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Mapa 4.1 Localidades na Área de Influência do Meio Socioeconômico

4. Riscos Ambientais e Processos de Vulnerabilização no Curso da Mineração de Urânio

4.3 Os Empreendedores do Projeto Santa Quitéria e suas Estratégias para Viabilizar o

4.3.3 A Desinformação Sistemática

4.3.3.2 Informação Perversa Sobre os Riscos: “Urânio Natural não é

Ao longo do processo de discussão sobre o projeto Santa Quitéria uma segunda controvérsia foi estabelecida, dizendo respeito aos riscos do urânio à saúde da população. Esta teve como centro um argumento desenvolvido pelo Consórcio para buscar afastar a preocupação que havia identificado na população sobre os impactos da mineração à saúde, o qual encontramos reproduzido no informativo Daqui nº 1, lançado em janeiro de 2013 e também nas falas dos representantes das empresas e também do Estado durante o seminário de Canindé. Segundo este argumento, o urânio presente no subsolo de Santa Quitéria, após extração e processamento para separação do fosfato, continuará a ser urânio natural, tal como o presente no ambiente antes do processo de produção da pasta concentrada denominada de yellow cake, e, ainda, que em nenhuma das duas formas este pode provocar danos à saúde.

O urânio é perigoso para a saúde humana? Diversas pesquisas internacionais, realizadas em locais onde há exploração de grandes reservas desse minério demonstram que o urânio natural não provoca nem maior número de casos de câncer, nem qualquer outra doença decorrente da radiação. (DAQUI, 2013, p. 3).

Ao ser novamente utilizado pelas empresas durante a audiência pública realizada em 7 de abril de 2014, esse argumento foi contraposto pela representante da Universidade Federal do Ceará presente na mesa. Esta, também pesquisadora e coordenadora do Núcleo Tramas, apresentou o reconhecimento pelo Ministério da Saúde Brasileiro (MS) e pelo o Instituto Nacional do Câncer (INCA), através da Portaria Interministerial Nº 9/2014 – Lista de Cancerígenos do Brasil – do urânio como um agente carcinogênico para humanos. Segundo sua apresentação, a energia ionizante liberada no processo de decaimentos dos átomos radioativos altera as células vivas, podendo causar diversos tipos de agravos à saúde, tais como abortos, defeitos ao nascimento, depressão do sistema imunológico, leucemia e vários outros cânceres e retardo físico e mental em crianças. Este confronto de argumentos evidenciou como controversa as compreensões sobre os riscos do urânio à saúde humana. Diante do que, o Consórcio lançou mão do papel da ciência como autoridade pública (WYNNNE, 2014), com o seu monopólio da violência simbólica legitimada, como nos diria Bourdieu (1998), para mobilizar atores do campo científico

que pudessem reforçar o enunciado sobre a ausência de risco. Como resultado, passamos a encontrar nas cartilhas distribuídas pelo Consórcio junto à população as seguintes informações:

O urânio em estado natural pode provocar câncer? Não. Ele é um elemento

natural da face da Terra, portanto a energia emitida por esse urânio é um fato normal em nossas vidas. Muitas pesquisas sobre este assunto já foram feiras no mundo inteiro [...]. O resultado da pesquisa demostrou que mesmo vivendo numa região com radiação muito alta, o número de casos de câncer era semelhante ao de outros lugares sem tanta radiação. (Entrevista com o médico Nelson Valverde, especialista em Saúde Ocupacional e Radiopatologia, cartilha Radiação. O que é isto? 2014, p. 6).

Um especialista em saúde e radiação foi, mobilizado para o ciclo de palestras desenvolvido pelo Consórcio, concedendo também entrevista na rádio Itataia, onde afirmava que não há relação entre o urânio e o câncer e que este mineral não provoca nenhum dano à saúde humana31. Interessante destacar que, apesar de se referir a “inúmeros trabalhos científicos”, a referência bibliográfica de nenhum deles é apresentada nas falas ou materiais impressos do Consórcio.

