• Nenhum resultado encontrado

reivindicação por um ensino formal teve início somente quando a legislação – nacional e internacional - em favor da educação bilíngüe para surdos começou a surgir e ganhar alguma importância.

Em 1994, a Declaração de Salamanca propôs um novo paradigma para a visão educacional sobre as deficiências de forma geral; esta veio assegurar os direitos e a integração de sujeitos com diversas deficiências no âmbito educacional. O documento defende que a educação de pessoas com deficiência deve ser parte integrante do sistema regular de ensino e considera suas diferenças; reconhece e incentiva em nível mundial a inserção do sujeito surdo na sociedade, indicando a necessidade de garantir seu direito de acesso às informações em sua língua (BRASIL, 1994).

O Brasil também passou por mudanças nas políticas educacionais, adotando a Educação Inclusiva a partir das Diretrizes Nacionais para a Educação Especial na Educação Básica (BRASIL, 2001), que propõe e postula uma reestruturação do sistema educacional no ensino regular, como um espaço que deve se adequar a todos os educandos e no qual a diversidade deve ser inclusive desejada. Dessa forma, alunos surdos passam a freqüentar as escolas regulares, porém poucas providências têm sido tomadas no sentido de atender suas necessidades; a criança surda fica alocada em sala de aula regular e se quer tem seus direitos lingüísticos respeitados, pois até então a presença de professores bilíngües ou intérpretes de LIBRAS não era prevista no contexto educacional.

Em 2002 a LIBRAS foi reconhecida, oficializada através da Lei 10.436 (BRASIL, 2002), como meio de comunicação e expressão, como um sistema lingüístico de natureza visual- motora com estrutura gramatical própria, oriundo de comunidades de surdos do Brasil; a Lei estabelece que os sistemas educacionais federal, estaduais e municipais devem garantir a inclusão do estudo da LIBRAS em cursos de formação de educadores e de profissões ligadas à surdez. No momento em que a LIBRAS passa a ser respeitada como uma língua própria de um grupo social nota-se que os surdos adultos podem assumir um papel importante no processo educacional de outros surdos, sobretudo crianças e adolescentes.

Recentemente foi publicado o Decreto 5.626/05 (BRASIL, 2005), que trata do direito das pessoas surdas ao acesso às informações através das LIBRAS, o direito a uma Educação Bilíngüe, a formação de professores bilíngües e de Intérpretes de LIBRAS (ILS), dentre outras providências. No decreto figuram pela primeira vez, oficialmente no país os profissionais: profes- sor surdo e instrutor surdo de LIBRAS - com um capítulo destinado a formação destes, fato que dá novos rumos à educação dos surdos e interessa ao escopo deste trabalho, visto ser um assunto relativamente “recente” e que requer estudos aprofundados visando conhecer melhor o papel destes educadores no cenário escolar.

Em suma, apesar de ser uma figura ainda insuficientemente presente nos contextos educacionais, o Instrutor Surdo vem ganhando algum espaço de atuação em diferentes projetos. No entanto, constata-se, uma interpretação vaga ou indefinida quanto a essa atuação, o que in- dica a necessidade de se intensificar o debate sobre seu papel (GURGEL, 2004), atuação e formação.

A presente pesquisa está inserida no contexto de um programa educacional de inclusão de alunos surdos, que acontece desde agosto de 2003, a partir de uma parceria da Universidade Metodista de Piracicaba (UNIMEP) com a Secretaria Municipal de Educação/Setor de Educação Especial do município de Piracicaba/SP. O programa visa incorporar a LIBRAS ao espaço escolar, repensando metodologias e desenvolvendo didáticas apropriadas para estes alunos. Os dados foram colhidos em uma Escola de Ensino Fundamental, que conta com a presença de Intérpretes de LIBRAS (ILS) nas salas de aula e uma Instrutora Surda – foco desta pesquisa. Esta é responsável por: Oficinas de LIBRAS para alunos surdos, com o intuito de propiciar o desenvolvimento lingüístico dos mesmos; ensino de LIBRAS para profissionais da escola; ensino de LIBRAS para os familiares das crianças. A escola conta ainda com auxiliares de pesquisa bilíngües, que colaboram para a articulação das atividades e atuam juntamente com Instrutor Surdo e Intérpretes, orientando-os e acompanhando as atividades. No período em que foi realizada a pesquisa - 2004 -, a autora deste trabalho atuou nesta função.

