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CAPITULO I-ESCOLAS DO POVO: EDUCAR-SE NAS RUAS DA BAHIA NA PASSAGEM DO SÉCULO XX A UNIVERSIDADE DO

TOTAL DE TRABALHADORES POR PROFISSÃO

PROFISSÃO Nº.TRABALHADORES % Pedreiro 134 27, 74 Carapina 72 14,91 Cozinheiro 47 9,73 Marceneiro 40 8,28 Ferreiro 36 7,45 Roceiro 28 5,79 Sapateiro 21 4,35 Alfaiate 16 3,31

Carpinteiro 11 2,27 Padeiro 11 1,86 Copeiro 9 1, 45 Funileiro 7 1,03 Tanoeiro 5 0,62 Vaqueiro 3 0,42 Barbeiro 2 0,42 Encanador 2 0,42 Jardineiro 2 0,42 Latoeiro 2 0,42 Maqunista 2 0,42 Marinheiro 2 0,42 Pescador 2 0,42 Seleiro 2 0,42 Outras 14 2,8933

Nesse momento, nos interessou primordialmente como eram aprendidos estes ofícios. NINA RODRIGUES foi o pioneiro a apontar a importância das “artes dos colonos pretos” e seus descendentes, resguardando-se seu objetivo de classificar e tipologizar o preto e seus mestiços nos estágios inferiores de uma evolução, sendo fundamental acompanhar suas reflexões ao criticar o que considerava o “(...) natural menosprezo, que votam aos escravizados as classes dominadoras, constituiu sempre, e por toda a parte, perene ameaça de falseamento para os propósitos mais decididos de uma estimativa imparcial das qualidades e virtudes dos povos submetidos.(...) Era uma injustiça, mas era

antes de tudo um erro”34.

Considerava essencial que fosse realizado um levantamento em relação às atividades dos negros. “As manifestações da sua capacidade artística na pintura e na escultura – as mais intelectuais das belas artes – melhor o atestarão agora do que puderam fazer a musica e a dança35. Era necessário e imprescindível estudar o que considerava “suas contribuições”, fosse na escultura, fosse nas artes industriais como ferreiros, obreiros e pedreiros, ainda que considerasse que não era uma habilidade trazida da África, mas resultante do “(...)grande poder de imitação, em chegando ao Brasil, os negros escravos se converteram em excelentes oficiais, ou mestres de ofícios, de cujos trabalhos retiravam grandes proventos (...)36”.

33 MATTOS, Wilson Roberto de . O braço negro em Salvador. In: História Viva: temas brasileiros. Novas pesquisas brasileiras refazem o retrato da presença negra. Março de 2006.

34 NINA RODRIGUES. Op.Cit .161. Grifos nossos.

35 NINA RODRIGUES, R . Os africanos no Brasil.Grifos nossos.

36 Idem. Vários trabalhos discutem a presença africana e de seus descendentes mestiços e crioulos nas expressões artísticas. Ver Marieta ALVES e Maria Helena FLEXOR. Também o recente esforço coletivo

artes da pobreza”, um conjunto de práticas populares, tradições populares, como os trabalhos ornamentais de ferraria, os riscos de milagres, as encarnações de santos, a ourivesaria, enquanto linguagens em que, conforme argumentou WILLIAMS,

”(...) que o próprio signo se torna parte de um mundo físico e material, socialmente criado: ‘ seja em som, massa física, cor, movimento do corpo ou coisa semelhante’; a criação social de significados por meio do uso de signos formais e, então, uma atividade material prática; é na verdade, literalmente, um meio de produção. É uma forma especifica daquela consciência prática que é inseparável de toda atividade social material. Não écomo gostaria o formalismo ) uma operação da, e dentro da , ‘consciência’, que então se torna um estado ou processo à parte, a priori, da atividade social material. É, pelo contrário, desde logo um processo material característico – a criação de signos - e, na qualidade central de sua caracterizarão como consciência prática, está envolvido desde o início

em todas as outras atividades humanas sociais e materiais.37”.

Portanto, não eram obras oriundas de um “grande poder de imitação”, mas criações artísticas no pleno sentido da expressão. Especificamente sobre o ofício de ferreiro a lembrança de Santana sobre o pai, morto quando tinha dois anos, que recoloca a questão da memória social, constitui-se pista para pensar estas atividades entre “pobres”, que este trecho indica ter sido muito presente e tradicional:“ Meu pai chamava-se João Faustino de Santana, era ferreiro. Tinha tenda na rua do Julião. Você vê essas grades de casa antiga? Ele fazia isso!. Era muito procurado, tinha empreitadas com muitas construções38”.

