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Mapa 4.1 Localidades na Área de Influência do Meio Socioeconômico

3. Conflitos Ambientais, Riscos e Processos de Vulnerabilização

3.2 Riscos

3.2.1 O Contexto Histórico da Institucionalização da Análise de Riscos

Como ponto de partida, Porto & Freitas (1997) nos sugerem compreender as transformações ocorridas ao longo da segunda metade do século XX, quando, após a II Guerra Mundial, a concorrência capitalista e a globalização econômica impulsionaram a automação e a complexificação dos processos químicos industriais, resultando em operações com ritmos crescentemente mais acelerado, capacidades de produção, armazenamento, circulação e consumo de substâncias químicas cada vez mais intenso e extenso em nível mundial. Transformações que contribuíram para o crescimento e disseminação de substâncias químicas e tecnologias perigosas em todo mundo, a partir de uma lógica de desenvolvimento industrial e tecnológico que possibilitou o crescimento dos riscos numa velocidade bem maior do que a capacidade científica e institucional de analisá-los e gerenciá-los, tal como demonstrou a ocorrência de inúmeros acidentes industriais ampliados ocorridos ao longo do século passado e que deixaram um rastro de destruição ambiental e de vidas humanas sem precedentes na história. Freitas (1992) sistematiza estes acidentes, dentre os quais os mais emblemáticos em termos de consequências e implicações ambientais e para a saúde de humana, com características devastadoras são: Seveso (Itália/1976); Bhopal (Índia/1984); San Juan Ixhuatepec (México/1984); Vila Socó (Brasil/1984); Chenobyl (Ucrânia/1986); Césio 137 em Goiânia (Brasil/1987); Baía de Minamata (Japão/1956).

Estes eventos suscitaram discussões sobre os impactos do desenvolvime nto industrial e de novas tecnologias ao ambiente e à saúde, fazendo com que o debate ambiental ganhasse importância crescente ao longo desta segunda metade do século passado. O pensamento ambiental hegemônico então desenvolvido teve como forte marca a ideologia do otimismo tecnológico, que preconiza que a ciência e a tecnologia conseguem controlar e resolver os impactos gerados pelos seus produtos e processos (STRAND, 2001 apud PORTO, 2007). Para além dos problemas suscitados pelos acidentes químicos, fortaleceu-se, segundo Acselrad (2002), a ideia de que o desperdício de matéria e energia é o núcleo do problema ambiental, diante da qual empresas e governos agem no âmbito da lógica econômica, atribuindo ao mercado a capacidade institucional de resolver a degradação ambiental através de novas tecnologias que promovam ganhos de eficiência no sentido de tecnologias ditas limpas e seguras, sem problematizar, assim, o padrão de modernização ou o modo de produção capitalista e

tendo como pressuposto básico a possibilidade de um aprendizado institucional. Essa proposta ficou conhecida como modernização ecológica, que segundo Blowers

designa o processo pelo qual as instituições políticas internalizam preocupações ecológicas no propósito de conciliar o crescimento econômico com a resolução dos problemas ambientais, dando-se ênfase à adaptação tecnológica, à celebração da economia de mercado, à crença na colaboração e no consenso(Blowers 1997 apud Acselrad 2002, p. 1)

Decorre também deste pensamento ambiental hegemônico o termo e a compreensão de sustentabilidade como sinônimo de mudanças tecnológicas para diminuição do desperdício e da poluição ambiental e da noção de desenvolvime nto sustentável, que traz uma visão economicista de limite máximo de utilização da natureza sem comprometer a utilização da mesma pelas gerações futuras. Utilizada por vários atores que operam políticas públicas locais, nacionais ou internacionais sem questionar esse limite máximo e ocultando o debate sobre modelo de desenvolvimento, esse conceito contribuiu para impossibilitar uma profunda discussão sobre a produção ampliada de riscos e a sua desigual distribuição na sociedade (FERNANDES, 2011).