Diante da controvérsia, o grupo de pesquisadores que compõem o Painel Acadêmico Popular da mineração se deteve a analisar a literatura científica sobre os riscos de mineração de urânio à saúde, produzindo, como resultado, o parecer técnico intitulado

Análise do Estudo de Impacto Ambiental do Projeto Santa Quitéria em suas relações com a Saúde Pública, a Saúde dos Trabalhadores e das Trabalhadores e a Saúde Ambiental

(RIGOTTO et al., 2014), que foi entregue ao Ministério Público Federal e ao IBAMA, e cujo conteúdo foi apresentado durante as audiências públicas ocorridas nos dias 20, 21 e 22 de novembro de 2014. Neste parecer, pesquisadoras da Universidade Federal do Ceará (UFC) da área da saúde, em conjunto com um Físico Nuclear pesquisador da Universidade Estadual Vale do Acaraú (UEVA), a partir de uma revisão da literatura internacional, demonstraram que inúmeros estudos clínicos e epidemiológicos confirma m a relação entre radiação e câncer e que estes vêm sendo levados em consideração nas regulamentações de atividades envolvendo materiais radioativos em diferentes partes do mundo. Segundo o parecer, a Academia Nacional de Ciências dos Estados Unidos

31 Entrevista para o jornal A voz de Santa Quitéria de 04/06/2014, disponível na íntegra em:

recomenda que nenhum nível de radiação, por insignificante que seja, deva ser considerado seguro. No mesmo sentido, a Associação Médica de British Columbia (Canadá) recomendou ao governo que considerasse a área de 10 km em torno das minas de urânio como local inabitável. Os autores citam uma ampla gama de estudos que demonstram a relação de urânio e radiação com problemas à saúde.

A apresentação da conclusão destes estudos durante as audiências públicas convocadas pelo IBAMA despertou como reação a contraposição do diretor de radioproteção da CNEN, que negou a relação entre mineração de urânio e agravos à saúde. Da mesma forma, o presidente da INB mobilizou uma outra prova científica como argumento para fortalecer o enunciado sobre a inexistência de riscos à saúde da população ao retomar o resultado de um estudo epidemiológico conduzido por pesquisadores da Fiocruz32, contratados pela estatal para atender a condicionantes 2.12 da licença de operação do IBAMA.

E aqui eu quero dizer que a INB, de longa data, há mais de cinco anos, através de um processo de licitação pública selecionou a melhor instituição do país na área de saúde humana que é a Fiocruz. E pesquisadores da Fiocruz ao longo de cinco anos fizeram um trabalho, trabalho esse que foi inclusive apresentado ao Ibama, e conclui que não há como estabelecer um nexo causal entre a atividade mineradora e doenças de câncer, na região de Caetité. Que mais ou menos segue o que está na literatura internacional a respeito do caso. (Audiência Pública de Itatira, 21/11/2014).

Este mesmo estudo havia anteriormente sido amplamente utilizado em Caetité para buscar dissipar as preocupações da população sobre os impactos à saúde da mineração de urânio. O boletim informativo Daqui33 de junho de 2009 lançado em Caetité

trazia como título: Pesquisa Científica Comprova: mineração de urânio não aumentou

casos de câncer. A edição do boletim34 do mês de setembro de 2009 trazia a nova matéria

Quem tem medo de urânio?, onde se afirmava

Agora está comprovado: não houve aumento do número de casos de câncer em nossa região em consequência do funcionamento da mineração de urânio. Uma pesquisa realizada durante doze messes por uma equipe de especialistas da Fundação Oswaldo Cruz (Fiocruz), uma das mais sérias entidades de saúde do

32 O estudo tem por título “Estudo epidemiológico de morbi-mortalidade relativo à eventual ocorrência de

patologias relacionadas a danos genéticos e neoplasias malignas na área de influência da Unidade de Concentrado de Urânio (URA), das Indústrias Nucleares do Brasil (INB) – Caetité no Estado da Bahia” e goi coordenada pelo pesquisador Arnaldo Levy Lassance Cunha.