Esta atividade, pelo depoimento de Santana, foi uma das que possibilitaram a existência do que Thales de AZEVEDO chamou “as elites de cor” da Bahia, formada por profissionais, oficiais pobres , pretos e mestiços, que alcançaram uma ascensão econômica, ainda que continuassem afastados das sociabilidades das elites e ligados às tradições afro- brasileiras, ou melhor, constitutores desta. Santana em seu falar ressaltou o papel social do pai, enfatizando costumes da família, próximos do padrão das elites “. A profissão dele dava coordenado por PAIVA, Eduardo, sobre as Minas Gerais até o século XIX “O trabalho Mestiço”, influenciado pelas propostas de Serge Gruzinski sobre os “passeurs culturales”.PAIVA, Eduardo. O

trabalho mestiço. RJ: AnnaBlume; 2001. 37 WILLIAMS, Raymond. Op. Cit.Pp44.

carruagem puxada por dois cavalos39 “.

O depoimento traz alguns dos lugares onde essa mão de obra interviu com sua arte, como ao indicar locais que “ Aquelas grades do Caminho Novo, foi ele quem fez”. Também a localização das tendas dos mestres ferreiros, “ Ele tinha outra tenda de ferreiro numa das casas da Avenida do Contorno.(...) Ele era empreiteiro geral. Muitos faziam os trabalhos em

casa, que ele encomendava, e lhe entregavam prontos”. Do mesmo modo, a localização das tendas dos mestres ferreiros: “ Ele tinha outra tenda de ferreiro numa das casas da Avenida do Contorno.(...) Ele era empreiteiro geral. Muitos faziam os trabalhos em casa, que ele

encomendava, e lhe entregavam prontos”.

Outra importante fonte, a qual damos destaque é o estudo de VALLADARES sobre arte popular e religiosidade, especialmente sobre riscos de milagres e xilogravuras de rótulos e livretos , que reproduzem milagres existentes na Igreja do Bomfim, alguns inclusive destruídos ou extraviados, assim como milagres da Igreja de Nossa Senhora das Candeias40.

O conceito de tradição aqui trabalhado acompanha o proposto por WILLIAMS, no qual a tradição “é sempre mais do que um segmento inerte , historicizado. Não apenas uma sobrevivência do passado; ao contrário, é tomada em seu sentido incorporador, sua força ativamente modeladora, como tradição seletiva,

“(...) uma versão intencionalmente seletiva de um passado modelador e de um presente pré –modelado, que se torna poderosamente operativo no processo de definição e identificação social e cultural “.(...)De toda uma possível área de passado e presente, numa cultura particular, certos significados e praticas são escolhidos para ênfase e certos outros significados e praticas são postos de lado, ou neglicenciados. (...). É uma

39 CASTRO, José Guilherme. Miguel Santana. Op.cit. P.p. Sua filha, Sra. Jaguaracira Santana, anexou um adendo à publicação do depoimento, tomado em 1972, para “dirimir” o que considerava certas impropriedades da memória do pai . A outra tenda do Sr. João Faustino era na Ladeira da Conceição, que Santana atualizou no depoimento como Avenida Contorno.

40 Em visita ao Museu dos Milagres, pertencente a Igreja do Senhor do Bomfim, algumas das reproduções apresentadas por Clarival do Prado VALLADARES não foram encontradas. A Igreja de Ns.ª das Candeias está na cidade de Candeias, a 55 Km de Salvador, e nela também não encontramos os milagres registrados por VALADARES. A informação dada por uma ex-aluna, residente nesta cidade, é que foram retirados pelo pároco, em reforma na década de 1980, sem que o rumo que tomaram tenha sido explicado.

oferece na prática é um senso de continuidade predisposta41.

As práticas de trabalho artístico dos pobres urbanos foram por nós tomadas como registros de tradições culturais, como os milagres estudados por VALLADARES, tanto pintados ou riscados em promessa ao Senhor do Bomfim, quanto os produzidos em agradecimento a Ns.ª das Candeias, em duas épocas, 1939-1940 e 1960- 1961. O autor explicitou

“Anotei os que mais me impressionaram, por uma qualidade artística ou por alguma razão de ordem cientifica. Ex-votos enchem totalmente as paredes e os cantos da conhecida “sala dos milagres”, à esquerda da nave, onde uma porta verde de recortes vazados dá para uma escada larga; as laterais daquela escada estão, também, completamente forrados de quadros. (...) Creio ter percebido o porquê: os ex-votos existem uns junto a outros, enchendo as paredes e quinas, numa arrumação que lhes dá a mão do devoto, sem nenhuma ordem, nem de assunto, nem cronológica. Eles forram superfícies como inscrições, fundindo em seu todo uma fantástica idéia da relação do homem com a adversidade.