Nosso objetivo é melhor conhecer os aspectos da atuação e formação dessa Instrutora Surda, definidos e narrados sob sua ótica. Para tal foi realizada entrevista aberta vídeo- gravada, em LIBRAS e traduzida para o português para apresentação dos dados, com recortes de episódios relativos à sua formação e atuação. A Instrutora tem 26 anos, ensino médio e, até o ano de 2003 nunca havia atuado no ensino das LIBRAS. Realizou estágio de observação anteriormente junto a dois Instrutores Surdos diferentes; recebeu capacitação de cinqüenta horas antes de iniciar seu trabalho, a fim de discutir aspectos de sua atuação e as dificuldades freqüentemente encontradas no âmbito educacional. Desde então, sua formação se dá “em serviço”, por meio de reuniões semanais com os pesquisadores responsáveis. Nestas reuniões a Instrutora narra suas dificuldades, organiza atividades, compartilha conquistas e dúvidas com outros profissionais e Instrutores Surdos, discute aspectos relacionados ao ensino bem como sobre as diferentes necessidades de aprendizagem de cada grupo. Passados três anos de atuação nesse programa, julgamos relevante dar voz a essa surda buscando contribuir para a formação de outros profissionais, considerando as poucas pesquisas existentes que abordam tal tema. A seguir alguns apontamentos sobre a atuação da Instrutora Surda:

QUANTO AO ENSINO A CRIANÇAS SURDAS

“Tem, por exemplo, crianças de 8 e de 13 anos. É difícil porque o nível de conhecimento das LIBRAS é diferente, as atividades que gostam são diferentes, o jeito que cada um gosta. O menor gosta de histórias, o maior gosta de conversar, são diferentes... eu percebo as diferenças e planejo atividades de acordo com o que gostam, com o jeito deles. Consigo preparar mas é difícil. Preciso sempre treinar para evoluir.”

A Instrutora afirma sua dificuldade de trabalhar com crianças de diferentes idades e níveis de conhecimento num mesmo ambiente; já que no programa são agrupadas crianças de duas séries (1ª - 2ª / 3ª - 4ª) para viabilizar seu atendimento nas Oficinas de LIBRAS. De acordo

com os pressupostos da Abordagem Bilíngüe (LODI, 2000) a primeira língua da criança surda deve ser a língua de sinais, que deve ser ensinada o mais precocemente possível a fim de possibilitar um desenvolvimento lingüístico adequado.

Das crianças citadas, poucas iniciaram sua vida escolar com algum conhecimento das LIBRAS e outras o fizeram com idade bastante avançada. Cabe a Instrutora ensinar de maneira a abranger todo o grupo, com atividades que interessem e despertem suas capacidades lingüísticas. Lacerda e Caporali (2001) ressaltam que o ensino deve acontecer de forma contextualizada, propiciando a aprendizagem adequada, de acordo com as idades e interesses de cada grupo. E embora a própria Instrutora destaque os obstáculos que encontra, vem atuando de maneira adequada, pois planeja as atividades com cuidado e conta com apoio especializado.

QUANTO AO ENSINO A PROFESSORES/FUNCIONÁRIOS OUVINTES:

“Eu pensava que era só ensinar os sinais, soltos. Eu não sabia que precisava ensinar a língua, a LIBRAS, a comunicação. Ninguém me ensinou isso antes, eu não sabia nada, ninguém me explicou. O V. ensinava dessa forma. A R. contava histórias e eu não entendia...foi difícil mas hoje consigo fazer isso.”