33 http://www.inb.gov.br/inb/conteudo/imprensa/daqui_%20inb_3_internet.pdf 34 http://www.inb.gov.br/inb/conteudo/imprensa/daqui_%20inb_4_internet.pdf

Brasil, concluiu que não há nenhuma diferença entro o número de casos registrados nas regiões de Guanambi, Caetité e Lagoa Real, se comparados com o que se encontra em outros municípios baianos, como Botuporã, no centro sul e Maragogipe, que está situado a 135 quilômetros de Salvador.

A partir do fato de que o próprio estudo utilizado pela INB traz em suas considerações finais que os resultados da pesquisa são “preliminares e apresentam limitações decorrentes do grande número de causas mal definidas nos registros de óbitos” (CUNHA et al., 2010, p. 13) e do que consideraram como uso inadequado e abusivo da informação científica produzida pelo estudo, algumas entidades e organizações da sociedade civil de Caetité questionaram o estudo e a sua utilização à Fiocruz, que remeteu o caso à apreciação por um Grupo de Trabalho (GT) Permanente para Assessorar a presidência. Uma vez analisado o estudo, a presidência da Fiocruz assim se posicionou frente aos questionamentos

Após deliberações técnicas, o GT concluiu que o referido estudo possui um caráter exploratório e inconclusivo. Portanto, não permite estabelecer inferências sobre a relação entre exposição à radiação ionizante (tanto em níveis naturais locais como decorrentes das atividades de extração e concentração de urânio) e seus impactos no perfil de morbi-mortalidade, ou mais especificamente sobre a mortalidade por câncer, na área de influência da Unidade de Concentrado de Urânio (URA) das Indústrias Nucleares do Brasil (INB) em Caetité, BA. Dessa forma, consideramos inapropriadas matérias de divulgação pública que, baseadas no estudo em questão, afirmem que a atividade mineradora na região não cause impactos à saúde da população potencialmente exposta. (FIOCRUZ, 2013 apud FINAMORE, 2015, p. 2013).

Além disso, a Presidência da Fiocruz acrescenta no documento que é fundame nta l a realização de novos estudos sobre os possíveis impactos da mineração e beneficiame nto de urânio na região; recomendado também a estruturação de um serviço de vigilância que permita “acompanhar a saúde da população e dos trabalhadores potencialmente expostos, gerando e trocando informações com a população sobre as preocupações locais relacionadas à preocupação da saúde de forma permanente e transparente” (FIOCRUZ, 2013 apud FINAMORE, 2015, p. 213). Esta portaria da Fiocruz foi apresentada durante a audiência pública e protocolada pelo IBAMA por um pesquisadore da própria instituição, que criticou sua indevida utilização pelo presidente da INB, reconheceu a existência de uma controvérsia na literatura científica internacional a respeito dos impactos da mineração de urânio sobre a saúde de trabalhadores e das populações situadas

no seu entorno e afirmou a existência dentro da própria Fiocruz de estudos que apontam tanto a presença de contaminação ambiental do solo próximo às pilhas de rejeito produzidas pela mineração em Caetité e no fundo de vales, como de análises epidemiológicas que consideram como muito provável a existência de relação entre casos de câncer observados em Caetité e a atividade desenvolvida pela INB (PORTO et al., 2014).

