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A infâmia daqueles que foram esquecidos, estilhaçados pela sua própria história

No contexto da obra A vida dos homens infames, Michel Foucault (2003) problematiza a questão dos infames e fornece imagens vivas e históricas ao leitor por meio dos arquivos que encontrou, ou seja, manuscritos e documentos importantes que contavam as formas cruéis como alguns seres humanos foram excluídos da história, por diferentes maneiras.

Dessa forma, o emprego do conceito infame, de acordo com o filósofo francês, significa mostrar o silêncio dos que foram vencidos sem deixar marcas, nem mesmo relatos de suas vidas desvalidas que revelassem um valor social de líder, trabalhador, mártir, ou de um ser humano totalmente esquecido apagado da história local. Infame significa, nesse sentido, aquele que não tem fama, reconhecimento perante a sociedade.

Consequentemente, o autor problematiza as práticas que deram visibilidade à vida de pessoas desconhecidas, que viveram no anonimato, sem nome, status, fama, glória, sujeitos comuns sem expressão em meio à multidão, mas que existiram em algum lugar desse planeta.

O ponto de partida se insere em torno da seguinte hipótese:

Não é uma compilação de retratos que se lerá aqui: são armadilhas, armas, gritos, gestos, atitudes, astúcias, intrigas cujas palavras foram os instrumentos. Vidas reais foram “desempenhadas” nestas poucas frases; não quero dizer com isso que elas ali foram figuradas, mas que, de fato, sua liberdade, sua infelicidade, com frequência sua morte, em todo caso seu destino foram, ali, ao menos em parte, decididos (FOUCAULT, 2003, p.206).

O texto nos oportuniza aprendermos a olhar pelos rastros escritos do autor, além das nossas lentes míopes, para aquele que por trás dos bastidores contribuíram para a construção do discurso, da história do cotidiano de uma época, para as cartas régias, “as ordem de prisão do rei, os internatos diversos, os relatórios e, sobretudo as decisões da polícia” (FOUCAULT, 2003, p. 211). Nesse ponto, a verdade sobre o termo infame assegura um objeto de pesquisa que coincide com a construção de laços, de histórias de vidas de sujeitos por meio das notícias, dos cacos que restaram desses colaboradores da pesquisa.

Foucault mostra que os infames são realidades que não circulam pelos salões de palácios, do Senado, da Câmara dos Deputados, dos Tribunais. Acontece em diferentes lugares, nas arenas, no teatro da vida cotidiana, em um cenário marginal de imagens bárbaras, talvez longe dos olhos do soberano, do governo, embora as fagulhas do poder fossem válidas e estivessem presentes, sem ser o soberano totalmente alheio aos acontecimentos no seu palácio, em seu reino ou nação. Na verdade, sobre o soberano, “ele não assegura a irrupção espontânea do arbítrio real no elemento mais cotidiano da vida” (FOUCAULT, 2003, p. 211).

Foucault tira do anonimato esses sujeitos, conhecidos por meio dos incidentes, escândalos, ciúmes, modos indecentes de comportamento, devassos, irreverentes, insultantes, gozadores, preconceituosos, provocado por pessoas que se envolviam ou acompanhavam a vida cotidiana dos indivíduos, evidenciando suas tragédias perante à sociedade, sob condições que traziam vergonha e atravessavam sem nenhuma pretensão os portões e fronteiras da corte:

“vidas singulares, tomadas, por não sei quais acasos, estranhos poemas, eis o que eu quis juntar em uma espécie de herbário” (FOUCAULT, 2003, p.203).

Assim, para tais sujeitos saírem do anonimato, o autor fez pesquisas póstumas, por meio de arquivos exumados da reclusão francesa, incluindo arquivos da polícia, de internatos, da lettre de cachet29 - cartas régias com ordens de prisão ou internamento, na constituição dos discursos entre os súditos e o monarca, o autor mostra as desigualdades presentes nas relações sociais, econômicas e culturais usadas por meio do poder político do soberano.

Valorizando de forma inusitada as vidas que refletem a realidade de personagens esquecidas da história, da sociedade, do meio político onde a morte os envolveu e não deixou marcas, mas dores, indignação, lamentos e, por tudo isso, não foram considerados cidadãos de direitos. “Todas essas vidas destinadas a passar por baixo de qualquer discurso e a desaparecer sem nunca terem sido faladas só puderam deixar rastros - reveses incisivos, com frequência enigmática – a partir do momento de seu contato instantâneo com o poder” (FOUCAULT, 2003, p. 206).

Tomando como parâmetro as considerações do autor para olhar e compreender a razão silenciosa daquelas vidas, em sua análise, aborda as marcas que permearam os discursos anônimos de forma que: “[...] as falas breves e estridentes que vão e vêm entre o poder e as existências as mais essenciais, sem dúvida, são para estas o único monumento que jamais lhes foi concedido; é o que lhes dá, para atravessar o tempo, o pouco de ruído, o breve clarão que as traz até nós” (FOUCAULT, 2003, p. 207).