Neste trecho observa-se reflexos da educação de três instrutores surdos; há indícios de que nenhum deles sabia como ensinar de forma adequada. Gurgel (2004) cita que muitos dos surdos vivenciaram uma escolaridade insuficiente; assim quando se tornam Instrutores, podem atuar sem uma reflexão consistente sobre seu papel, orientando-se mais por uma perspectiva intuitiva e dependente de sua experiência individual. Algumas pesquisas (GURGEL, 2004; TEIXEIRA, 2004; LACERDA e CAPORALI, 2001) apontam para esse tipo de ensino que reproduz uma educação insuficiente, sendo possível notar tais condutas durante sua atuação através de: ensino descontextualizado, repetição de sinais, uso de listas de palavras, nomeação, memorização, conduta rígida etc. Percebe-se também que antes de sua formação “em serviço” a Instrutora desconhecia aspectos didáticos e metodológicos. Isso significa que a formação oferecida a ela em seu percurso de trabalho teve enorme importância, levando-a a atuar de forma mais adequada, adaptando suas aulas conforme a necessidade de cada grupo.

QUANTO À FORMAÇÃO:

“... demorou um ano até eu começar a entender. Eu fui treinando, participava de reuniões com a C. e a A. em que discutíamos as coisas. Sofri muito, porque eu não sabia nada! Eu nunca havia trabalhado antes, nunca! Era a primeira vez e eu não sabia como trabalhar. Nas reuniões elas me ajudavam, me explicavam como eu devia ensinar os surdos, como preparar as atividades; me ajudavam.”

Surdo. C. e A., coordenadoras deste programa, têm um papel fundamental na construção de conhecimento da Instrutora em questão, levando a ela os fundamentos necessários para uma boa atuação. Novamente Lacerda e Caporali (2001) abordam a dificuldade em encontrar instrutores surdos com uma formação adequada que consiga contemplar os aspectos desejados. Isso só é possível através de um trabalho árduo e com formação continuada e aprofundada, buscando adequá-lo para que possa adquirir uma postura de educador e portanto, atento às características especificas de cada grupo. A fluência em LIBRAS não é suficiente para que ele seja um bom professor; é importante também que ele conheça cada vez mais sobre a LIBRAS, seu funcionamento e reflita sobre seus aspectos.

Através deste estudo pode-se notar que o Instrutor Surdo é figura indispensável no novo contexto educacional inclusivo. Entretanto atuação e formação devem ser prioridade para sua inserção neste novo mercado, pois o processo educacional do surdo deixa muito a desejar e, sem tais requisitos, não é possível oferecer ensino de qualidade a educandos surdos e profissionais ouvintes. Uma formação continuada parece ser a melhor maneira de fazê-lo, buscando sempre a reflexão, discussão junto a outros profissionais, estudos, atualizações. Assim o Instrutor não será “apenas” aquele que tem o domínio da língua de sinais para o ensino, mas tornar-se-á um verdadeiro educador, associando seus próprios conhecimentos a uma percepção das reais necessidades de aprendizagem de seus alunos e adequando sua forma de ensino.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

BRASIL. Declaração de Salamanca e linhas de ação sobre necessidades educativas especiais. Brasília: CORDE, 1994.

______. Diretrizes nacionais para a educação especial na educação básica. Brasília: Ministério da Educação - Secretaria de Educação Especial (Seesp), 2001.

______. Lei 10.436. Dispõe sobre a Língua Brasileira de Sinais - Libras e dá outras providências. Publicada no Diário Oficial da União em 24/04/2002.

______. Decreto Nº 5.626. Regulamenta a Lei nº 10.436, de 24 de abril de 2002, que dispõe sobre a Língua Brasileira de Sinais – Libras, e o art. 18 da Lei nº 10.098, de 19 de dezembro de 2000. Publicada no Diário Oficial da União em 22/12/2005.

