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O universo de impressos e outros produtos anunciados nos folhetos

1. Indicadores de quem era o leitor/ouvinte visado pelos poetas e/ou editores

1.2. O universo de impressos e outros produtos anunciados nos folhetos

A análise dos outros tipos de produtos (impressos, em particular) anunciados nos folhetos, principalmente em suas contra-capas e quarta-capas, constitui um outro tipo de indicador de quem era o público leitor primordialmente visado pelos poetas e editores. Esses produtos permaneceram os mesmos ao longo do tempo? Em que universo de leituras/de impressos os autores e editores pressupunham que estivessem inseridos os seus possíveis leitores/ouvintes?

Os folhetos datados de 1900 a 1909 não trazem anúncios de propaganda de nenhum produto. Já naqueles analisados do período de 1910 a 1919 e nos não datados mas provavelmente impressos nas duas primeiras décadas do século, destacam-se os anúncios de outros títulos de folhetos publicados pela mesma livraria e editora, principalmente no caso da Livraria Pedro Baptista, ou de histórias de autoria do mesmo poeta do folheto. Além dos catálogos e extratos de catálogos de editores, os folhetos trazem também, em número significativo, propaganda das livrarias em cujas tipografias foram impressos. Que artigos são anunciados nessas publicidades de livrarias? Inicialmente, como era de se esperar, livros. Pedro Baptista anuncia, dirigindo-se aos negociantes que, em sua livraria, podiam ser encontrados “livros em todos os generos e de auctores adoptados”97. Os livros escolares, explicitados na expressão “autores adoptados”, são também anunciados na propaganda da Papelaria Recife98, que diz colocar à venda “livros de instrução”. Em outro caso, o poeta Antonio Baptista Guedes publica a propaganda de sua própria loja, localizada em Guarabira que, além de vender folhetos e livros de poesias99, vendia também “livros de litteratura, sciencias, manuaes”100.

Entre os artigos anunciados, além dos livros, destacam-se aqueles utilizados nas escolas e em atividades de desenho e escrita. No anúncio da Papelaria Recife, são anunciados artigos escolares, religiosos e para desenho. Na livraria Pedro Baptista, são anunciados

97 Barros, 1919a. 98 Barros, s.d.(b). 99

Como A lira dos poetas, coletânea de poesias consideradas eruditas, organizada pelo também autor de

cordéis Francisco das Chagas Baptista.

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“ardosias, crayons, lapis, papel para escripta e para desenho, mata borrão, tintas para aquarella e de escripta, compassos e lapis para desenho, giz escolar, cadernos de calligraphia vertical e americana, noções de desenho e pintura, borrachas, furadores para papel, palhetas para instrumentos, giz marca ‘Elephante’ para bilhar, caixas de papel e centos de enveloppes, boletins escolares, cadernas para dictado, cordas para violão, bandolim, quadros, molduras e estampas, etc., etc.”101

Além dos livros e de artigos escolares, os anúncios traziam também publicidade de trabalhos tipográficos realizados na gráfica da livraria. Em propaganda publicada da Papelaria Recife, por exemplo, os redatores divulgam que a papelaria funcionava também como livraria, tipografia e executora de trabalhos de “encadernação” e “pautação.” Anuncia-se como especialista na realização de trabalhos tipográficos, como “cartões de visita”, “participações”, “convites”, “facturas” e “memorandus”. Afirma que fazia impressões a cores “com esmerado gosto artistico.”

Finalmente, os anúncios trazem também propagandas de outros artigos vendidos nas papelarias e livrarias. No anúncio já referido da Papelaria Recife, são anunciados, genericamente, objetos para presentes e, especificamente, perfumarias do “afamado fabricante Coty”. A papelaria se refere como a “unica agencia geral dos Clubs da Casa Abilio do Rio de Janeiro”, promovendo sorteios semanais de bicicletas, automóveis, máquinas de escrever, pianos, vibradores elétricos e “o utilissimo Filtro Fiel”. Alguns desses artigos pareciam também ser vendidos – inclusive à prestação – também na Papelaria. Na loja de Antonio Baptista Guedes, também já referida, além de folhetos e livros, eram vendidos “joias, bijouterias, relogios de algibeira, etc.”102

Analisando os tipos de produtos anunciados nos folhetos nas duas primeiras décadas desse século, pode-se observar que o público visado pelo editor é, além de leitor de folhetos, consumidor de artigos típicos do universo letrado, como livros e artigos escolares, e também dotado de um mínimo poder aquisitivo para ser capaz de adquirir produtos relativamente supérfluos, como perfumes, e participar de sorteios de produtos sofisticados e caros, como automóveis e pianos. O perfil dos produtos anunciados mudará, gradativamente, no decorrer do tempo.