O autor usa uma sequência de informações ao longo de seus escritos em forma de notícias, histórias, relatos para designar o termo infame, isso sugere que os sujeitos não se destacaram como personagens principais na história da vida, mas em trágicas cenas representadas. São na verdade, “vidas de algumas linhas ou de algumas páginas, desventuras e aventuras, sem nome juntadas em um punhado de palavras” (FOUCAULT, 2003, p.203). Acontecimentos em que se inserem “pobres, loucos, perdido de espírito, [...] procurei qual tinha sido sua razão de ser, a quais instituições ou a qual prática política eles referiam” (FOUCAULT, 2003, p. 204).

Nesse redemoinho, Foucault integrou a vida dos infames a fatos históricos, dando um significado de causa e efeitos, com um olhar que nos faz perguntas um tanto inquietas: como

29As lettre de cachet representam o desejo do rei de punir alguém, sem necessidade de ser aprovado pela justiça

comum. Na verdade, eram solicitações de pessoas por meio de cartas interessadas que o monarca resolve certas situações que os incomodavam, no sentido de que os sujeitos aprontassem algo que infringisse as normas, a conduta, a moral. Assim, a ordem do rei era que prendessem a pessoa, que ali ficava a espera de sua sentença (FOUCAULT, 2003).

pesquisadores podem lidar com situações que ameaçam desaparecer sem deixar rastros que outros possam encontrá-los?

Segundo Santos (2016), sobre o contexto de história em Foucault:

Por fazer uma história interrompida, estilhaçada pelas práticas, pelos cortes é que Michel Foucault dizia não fazer o trabalho de historiador, pesquisava personagens transgressores das normas sociais pré-anunciadas e assim também contundia as ideias de uma ciência da racionalidade. O trabalho do “filósofo” bradou a necessidade de uma história vestida com “outros modelitos”, diferentes dos propostos pelos “nossos velhos estilistas” [...] Com ênfase, Foucault dirigia palavras a um público cada vez mais consciente de que uma História escrita friamente, sem sentimento e regulada por critérios congêneres a esses, mantendo-se distante do calor humano e dos sentidos, era algo impraticável (SANTOS, 2016, p.257).

Foucault atua como um profissional que ensina a investigar por detalhes sinuosos as relações de poder que envolviam os “sujeitos infames” de conduta duvidosa. Desse modo, nomeia-os de “infames”, não por considerá-los bandidos, criminosos, desacreditados, repugnantes, perniciosos, ou atos que manchassem sua conduta moral, mas, sobretudo, por fazerem parte de uma sociedade de exclusão, universal em todos os sentidos, e esquecidos antes mesmo de serem lembrados por seus feitos. “Assim, é a infâmia estrita, aquela que, não sendo misturada nem de escândalo ambíguo nem de uma surda admiração, não compõe com nenhuma espécie de glória” (FOUCAULT, 2003, p.208).

Os infames de Foucault continuam sem expressividade na contemporaneidade, sem justiça, reconhecimento, respeito, nome, data e família, vivem na obscuridade. São realidades que nos fazem rever o conceito de infame, fato que não me trouxe sossego, mas inspirações para escrever e compreender que “o insignificante cessa de pertencer ao silêncio, ao rumor que passa ou à confissão fugidia. Todas essas coisas que compõem o comum podem e devem ser ditas, ou melhor, escritas” (FOUCAULT, 2003, p.213).

Ao buscar compreender como se relacionam estas vidas, as razões que levaram tais sujeitos a uma situação miserável, privados de liberdade e de dignidade nos leva a pensar que tais sujeitos não possuíam direitos de defesa de escolher o lugar para trabalhar ou que para eles poderia ser algo natural. Olhando assim, vejo a relevância da escrita das muitas histórias de vidas infames retiradas dos armários, dos arquivos, das falas, como do Professor Paulinho, Ordalha de Araújo e Marlene Pedroso, entre tantos outros colaboradores que tiveram suas vidas destinadas a desaparecer sem deixar rastros, fama, status, um registro, um poema, uma frase escrita que pudesse lembrá-los de seus feitos heroicos, mesmo sem nunca terem sido reconhecidas por suas bravuras, pelo trabalho desempenhado durante anos na Educação local,

regional ou estadual.

Assim, busco apresentar movimentos dessa escola, três momentos distintos pela colaboração de Paulo Lopes, em São José do Anauá, ex-Território do Rio Branco/Roraima; um segundo momento pela colaboração de Marlene Pedroso, que chegou à escola recém-instalada no Povoado Vila do Incra, no primeiro semestre de 1982, na dramática administração de Adalgiza Xavier, pelas dificuldades encontradas para direcionar a instituição, em função de material humano, espaço físico e carteiras suficientes para a quantidade de alunos matriculados na escola. Então, passando pelas mãos de uma terceira colaboradora, a professora Ordalha de Araújo, a partir do segundo semestre de 1982, quando reorganizou as turmas de alunos entre as quatro professoras: Marlene, Jane Santos, Oneide e a própria Ordalha.