GURGEL, T.M.A. O papel do instrutor surdo na promoção da vivência da língua de sinais por crianças surdas. 2004. 90f. Dissertação (Mestrado em Educação) – Universidade Metodista de Piracicaba, Piracicaba, 2004.

LACERDA, C.B.F. de, CAPORALI, S.A. O papel do instrutor surdo no ensino de língua de sinais para a comunidade surda e familiares usuários da Clínica-escola de Fonoaudiologia da UNIMEP: focalizando a questão metodológica. Relatório final de pesquisa, FAP/UNIMEP, 2001.

LODI, A. C. B. Educação bilíngüe para surdos. In: LACERDA, C.B. F. de; NAKAMURA, H.; LIMA, M.C. (orgs.) Fonoaudiologia: Surdez e Abordagem Bilíngüe. São Paulo: Plexus, 2000. p. 64-83.

MOURA, M.C. de; LODI, A.C.B.; HARRISON, K.M.P. História e Educação: o Surdo, a Oralidade e o Uso de Sinais. In: LOPES FILHO, O.C. Tratado de Fonoaudiologia. São Paulo: Ed. Roca,1997. p. 327-357.

TEIXEIRA, K.C. A constituição do indivíduo surdo e a institucionalização da surdez: adaptação e resistência. 2004. 110f. Dissertação (Mestrado em Educação) – Universidade Metodista de Piracicaba, Piracicaba, 2004.

INTRODUÇÃO – A QUESTÃO DA EDUCAÇÃO ESPECIAL E INCLUSIVA

Nessa última década, crescentemente discute-se sobre a “inclusão”, que trata do respeito às diferenças e à participação igualitária dos cidadãos. No caso de crianças com necessidades educacionais especiais, mais especificamente das com deficiências (físicas, sensoriais e/ou mentais), a inclusão abarca sua participação na sociedade em geral e, particularmente, em instituições de educação regular (“inclusão escolar”).

Considerando-se a participação social e escolar de crianças com deficiências, no Brasil, entende-se que aquela tem se dado de forma diversa, ao longo da nossa história. Jannuzzi (2004), em análise da Educação Especial no Brasil, indica a presença de múltiplas vozes, lutas e movimentos; o entrelaçamento de discursos, intenções pessoais e de grupos particulares, tanto nacional como internacionalmente, cada qual situado em contextos sócio-econômico, histórico e culturais diversos. Isso teria resultado na construção de diferentes paradigmas com relação ao lugar atribuído à criança com deficiência, com a concretização de diferentes formas de concebê- la e atuar junto a ela.

1.2- Educação Especial e Inclusiva, no Brasil

Para compreender as múltiplas e entrelaçadas práticas discursivas existentes hoje em dia, torna-se importante traçar suas origens históricas, resgatando-se grandes marcas/marcos e paradigmas, mesmo que sucinta e simplificadamente.

Pode-se dizer que há um primeiro período, até o século XIX, em que o paradigma dominante para alguns grupos de crianças (cujas deficiências eram mais graves) era o da exclusão social quase que total. No entanto, as organizações de crianças com deficiências foram se ampliando. Isso promoveu uma série de desdobramentos, os quais, articulados a vários movimentos nacionais e declarações internacionais, resultou na constituição e organização da educação dos “excepcionais”. Esse processo se deu mais especificamente nas décadas de 50 e 60, resultando em nova perspectiva a essas crianças, apesar do modelo vir do campo médico e partir da noção de deficiência; ainda, de que somente parte das crianças era considerada como “educável”. Esse segundo momento é o que tem sido contemporaneamente denominado de segregadora, as crianças ficando mais confinadas a instituições especializadas.

DEZ ANOS DE INCLUSÃO DE PESSOAS COM