, ao Chefe de Polícia, a quem estavam subordinados, efetuando uma reclamação sobre as condições de trabalho,

9 VALADARES, Op. Cit, 1963. P.p.152.

“Sendo-nos, pois, confiado o cuidado de examinar os cadaveres e essas victimas, e verificar a sua identidade, tomando egualmente conhecimento dos que forão feridos, de accordo com os preceitos medico-legaes, procuramos cumprir do melhor modo esta nossa ordem, missão consoante os meios de que dispomos e muito principalmente em emmergencias taes.Não podemos furtar-mos ao imperioso dever de mais uma vez reclamar dos poderes públicos, por intermedio do digno e illustrado magistrado que occupa o cargo de Chefe de Policia n’este Estado providencias acerca de deficiencia dos meios de investigações que possuímos, de modo a tornar completo, possível e mesmo uma realidade o serviço medico legal, tão descurado n’este Estado, a semelhança do que dá-se nos paizes cultos do velho mundo, onde, devido ao progresso realisado n’este ramo da medicina, ella nada tem desejar-se”10.

Dando início à descrição das vítimas, usaram como estratégia ante o número avultado e o fato de serem apenas dois os examinadores, dividi-las em três tipos, na própria expressão de Gordilho e Loureiro “Para maior facilidade e seguindo uma ordem regular, dividimos esta nossa descripção em trez partes. Na 1a tratamos dos mortos, na 2a dos feridos gravemente e na 3a finalmente dos feridos levemente “ . Interessa-nos os primeiros, os mortos, pois no texto construído pelos médicos, em busca de identificação dos corpos, encontramos evidências de uma das múltiplas formas de educação presente nas ruas de Salvador- a leitura de marcas e sinais corporais presentes nas vítimas.

Assim, tomamos a descrição constante no relatório e a organizamos em duas tabelas, uma geral e outra específica , a partir de duas taxionomias: a primeira englobando todos os mortos e todas as descrições dos médicos11; a segunda, as categorias que indicam sinais e

10 O número de vítimas fatais foi de quarenta e oito pessoas, porém a tabela que construímos para análise conta com 31 vitimas, por termos priorizado as que traziam as informações sobre cor, roupa e sinais particulares.Fonte: Relatorio das victimas da Catastrophe do Taboão . APB – Seção Judiciária.Estante: 10; Caixa 340/;documento:04. Reu: Avila, Eduardo da Silva. Núcleo: Tribunal de Justiça Interessados: a Justiça. Juízo de Direito do 1° Districto Criminal.

marcas particulares nos corpos, evidências de um conjunto de modos de ler e se identificar no mundo, que estamos considerando como uma forma de educação, aprendida no cotidiano.

No “relatório sobre as vítimas” que nos serve como evidência, os corpos foram numerados pelos médicos em seqüência de 01 a 48. Destes, sete são identificados pelo prenome e quatro foram reconhecidos pelo nome completo. Sugestivamente três homens brancos, vindo na frente o termo “cadáver” ou “corpo”, e, em seguida o nome. Dos não brancos o único identificado com nome e sobrenome foi o pardo José Ezequiel Carvalho de Oliveira12alfaiate com loja estabelecida nas redondezas, como informou o noticiário, que permite vislumbrar a variedade do comércio da ladeira, assim como o fato de ser proprietário possibilitava flexibilidade nas vivências sociais marcadas por barreiras de origem, côr, gênero e classe,

“O incendio, que começou no prédio n.28, communicou-se logo aos de ns 26 e 30, de propriedade do casal do conde de Pereira Marinho, seguros em 24:000$000 na Companhia Alliança, e mais tarde aos de ns 17, 19, 21, 23.

N’estes predios estavão estabelecidas a loja Carvalho, tabernas, quitandas, uma tenda de marceneiro e uma loja de fazendas13”.

A leitura do “relatório” nos permite afirmar que a côr foi um dado essencial. Mesmo os corpos meio carbonizados tinham sua côr estabelecida, e apenas os restos carbonizados escaparam de tal categorização. A isto voltaremos. A seguir, variava a ordem da descrição: os ferimentos, a idade presumida, as roupas, adereços, moradia, o que fazia.

A partir destas informações, elaboramos duas tabelas de vítimas. Na geral, enfocamos as categorias de número, nome/ identificação, idade, moradia, ferimentos, pois não foi usado o termo causa mortis. Inclusive não há indícios de ter sido feita autopsia ou necropsia e

12 No “Relatório das vitimas” este sujeito foi identificado como tendo 12 anos, o que levantou dúvidas, pois muito novo para ser “alfaiate”; nesta idade eram quase sempre classificados como aprendiz. Consideramos que