É nesse contexto de crescimento do debate em torno da questão ambiental em todo mundo e a partir da ideologia do desenvolvimento sustentável e do otimismo tecnológico que ocorre o processo de institucionalização da ciência da análise de riscos tecnológicos e ambientais ao longo dos anos da segunda metade do século XX (PORTO & FREITAS, 1997; ACSELRAD, 2002; ZHOURI et al., 2014). Esta institucionalização teve como marco internacional a formação da Sociedade para Análise de Riscos em 1980, e foi caracterizada pelo crescimento do número de especialistas que passaram a ter como foco principal do seu trabalho os riscos à saúde, segurança industrial e meio ambiente. Segundo Freitas & Porto (1997),

O desenvolvimento dos métodos científicos de análises de riscos tecnológicos ambientais foi norteado pela ideia de que as decisões regulamentadoras sobre riscos poderiam ser menos controversas se pudessem ser tecnicamente mais rigorosas e baseadas em uma firme base “factual”. Esta base deveria ser construída a partir dos dados disponíveis suplementados por cálculos probabilísticos, testes de laboratório, extrapolações teóricas e julgamentos “objetivos”, oriundos de análises estatísticas, enfoques sistêmicos e da experiência de experts.

Nos anos 80, a emergência da Ciência da Análise de Riscos, mais do que uma resposta técnica às preocupações coletivas, convertia-se também numa determinada resposta política à formação de consenso social nos processos decisórios. Nesse contexto, um objetivo subjacente era, ao transformar

determinadas escolhas sociais, políticas e econômicas em problemas “puramente” técnicos e científicos, despolitizar os debates envolvendo a aceitabilidade dos riscos. (FREITAS & PORTO, 1997, p. 62).

Surgem, assim, marcos regulatórios de substâncias químicas e processos industriais tecnológicos que impõem a todos os grupos humanos a aceitação dos riscos do atual padrão de desenvolvimento (PORTO, 2007). Conforme Fernandes (2007), estes marcos regulatórios são controversos e principalmente com relação às substâncias químicas apresentam uma enorme variação nos parâmetros e níveis considerados seguros nas diferentes legislações nacionais. Segundo a autora, tais marcos são também alvo de empresas que investem milhões de dólares para pressionar o poder público na regulação e para o convencimento do público de que os produtos perigosos que usam são seguros, e que, assim, atuam na disputa da ciência para refutar pressupostos e conclusões contrárias aos seus interesses.

Apesar deste processo de institucionalização ter ocorrido mais recentemente, Freitas (2001) destaca que o termo risco surge com o próprio processo de constituição das sociedades contemporâneas a partir do final do Renascimento, quando ocorreram intensas transformações sociais e culturais associadas ao forte impulso nas ciências e nas técnicas, as grandes navegações e a ampliação e fortalecimento do poder político e econômico da burguesia. Assim, segundo o autor, constitui-se em uma das formas de expressão de um projeto de organização social, política, econômica e cultural, com origens na nascente burguesia da Europa Ocidental, que se estendeu e se intensifico u sobre todo o planeta. Neste processo histórico, o autor distingue dois fundamentos que moldaram o termo risco e suas aplicações na modernidade: a perspectiva utilitarista e a

concepção elitista de democracia.

Para Freitas (2001), a perspectiva utilitarista da natureza é fruto da racionalidade instrumental cartesiana, segundo a qual as ações racionais dos indivíduos deveriam ser orientadas para a transformação de um mundo dominado por aparente caos e incertezas por outro dominado pela ordem e a previsibilidade, o que permitiria alcançar a prosperidade, felicidade e satisfação. Nessa concepção tipicamente burguesa o mercado é o protótipo do processo que liga as preferências individuais às escolhas sociais e sua legitimação. A concepção elitista de democracia, por sua vez, é baseada em sistemas abstratos de confiança, que envolvem as instituições da modernidade que organizam os

principais aspectos da vida cotidiana e que se encontram vinculadas às questões decisivas relativas à segurança, risco e perigo no mundo moderno. Para a concepção elitista de democracia, a preocupação maior é manter a estabilidade de um sistema social baseado no utilitarismo. A limitação da participação dos cidadãos nos processos decisórios não é apenas aceita, mas também justificada como sinal de fé e lealdade para com o sistema e suas elites técnicas e políticas, essas sim capazes de realizar os melhores julgamentos para a maximização de ganhos para todos (Freitas, 2001). Em conjunto, estas concepções conformam o paradigma preventivo clássico, no qual o risco é apresentado como aspecto neutro, fruto de um cálculo de probabilidades preciso, ocultando-se as incertezas sobre o conhecimento do problema, da mesma forma a participação social na discussão das incertezas não está prevista (PORTO, 2007).