Esta controvérsia nos fornece elementos para o debate sobre a relação entre ciência e sociedade, em especial nas situações em que esta relação se desenvolve em processos de decisão onde estão implicados riscos tecnológicos modernos, como é o caso dos riscos da radiação. Gostaríamos de iniciar as nossas considerações por estas últimas, avaliando que, ao identificar a preocupação da população com os riscos à saúde oferecidos pelo projeto Santa Quitéria e optar por produzir um enunciado que buscava dissipar esta preocupação, os empreendedores operaram uma concepção restrita, porém hegemônica, de saúde como sinônimo de ausência de doença. Daí a escolha de confrontar a preocupação através de uma formulação simplista que podemos resumir como “urânio não provoca doença”, ignorando os sentidos diversos para a noção de saúde produzidos pelos moradores das comunidades e das sedes municipais de Itatira e Santa Quitéria. Segundo Teixeira (2013), a noção de saúde apresentada pelas comunidades da região, está relacionada não só com a ausência de doença, mas com a identificação cultural com o local onde vivem, com o trabalho em atividades agrícolas e a produção de alime ntos saudáveis, a paz e harmonia nas relações comunitárias e o acesso água.

O tratamento dado pelos empreendedores a questão, ademais, atomiza o processo de mineração, omitindo, dentre outros fatores, que para que este ocorra é necessária a construção da infraestrutura industrial. A fase de instalação desses empreendimentos, como tem sido observado em estudos sobre os impactos dos grandes projetos de desenvolvimento, implica uma série de alterações sobre o metabolismo social, com frequente aporte de população e modificações na dinâmica social que por vezes resulta em aumento da violência, do consumo de drogas, da exploração sexual de mulheres e adolescentes, da especulação imobiliária e de maior pressão sobre os serviços de saúde, educação, abastecimento hídrico e segurança pública, implicando, inúmeras vezes em processos de desterritorialização destas populações (RIGOTTO et al., 2010; 2014;, VICENTE DA SILVA, 2014; ZHOURI & LACHESFKI, 2010).

A observação do desenvolvimento desta controvérsia, assim como no caso anterior, nos mostra como as provas científicas mobilizadas para fortalecer ou rejeitar enunciados sobre a viabilidade do empreendimento desempenharam papel central nas discussões sobre o projeto Santa Quitéria. Além disso, observamos nesse processo aquilo que alguns pesquisadores sugerem como característica intrínseca da cultura científica moderna (WYNNE, 1996; FREITAS, 1992), a omissão das incertezas científicas, bem como a incapacidade das instituições reguladoras ou fiscalizadoras, como, no caso, o IBAMA e a CNEN, de estabelecer processos de negociação a partir das controvérsias apresentadas e de possibilitar o envolvimento da população nas decisões (PORTO, 2007). Tais passos, que segundo Funtowicz e Ravetz (2003) são fundamentais para o enfrentamento de problemas complexos envolvendo riscos tecnológicos ambientais como os implicados pelo projeto Santa Quitéria, encontram como barreira a associação entre empresas e órgãos fiscalizadores, como evidente no papel assumido pela CNEN durante as audiências públicas onde protagonizou a defesa da segurança das instalações nucleares e da responsabilidades e competência técnica da INB e da CNEN para garanti-la.

Esta postura foi percebida como contraditória pela a população, pois o órgão fiscalizador responsável pelo licenciamento nuclear que, em tese, se encontrava na audiência pública para ouvir as preocupações da população e para com ela decidir sobre o licenciamento ou não do projeto, encontrava-se em clara defesa do mesmo, sem abertura para qualquer mediação. Falas como “Eu senti que aquele senhor da CNEN falou muito a favor do empreendimento”, foram frequentes nos diálogos estabelecidos com os participantes do grupo de pesquisa ampliado por ocasião do convite para o grupo e nos seus dois primeiros encontros. Percepção que compreendemos como importante indicativo de que os sujeitos da população mapeiam ou situam os sujeitos epistêmicos dominantes (ACSELRAD, 2014) como parte da vigilância desenvolvida pela população sobre o processo de decisão, a atuação dos atores, o papel das instituições e do Estado como um todo. Esta mostra-se indispensável para a promoção da justiça ambiental neste contexto em que as instituições do Estado e os usos que fazem da ciência mostram-se com o objetivo de vulnerabilizar a população.

4.3.3.3 Competência Técnico-Gerencial da Indústria Nuclear ou Vulnerabilidade