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Indicações gerais sobre a metodologia utilizada

Ao longo do trabalho, em especial no início de cada parte da tese, descreverei, de maneira mais detalhada, a metodologia requerida e utilizada nas principais etapas da pesquisa. Aqui, discorro, em linhas gerais, sobre as fontes utilizadas e sobre alguns movimentos metodológicos, inerentes à “operação historiográfica”49 e necessários ao processo de construção do trabalho.

Definido o objeto de pesquisa, a questão da escolha das fontes se impunha e me instigava, diante das várias possibilidades. Os próprios folhetos, a princípio, já constituíam uma documentação privilegiada. Analisá-los, buscando, nos textos/narrativas e no impresso, o leitor pensado/representado/visado pelo autor e pelo

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Cf. Michel de Certeau: “Nesta perspectiva, gostaria de mostrar que a operação histórica se refere à combinação de um lugar social, de práticas ‘científicas’ e de uma escrita. Essa análise das premissas, das quais o dicurso não fala, permitirá dar contornos precisos às leis silenciosas que organizam o espaço produzido como texto.” (1982, p.66).

editor parecia ser extremamente profícuo para meu problema de pesquisa. Busquei analisar, no próprio impresso – capa, contra-capa, marcas tipográficas, disposição dos poemas, indicações de onde eram vendidos, referências a direitos autorais – indícios de quem era o leitor visado pelo poeta/editor. Nesse momento, analisei o universo total de folhetos coletados (109), publicados nas cinco primeiras décadas do século. Procurei perceber, ainda, através da análise do próprio texto de alguns poemas (oito), quem era esse leitor/ouvinte visado pelo autor/editor. Diversos acervos foram consultados para a coleta dos folhetos, em especial o da Fundação Casa de Rui Barbosa, no Rio de Janeiro, o do Instituto de Estudos Brasileiros/USP, em São Paulo, e o do Fundo Raymond Cantel, em Poitiers, França50. Foram consultados também os acervos de folhetos da Biblioteca Pública Estadual de Pernambuco e da Fundação Joaquim Nabuco, ambos no Recife51. Ao lado desses acervos, várias pessoas me emprestaram ou doaram suas coleções particulares de folhetos. Dois entrevistados também me cederam folhetos, alguns mais antigos, outros mais recentes. Além disso, também comprei folhetos nos locais onde ainda podem ser encontrados, no Recife.

Acreditava, hipótese que se confirmou ao longo da pesquisa, que, ao lado do leitor visado pelo poeta e editor (reconstituição feita a partir da análise dos folhetos), seria interessante conhecer o “leitor empírico”, de “carne e osso”, para compreender melhor como a leitura é um processo ativo de construção de sentidos. O trabalho com entrevistas parecia, pois, imprescindível: buscar os sujeitos e ouvi-los, possibilitando a

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O acervo da Fundação Casa de Rui Barbosa, localizado no Rio de Janeiro, é composto de cerca de 8000 folhetos, reunidos a partir de doações de pesquisadores (entre os quais Cavalcanti Proença e Sebastião Nunes Batista); nele podem ser encontrados folhetos do início do século à década de 70. Segundo o seu Guia do Arquivo, o acervo de folhetos de cordel do Instituto de Estudos Brasileiros, da Universidade de São Paulo, possui 2.820 folhetos, “dos mais expressivos autores de literatura de cordel do Norte e Nordeste”, compreendendo o período de 1865 a 1983. O acervo está dividido em seis grandes coleções: a de Leandro Gomes de Barros (52 folhetos, cópias de originais pertencentes ao Centro de Pesquisa da Fundação Casa de Rui Barbosa); Ruth Brito Lemos Terra (reúne cerca de 500 folhetos); as coleções do IEB (1262 títulos); José Aderaldo Castello (total de 513 exemplares e 377 títulos); Mário de Andrade (97 folhetos); Fundo Villa-Lobos (527 títulos). Uma descrição minuciosa dessa última coleção pode ser encontrada em Ruth Terra (1981). Como os próprios títulos das coleções indicam, em alguns casos, elas foram reunidas a partir de doação de pesquisadores ou de seus parentes e, em outros casos, de doações avulsas. O Fundo Raymond Cantel, em Poitiers, França, em fase de organização, reúne cerca de 5000 folhetos, coletados pelo estudioso francês que dá nome ao acervo, em suas pesquisas no Brasil. A organização de todos os acervos citados é bastante variada: em alguns casos, os folhetos estão classificados por ordem alfabética de autores, em outros por títulos, em outros por temas.

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Esses acervos reúnem folhetos publicados mais recentemente, principalmente a partir das décadas de 60 e 70.

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reconstrução de trajetórias singulares de leitores/ouvintes (idosos e pertencentes às camadas populares), foram duas das experiências mais ricas do processo de pesquisa. As entrevistas possibilitaram visualizar e ouvir rostos e vozes de parcelas da população muitas vezes consideradas de maneira homogênea e que, embora expressem uma época, um pertencimento social, de gênero, de raça/etnia, de origem (rural ou urbana), são compostas de indivíduos singulares, únicos.

O trabalho com romances e memórias, já realizado em pesquisas anteriores, parecia um complemento necessário às duas outras fontes principais. A princípio, pensei que, nesses registros, pudessem estar descritas experiências de leituras de folhetos. Aos poucos, essa hipótese foi sendo negada, fazendo com que meu foco em relação a essas fontes as tornasse potenciais para a reconstrução das práticas de usos do impresso na cidade/Estado no período estudado, sem a qual eu não compreenderia o lugar ocupado pelo cordel. O trabalho com memórias e romances revelou-se muito rico, constituindo uma fonte privilegiada para reconstituir aspectos da vida social de um determinado lugar e época, através das representações de pessoas – algumas anônimas, outras conhecidas de um público mais amplo – que um dia escreveram sobre si próprias ou sobre personagens inscritos naquela paisagem e naquele tempo. Sabe-se que, quanto mais se sabe sobre a época que se está pesquisando, em um lugar específico, mais condições se tem de compreender e interpretar questões – muitas vezes estranhas ao pesquisador – que emergem da documentação trabalhada. No total, analisei 11 romances e 15 autobiografias. Esse material foi coletado sem uma sistemática específica de pesquisa, abrangendo diferentes espaços: bibliotecas públicas e pessoais, livrarias, sebos, arquivos públicos.

