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1. O MERGULHO NO TEMPO

1.2. o indivíduo

‘Eu sou o início, o fim e o meio’ Raul Seixas75

Da mesma forma que as ruas das cidades modernas foram adquirindo um traçado cada vez mais planificado, o cercamento dos campos obedeceu a parâmetros racionais, condizentes com uma nova etapa que se inaugurava: em certo sentido, ambas imagens refletem o nascimento do indivíduo (ou ‘sujeito moderno’), tema deste capítulo. É possível estabelecer uma analogia entre a demarcação espacial exercida pelas cercas – assim como as calçadas e meio-fio das ruas, as paredes e os muros – e um novo tipo de percepção que isola o sujeito individual do mundo que o cerca. Embora um longo percurso separe seu advento dos dias de hoje, o indivíduo é um conceito fundamental para a compreensão do presente, à medida que vem passando por transformações tão drásticas, apontadas ao longo desta tese, que já se chega a vislumbrar seu declínio.

Retomando a insatisfação - questão que permeou a temática da modernidade, e considerando que ela está presente inclusive na maneira de se relacionar com o próprio corpo – é importante compreendê-la sob a perspectiva de que, a partir de certo momento, ao indivíduo, e somente a ele, passou a ser atribuída a responsabilidade por seu destino, ou seja, seu sucesso ou seu fracasso. Conseqüentemente, assim como seu lugar na hierarquia social, a forma do corpo deixou de ser uma dádiva do nascimento e se tornou objeto de responsabilidade individual. Por conseguinte, a noção de individualismo, que permeia a modernidade, consiste numa referência fundamental quando se deseja pensar as concepções contemporâneas de corpo.

As imagens da configuração espacial da agricultura, mobiliárias, arquitetônicas e urbanísticas, apresentadas no capítulo anterior, auxiliam a compreender a idéia de que o tipo

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de sensibilidade e de autoconsciência que traz consigo um sentimento de individualidade como concebemos hoje, embora pareça óbvio, surgiu em determinada época. Ele corresponde, na verdade, ‘a uma estrutura psicológica estabelecida em certos estágios do processo civilizador’ (Elias,1994:32).

Embora as origens dessa noção tenham emergido no mais longínquo passado da reflexão filosófica - Cícero denominava usualmente individuum cada um dos indivisíveis corpúsculos, ‘átomos’ que Demócrito e Epicuro haviam tomado como princípios dos corpos visíveis (Renault,1998:15) - a idéia moderna de individualismo surge concomitantemente às transformações sociais e políticas ocorridas na Europa Ocidental: a Revolução Gloriosa na Inglaterra (1688), a Revolução Francesa (1789) e todas as conquistas sociais que a elas se seguiram. Essas trouxeram consigo grandes mudanças no que diz respeito aos papéis sociais tradicionais referentes ao Antigo Regime. Se na Europa Medieval havia uma separação bem definida entre os três Estados – clero, nobreza e burguesia – e uma legislação específica para cada um deles, daqueles acontecimentos em diante, deu-se uma substituição dos privilégios pornormas aplicadas isonomicamente a todos os indivíduos76

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O surgimento da noção de indivíduo, portanto, trouxe consigo a perda do caráter decisivo do nascimento como critério de posição na hierarquia social. A partir de então, a

cada um é imposta a necessidade de definir sua posição e elaborar as imagens de si, o que

gera insatisfação e novos sofrimentos íntimos, inclusive em relação ao modo de perceber a aparência e a forma de seu corpo. A própria história do sistema de denominações reflete o processo pelo qual 'o sentimento de identidade individual acentua-se e se difunde amplamente' (Corbin,1995:419)77

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É por isso que, a partir de então, também é possível falar em cidadania, assim como em democracia.

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A história de Jean Valjean, protagonista de ‘Os Miseráveis’, de Victor Hugo, que a fim de escapar de uma sanção penal trocou de nome, exemplifica o fato de que muitas vezes a identidade era falseada por interesses e circunstâncias diversas. Seu destino não deveria ‘parecer em nada inverossímel para os leitores da época,’ pois, ‘ainda por volta de 1880, o indivíduo astucioso pode mudar de pele ao seu bel-prazer’ (Corbin,1995: 430-1).