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Barros, 1919a. Um anúncio semelhante é anunciado em Barros, 1919b.

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Nas duas décadas seguintes, ou seja, no período que vai, aproximadamente, de 1920 a 1939, a natureza dos anúncios publicados permanece semelhante à observada no momento anterior. Inicialmente, propagandas de outros títulos de folhetos são publicadas em quase todos os exemplares analisados. Além de trazer catálogos ou extratos de catálogos dos livretos, os folhetos continuaram a publicar propagandas de livrarias e de tipografias, mas em menor quantidade do que o observado no período anterior. Em um dos folhetos, Pedro Baptista103 publica uma relação dos livros escolares, com a identificação de seus respectivos autores, à venda em sua livraria: cartilhas extremamente difundidas no Brasil da época, como as de Arnaldo Barreto e Mariano de Oliveira; coleções de livros de leitura também bastante utilizadas em todo o país, como os de Felisberto de Carvalho e Puiggari Barreto; compêndios de história do Brasil, de Geografia, de Ciências Físicas e Naturais, de Aritmética e Geometria (alguns de autores bem populares no período, como Artur Trajano e Abílio Cezar Borges); livros de História Bíblica, de Ciências; gramáticas como as de João Ribeiro, etc. Outros livros escolares, como A Patria Brazileira, de Coelho Neto e Olavo Bilac e Coração, de Edmundo Amicis, paleógrafos e cadernos de caligrafia também constavam no catálogo da livraria.

Além dos livros escolares, o editor anuncia também a venda, em sua livraria, de outros tipos de livros (classificados, no anúncio, como “livros diversos”). Nesse item, são listados, inicialmente, títulos tradicionais, de grande alcance popular, de teor místico, como O grande livro de S. Cypriano, A Bruxa Evora, O livro completo dos Sonhos e O Lunário Perpétuo104. Romances em prosa, de origem européia, difundidos naquele momento e posteriormente através dos cordéis, também eram anunciados, como A Historia do Imperador Carlos Magno e Historia de Genoveva de Brabant. Na mesma direção, títulos não redifundidos através de folhetos, mas extremamente populares, como O Romance completo de Rocambole105 e As mil e uma noites também constavam no anúncio. Livros que buscam auxiliar o leitor na produção escrita também ocupam

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Barros, 1920.

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O Lunário Perpétuo é um guia astrológico traduzido do espanhol para o português pela primeira vez em 1703, por Miguel Menescal, com o título completo de O non plus ultra do lunário e prognóstico

perpétuo, geral e particular para todos os reinos e províncias, composto por Jerónimo Cortez, valenciano, emendado conforme o expurgatório da Santa Inquisição e traduzido em português.”

(Candance Slater, 1984, p.103).

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papel significativo no catálogo publicado: Cartas de Amor, Secretario Moderno e Secretario Brazileiro são alguns dos títulos desse gênero. Aparecem também manuais de uso pragmático, como Diccionario das Flores e Fructas, O Medico da Familia, Medicina para Todos, Manual do Destilador, Manual do Padeiro, Guia da Cozinheira, Conselheiro dos Amantes106. De modo geral, esses títulos circulavam na época, quando os índices de alfabetização eram ainda muito pequenos e quando o público leitor era ainda muito restrito na maior parte do país, em diferentes camadas sociais.

Finalmente, em um terceiro item da publicidade eram anunciados livros religiosos, como O Escudo Admiravel, Adoremos, Mez Mariano, Historia e vida de Santos, o novo e o antigo testamentos, além de “diversos manualsinhos de missa para crianças”. Artigos religiosos, como terços, medalhas, crucifixos, santinhos, estampas, “quadros do Coração de Jesus para entronizações”, entre outros, também eram vendidos na livraria. Além dos livros, outros artigos escolares, como “lousas, crayons, lapis de cores para dezenho pennas, canetas, borrachas, papel almaço, matta-borrão, pegadores para livros furadores, grampos para papel etc.”, objetos para desenho, como “cadernos, aquarellas, fuminhos fuzains” e métodos para o aprendizado da música também eram anunciados. Em um outro folheto, é publicada uma propaganda da gráfica pertencente a João Martins de Athayde, quando o poeta ainda não havia se dedicado à impressão exclusiva de folhetos, como aconteceria alguns anos mais tarde107. Nela, o editor anuncia que “confecciona com perfeição todo e qualquer trabalho concernente à arte”, como “memoranduns”, “facturas”, “cartões”, “enveloppes”, “rotulos para pharmacia”, “rotulos para bebidas”, “prospectos”, “livros”, “bilhetes de rifa”, etc., além de fabricar tintas de impressão e massa para rolos.