A maneira adequada que encontrei foi eliminar a classificação arbitrada em assuntos de clima cientifico, permitindo, ao mesmo tempo, que os ex- votos viessem à leitura do jeito em que eles se acham nas paredes.(...)” 42. Tais registros estão dispostos em três tipos: os ex-votos de cera, madeira ou ourivesaria, alguns com a narrativa do episódio; ex-votos de objetos e pertences ao próprio fato do milagre, como radiografias oferecidas como “fotografias de gratidão; e os riscos de milagres propriamente, que “ (...) são quadros de pintura e desenho, a óleo, aquarela, nanquim, lapis-de-côr, pastel, guache, feitos com todo e qualquer material, sobre tela, papel ou madeira, emoldurados ou não, às vezes encomendados a profissionais de nome: principalmente desenhos de milagres a partir de atropelamentos, de desastres de automóveis,

41 WILLIAMS, R. Op.cit.Pp. 118/119.

42 VALLADARES, Clarival. Os riscadores de milagres: um estudo sobre arte genuína.RJ/SSA: Fundação Cultural do Estado da Bahia; 1967. Pp16. Milagres são iconografias feitas por pintores populares, narrando curas, salvamentos e outros fatos tidos como decorrentes da intervenção divina, pedia-se a um riscador que documentasse a “ dádiva “ com uma pintura do santo e dos personagens envolvidos na situação “milagrosa”.

uma aculturação, uma atividade artística ocorrida na vivência da fé”43.

Santana também referiu-se a um “pátio dos milagres”, que teria existido no largo do Pelourinho.

“ As pessoas procuravam muito Hilário e um rapaz que tinha um pátio de milagres. Ficava aqui também , no Pelourinho, numa loja, descia-se uma escada pra chegar lá. Naquele tempo ele era muito grande porque ele tinha qualquer influencia superior que quando falava qualquer coisa, era sempre verdade. Então, conforme ele via, fazia aquele artesanatos, fazia em pintura e, em madeira, fazia caras e bustos. Tudo que as pessoas tinham, vinham consultar com ele. Pessoas de todas as posições. Com ele trabalhavam outros, mas ele era o chefe, ele e quem dava a intuição.

No enterro dele teve muita coisa, porque gente grande e pequena tinha respeito por ele. o enterro foi muito gabaritado, teve muita gente, muito discurso. Foi enterrado nas Quintas.

Eu não conheci não, ouvi falar, foi antes da minha época44.

Entretanto, mesmo ante a existência destas práticas e tradições, saberes e fazeres, estas foram sumariamente desconsideradas pelas emergentes elites letradas, interessadas em afastar todo e quaisquer resquícios de possíveis africanidades, expressões de ignorância e atraso, cabendo o estudo das mesmas, das falas e expressões, como prevenção a sua continuidade,

“ Não nos consta que, dentre os que por inclinação natural ou por dever de ofiício se ocupam, no Brasil, da língua vernácula, tivesse algum buscado, no estudo do conjunto das línguas introduzidas no país, com a origem dos vícios do nosso falar, a determinação da influência por elas exercidas como fator de corrupção sobre o português da antiga metrópole(...)45”.

Assim, a tarefa fundamental era coligir, fazer o levantamento e o estudo dessas línguas, para evitar a sua dispersão pela sociedade, profilaxia social tão importante quanto as referentes sanitária,

43 VALLADARES, Clarival. Os riscadores de milagres: um estudo sobre arte genuína. RJ/SSA: Fundação Cultural do Estado da Bahia;1967. Pp22.

44 CASTRO, José Guilherme (org) Miguel Santana.SSa: CEAO/EDUFBa;1996 . 45 NINA RODRIGUES: 1935;125

física, espiritualmente em tudo nos mestiçamos, não seria de crer que a este mestiçamento houvesse escapado a linguagem e dele não deva perdurar alguma coisa na massa popular, malgrado a autoridade e o exemplo dos bons mestres, de continuo a se inspirarem nos monumentos escritos da língua vernácula”46.

Missão a que a escolarização vinha propondo-se há meio século, constituindo-se nas estratégias de disciplinamento e controle dos pobres, via a instrução e a educação. Nos próximos capítulos acompanhamos algumas dessas histórias.

46 Idem.

CAPITULO II : FUTUROS CIDADÃOS - A ESCOLARIZAÇÃO