Ao longo do processo, outros documentos, dependendo das necessidades que se foram impondo, foram incorporados a esse corpus documental básico, como jornais (em especial os que foram utilizados no estudo descrito no segundo capítulo da tese), registros censitários, anuários estatísticos, relatórios de governos, etc., coletados no decorrer da pesquisa em diversas instituições, como a Biblioteca Pública Estadual, o Arquivo Público Estadual, a Fundação Joaquim Nabuco, o IBGE/Pernambuco, as Biblioteca Central, do Centro de Filosofia e Ciências Humanas e do Centro de Educação da Universidade Federal de Pernambuco, livrarias, sebos, no Recife; a livraria

e editora da Universidade Federal da Paraíba, em João Pessoa; a Biblioteca Pública Estadual Câmara Cascudo e o Memorial Câmara Cascudo, em Natal.

As fontes coletadas foram, ao longo da pesquisa, cruzadas e confrontadas a partir de determinadas categorias, algumas das quais definidas a priori e outras emergentes do contato com o próprio material empírico ou com a bibliografia sobre o tema. Algumas dessas categorias tornaram-se nucleares na pesquisa, como as de popular, Nordeste, urbano e rural, oral e escrito, além das que eu já havia eleito anteriormente: gênero, classe, raça/etnia e geração52.

A utilização de uma pluralidade de fontes no trabalho historiográfico, ao mesmo tempo que abre maiores possibilidades para a compreensão do que se estuda, impõe uma série de exigências. A busca de metodologia(s) que pudessem auxiliar na tarefas de produção, exploração e análise dos documentos foi permanente ao longo de todo o processo de pesquisa: cada fonte exige um conhecimento sobre sua especificidade, cada pergunta imposta à fonte ou que a fonte impõe exige um trabalho singular – às vezes manual (de cópia53, de montagem de quadros, de produção de fichas), às vezes com o auxílio do computador (auxiliando no processo de despedaçar, separar, reunir de novo). Paciência, humildade – até mesmo para saber que a falta é intrínseca ao trabalho do pesquisador e que a busca do método é, em alguma medida, irrealizável54-, sensibilidade, criatividade, aproximação/envolvimento e, ao mesmo tempo, distanciamento (para que dele se possa

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Para uma discussão sobre categorias em história e, especificamente em história da educação, ver Chaïm Perelman (1969) e Eliane Marta Lopes (1992).

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Cada vez mais os historiadores têm enfatizado que o uso das modernas tecnologias que caracteriza parte dos arquivos hoje não substitui o trabalho aparentemente mecânico da cópia. Para Arlete Farge (1989), a utilização de meios diferentes para a coleta de documentos muda a sua própria interpretação e, embora pareça perda de tempo, a cópia é considerada, pela autora, fundamental: "Le goût de l'archive passe par ce geste artisan, lent et peu rentable, où l'on recopie les textes, morceaux après morceaux, sans en transformer ni la forme, ni l'orthographe, ni même la ponctuation. Sans trop même y penser. En y pensant continûment. Comme si la main, ce faisant, permettait à l'esprit d'être simultanément complice et étranger au temps et à ces femmes et hommes en train de ce dire." (p.25). A cópia auxilia, assim, no processo de apropriação do documento pelo pesquisador: “Copiando, a sua apreensão do documento é muito mais completa do que se você só ler o documento. Se você pega um documento que já vem prontinho, você acaba pegando pela rama, lhe escapam coisas que normalmente não escapam quando você se detém no documento.” (Evaldo Cabral de Mello em entrevista publicada na Folha de São Paulo em 12/09,1999, p.5).

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“Há quem fale do método gulosamente, com exigência; no trabalho, o que desejam é o método; este nunca lhes parece suficientemente rigoroso, suficientemente formal. O método torna-se uma Lei; mas, como esta Lei é privada de qualquer efeito que lhe seja heterogéneo (ninguém pode dizer o que seja, em ‘ciências humanas’, um ‘resultado’), ela é infinitamente irrealizável; posicionando-se como uma pura metalinguagem.” (Roland Barthes, 1987, p.271).

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tomar posse) do objeto, confrontação e estabelecimento de relações entre os estudos já realizados sobre o tema ou sobre a época e o lugar, as leituras teóricas e os vários documentos – colecionando-os, articulando-os, cruzando-os, separando-os, organizando-os, abandonando-os quando necessário55 – foram exigências cotidianas56. O reconhecimento do meu posicionamento frente ao objeto (que ora provocava repulsa, ora provocava paixão) e o seu registro, em algumas fases da pesquisa, sistemático, foi imprescindível para que pudesse melhor compreendê-lo, revisitá-lo, dele tomar posse e torná-lo texto. À medida que fui realizando a análise dos dados, iniciei, mais sistematicamente, a escrita do texto, parte intrínseca à própria produção da História57. Em todo o processo, as idas e vindas entre as várias etapas descritas foram constantes. Os estudos sobre história cultural e da leitura, as pesquisas que se detêm sobre a relação entre oralidade e letramento, as discussões em torno da cultura popular e da “história” oral nortearam, teórica e metodologicamente, a investigação.