Nas décadas de 1940 e 1950, pode-se observar uma mudança significativa no teor dos anúncios de publicidade impressos nos folhetos. Títulos de cordéis, em alguns casos denominados de “romances”, já publicados ou a serem editados, continuam sendo anunciados em vários exemplares analisados. Ao lado deles, aparecem, em muitos folhetos analisados, a indicação de que, no mesmo local, eram vendidos também outros

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Os livros de “saber prático” compunham parcela significativa dos títulos de literaturas semelhantes ao cordel encontradas em outros países. No caso francês, os livros pertenciam, sobretudo, às áreas de medicina, botânica e cozinha. Ver, em especial, Lise Andries (1996) e Robert Mandrou (1985/1964).

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impressos considerados e tornados cada vez mais “populares”: genericamente, os anúncios falam de “livros”, “revistas”; são específicos somente ao se referirem a outros impressos de “larga circulação”. As modinhas, “dos mais conhecidos e aplaudidos autores brasileiros”, aparecem em anúncios publicados em vários folhetos, como nos da agência “A Pernambucana”, localizada no Mercado Modelo da Bahia e do fiteiro de Leon Piancó, um dos agentes revendedores. Em um dos folhetos publicados por Rodolfo Coelho Cavalcante é publicado o anúncio de um “jornalsinho de sambas e marchas, etc”, intitulado O trovador popular. “Novenas” e “orações” aparecem em vários folhetos publicados pela Tipografia São Francisco, assim como um livro, Livro das duas palavras, que continha “...o tratado da vida do Padre Cicero Romão Batista, onde se encontra o seu testamento e a copia de uma carta que ele escreveu quando estava em Roma para sua mãe”. O “famoso Lunário Moderno”, trazendo “...todos os calculos astrologicos para os invernos do Norte brasileiro”, também é anunciado em vários folhetos. A quarta-capa de um dos folhetos impressos na Tipografia São Francisco traz estampado um anúncio de um impresso provavelmente bastante difundido entre o público consumidor de folhetos: o horóscopo108.

“Se o leitor amigo deseja fazer o seu Guia Pratico ou Horoscopo, porque deseja saber pra qual parte deve ir, qual é a profissão que deve exercer, se é feliz no casamento ou não, ano favoravel ou desfavoravel. os ramos que deve conseguir, basta mandar as datas do nascimento acompanhadas de Cr. 60,00. horoscopo completo, 30,00 medio 20,00, consulta.”

Em outros folhetos, a agência “A Pernambucana” anuncia que também tem à venda livros e artigos escolares e métodos para o aprendizado de violão, cavaquinho e bandolim.

Nos folhetos impressos pela Tipografia São Francisco eram publicados, em muitos casos, anúncios da própria tipografia, no que se refere à execução, “com perfeição e brevidade”, de trabalhos gráficos.

Em outros casos, são publicadas propagandas de fábricas ou lojas de artigos completamente diferentes daqueles característicos do mundo do impresso, talvez próximos do universo do típico leitor de folhetos. Em um dos cordéis, por exemplo,

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Na memória dos leitores/ouvintes entrevistados, como será descrito no capítulo IV deste trabalho, os “dizeres sobre signos” é o aspecto mais marcante das leituras feitas em almanaques.

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aparece a propaganda de uma fábrica de doces “especiais e baratos”, feitos com higiene e “frutas rigorosamente selecionadas”. Na propaganda do “Bar Municipal”, agente revendedor de folhetos no mercado público de Porto Velho, é anunciado que também se vendia “ouro, prata, perfumes, miudesas e relogios”. Em outro folheto, que narra uma inundação em Juazeiro, na Bahia, são publicadas diversas propagandas de empresas e lojas da cidade: um curtume, uma loja de peças e acessórios para automóveis e caminhões, duas sapatarias, duas alfaiatarias, uma farmácia, uma loja de “brindes”, uma casa de produtos veterinários, uma cafeteria, um fabricante de sabão e vinagre e uma “casa das boas revistas e das boas literaturas” são anunciantes. Outros livretos trazem a propaganda de candidatos a vereador e a deputado pelo PTB, destacando o apoio de Getúlio Vargas. Em um dos folhetos, Rodolfo Coelho Cavalcante avisa que recebe anúncios, em versos ou não, para serem publicados nos folhetos.

A análise parece indicar que, aos poucos, os poetas e/ou editores pressupõem que seu público se populariza. Inicialmente, nos tempos iniciais da literatura de cordel, era comum a propaganda de livros e artigos escolares, típicos de um universo letrado ou mesmo anúncios de produtos considerados caros e sofisticados. Aos poucos, no entanto, os produtos anunciados se circunscrevem a tipos de literatura considerados populares, como modinhas, jornaizinhos de trovas, “lunários” e horóscopos.