Segundo Tocqueville, o individualismo político foi o ponto de partida da configuração da sociedade moderna. Para ele, o individualismo consistia num ‘sentimento aprazível que leva cada cidadão a isolar-se da massa de seus semelhantes e a retirar-se, à parte, com sua família e seus amigos; de tal forma que (...) abandona de bom grado a grande sociedade a si própria’. O que há de original em sua obra é que ‘ele fixa seu olhar no individualismo como um processo crescente e, ao mesmo tempo, global, isto é, que afeta todos os aspectos principais da sociedade moderna’ (Barbu,1979:22). Desse modo, embora tenha defendido abertamente a preservação da liberdade, dos interesses privados e da intimidade, ele vislumbrou no despotismo e na postura de ‘cada um por si’ alguns dos riscos de um individualismo excessivo. Daí sua obra ter girado repetidamente em torno da questão da democracia e de como nela conciliar felicidade privada e ação pública (Corbin,1995:612).

Durkheim também observara que, em um grande número de sociedades, as preocupações privadas e a personalidade do indivíduo representavam valores menores. Em períodos anteriores, o Estado perseguia os fins de aumentar seu próprio poder e glorificar os deuses. Porém, à medida que se avança na História,

‘vemos as coisas mudarem (...). O círculo de vida individual, antes restrito e pouco respeitado, se estende e se torna um objeto de respeito moral’ (...) ‘o indivíduo não é uma teoria, é de ordem da prática. Deve afetar os modos, os órgãos sociais. Assim, são produzidos sistemas que manifestam aspirações sociais na direção de um individualismo mais desenvolvido, teoricamente expresso na Declaração de Direitos do Homem78

’ (Durkheim,1950:68-78)79

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Declaração datada de 26-08-1789, Paris. Lançou as bases do ‘novo regime’, em oposição ao ‘antigo’, e por meio dela eram abolidos os privilégios feudais garantidos pelo Absolutismo.

79 As noções durkheimianas de solidariedade orgânica e mecânica, apesar de sua marca biologizante da época,

relacionam-se com a idéia de indivíduo, ao proporem uma analogia com as células dos seres vivos e seu processo de diferenciação. Os seres mais ‘simples’ possuem células semelhantes, e à medida que o organismo vai se tornando mais complexo, um processo de diferenciação mais sofisticado forma órgãos com funções específicas. A solidariedade mecânica ocorria nas sociedades ‘arcaicas’ (o termo que se considera correto hoje seria sociedades ‘tradicionais’), nas quais os indivíduos se diferenciam pouco uns dos outros. A solidariedade orgânica, presente nas sociedades modernas, refere-se a um processo de diferenciação mais complexo que dá origem às diferentes funções na divisão social do trabalho (Aron, 1999: 288). Na verdade, a idéia de indivíduo que se deseja apresentar aqui se relaciona especificamente à sociedade moderna, pois somente ela apresenta o referido grau de diferenciação caracterizado pelaconsciência da individualidade.

Dumont utilizou a conotação de individualista para diferenciar a sociedade moderna das outras, em especial das orientais, as quais denominou ‘holistas’80

. Ele apontou na Renascença um relevante marco relativo ao advento do indivíduo e considerou a nação ‘o reino do individualismo como valor’, ou seja, uma sociedade composta de ‘pessoas que se consideram indivíduos’ (Dumont,2000, 21).

Elias concebeu os seres humanos individuais ligados uns aos outros numa pluralidade que é a sociedade (Elias,1994:8). Ressaltou que, embora pareça corriqueiro, o sentimento de individualidade corresponde a uma estrutura psicológica e a uma conformação histórica peculiares. A noção de um ‘interior’ separado do ‘mundo externo’ como que por um muro teria sido estabelecida em determinada época e incutida ao longo de umprocesso civilizador81 . Um dado importante acerca desse processo é que, ao longo dele, são aprendidos os sentimentos de vergonha, o controle dos afetos e dos instintos. A partir daí, as manifestações impróprias do desejo passaram a ser escondidas nos ‘porões’ do psiquismo (op cit:32), da mesma forma que atos antes realizados em público, tais como se assoar, defecar, fazer amor, refluíram para a privacidade do sigilo. Foi assim que ‘as maneiras de comer, de se lavar, de amar e de morar se modificaram de acordo com as novas fronteiras da intimidade dos corpos e uma nova autoconsciência’ (op cit:33). Enfim, Elias considerou todo o ritual burguês de civilidade como historicamente inscrito nesse refinamento das sensibilidades chamado ‘pudor’.

80Mais precisamente, Dumont estudou em profundidade a sociedade indiana e seu sistema de castas. 81

Uma ilustração desse processo é encontrada no desenvolvimento do espelho, ao longo do medievo europeu, ocorreu em paralelo com o crescimento do conceito de indivíduo. A palavra alemã para ‘eu’ (ich) somente apareceu quando os membros da aristocracia, por volta de 1500, tornaram-se conscientes deles mesmos como indivíduos separados da comunidade (Dale,1997:103).