• Nenhum resultado encontrado

1.8 JUSTIFICATIVA

1.8.1 Informações sobre a violência no Brasil

Embora os dados sobre a violência no nosso país estejam concentrados na seção CONTEXTUALIZAÇÃO, apresentamos aqui alguns elementos que justificam a importância de trabalhos que analisem esse fenômeno que vem crescendo de forma incontrolável no Brasil. A família brasileira e a mulher, não são vítimas apenas da violência doméstica e masculina que é uma das principais fontes do fenômeno, mas todos somos vítimas do trânsito, da corrupção, do tráfico de armas, assaltos, homicídios e de todas as outras formas de violência, sejam elas, letais-físicas, ou imateriais-simbólicas.

Há inúmeras faces pelas quais a violência se manifesta, bem como

estratégias para a sua ocultação, como é o caso da violência advinda do “crime

organizado”, apresentado a seguir. O crime organizado é o resultado de uma organização sistemática e institucionalizada constituída por um grande contingente de pessoas filiadas às organizações criminosas que assumem posições específicas dentro da facção a qual pertencem. O tráfico de drogas e de armas, bem como os assaltos a bancos são as fontes que abastecem as facções. Hoje elas controlam o crime, pelo lado de fora e de dentro da prisão, considerando o exército de presidiários que o Brasil possui, já que somos a quarta nação com o maior número

de população carcerária do planeta7.

7 Dados do Conselho Nacional de Justiça - Novo Diagnóstico de Pessoas Presas no Brasil, do Departamento de Monitoramento e Fiscalização do Sistema Carcerário e do Sistema de Execução de Medidas Socioeducativas – DM, Brasília, junho de 2014.

De um lado essas facções são combatidas pela sociedade, mas de outro lado, são úteis em locais onde a população em situação de risco social é beneficiada pelas boas ações dos criminosos. Nesses locais, o bandido tem um status não só perante a

irmandade a qual pertence como pela proteção da comunidade local. “Toda história do

crime organizado mostra claramente uma tentativa de criar vínculos com o meio social” (AMORIM, 1993, p. 31).

Nesta seção apresentamos algumas informações sobre a violência decorrente do crime organizado no Brasil e na seção CONTEXTUALIZAÇÃO, enfatiza-se a violência advinda de outras fontes, sobretudo daquela originária dos dispositivos discursivos culturais que proliferam as agressões contra a mulher, sem que se tenha um planejamento, um controle e consciência sobre a sua fonte de reverberação, como (BOURDIEU, 2011) nomina de “violência simbólica”. No entanto, não nos esqueçamos de que a violência imaterial, discursiva, seja na perspectiva de Bourdieu ou de Foucault, também se materializam na vida cotidiana levando os indivíduos a ações contundentes e destruidoras, como a violência física e letal.

Ainda com o esforço de justificar socialmente a escolha do nosso tema de pesquisa, pinçamos das práticas cotidianas, alguns acontecimentos mais recentes que viraram notícia na imprensa nacional e que serve para corroborar com a tese de que o Brasil é uma sociedade violenta em todos os sentidos. Aqui, iniciamos um recorte da década de 1980, período em que deram inícios às pesquisas sobre a violência no nosso país. De lá para cá, as tramas estruturais, culturais da violência se enraizaram em nossa sociedade como um fenômeno histórico. Aproveitamos as notícias sobre o massacre de detentos de facções rivais nas penitenciárias do país, ocorrido nos primeiros dias de janeiro de 2017 e que chocaram o mundo, para encontrar sua origem histórica nos anos de 1980.

Naquela época, um dos fundadores do Comando Vermelho (CV), Paulo Roberto de Moura Lima, conhecido como Meio-Quilo,

morreu aos 31 anos. Estava condenado a 360 de prisão. Seu enterro levou três mil pessoas ao cemitério. A comunidade favelada do Jacarezinho, a segunda maior da América Latina, chorou a morte de seu líder. [...] Quando a filha do vice-governador, Maria Paula Amaral, apareceu no Instituto Médico Legal, deu uma estrondosa entrevista à imprensa. Disse que [...] Meio-Quilo era um homem honrado, dizia para ela nunca usar drogas. E sempre a prevenia de que iria morrer cedo.” (AMORIM, 1993, p. 27).

Há quatro meses que Maria Paula namorava Meio-Quilo, dentro do presídio. Na época esse romance virou capa de revista e manchete de jornais, sob o título de “amor- bandido”. (p. 27).

Dos anos de 1980 para cá, a violência vem se potencializando cada vez mais no Brasil. Facções como a do Comando Vermelho, descendente da Falange Vermelha, quadrilha fundada no Rio de Janeiro em 1969, por Fernandinho Beira Mar, hoje controla o tráfico de armas e de drogas na fronteira com o Peru, enquanto que o Primeiro Comando da Capital, (PCC), criado em 1993, em Taubaté, por Marco W.H Camacho, o Marcola, controla a fronteira com o Paraguai. São as duas facções mais poderosas hoje, no controle das outras fronteiras com o Brasil e estão em guerra por esta disputa. Mais recentemente, em 2006, no Estado de Roraima, dois grandes traficantes da Região Norte se uniram para fundar a facção Família do Norte (FDN). O CV se aliou à FDN para combater o PCC e em janeiro de 2017, o CV mandou matar presidiários do PCC que estavam detidos em penitenciárias do Amazonas e de Roraima. Foram mais de 90 presidiários assassinados brutalmente, mutilados, queimados e decapitados. Cinco dias depois dessa chacina, a facção paulista, o Primeiro Comando da Capital, PCC, cumpre sua vingança e comanda uma rebelião no dia 6 de janeiro de 2017 que termina com a morte de 31 presos da prisão agrícola de Boa Vista, Roraima. O próprio PCC fez questão de filmar e divulgar pelo WhatsApp cenas de decapitação, esquartejamento. Algumas das vítimas “tiveram o coração arrancado, método usado pelo PCC em conflito entre facções”. (O ESTADO DE..., 2017; p. A10). A matéria do Jornal também consultou especialistas do crime organizado. Se, na década de 1980 o CV no Rio de Janeiro era a sede do crime organizado, hoje, o Brasil tem 27 facções que disputam o controle das organizações criminais em todas as Regiões do país. Esses 27 grupos se aliam, ou ao CV, ou ao PCC. Atualmente o Primeiro Comando da Capital (PCC) é a principal facção criminosa e conta “Com um exército de 10 mil homens – 7 mil nos presídios e 3 mil nas

ruas –, e movimenta, segundo o Ministério Público Estadual, 40 toneladas de cocaína

e 200 milhões de Reais por ano” (p. A10), pois o Brasil é o segundo maior consumidor de cocaína do planeta.

Por conta dos massacres ocorridos em 2017, entrevistamos um funcionário aposentado do sistema prisional do Paraná, com experiência de 30 anos no cargo de ex-diretor da Prisão Central do Estado em Piraquara e do Manicômio Judiciário do Paraná em Curitiba, o Sr. M. nos informou que na prática prisional, o detento que ingressa hoje no presídio, seja qual for sua condenação, é abordado pelos “irmãos” das

facções e é obrigado a credenciar-se à irmandade e trabalhar para ela. Em contrapartida, ele recebe dentro do presídio, proteção contra extorsão, estupro e assassinatos e ajuda financeira a sua família. A vida cotidiana da prisão não obedece às leis jurídicas do comportamento coletivo e igualitário aos presos. A prisão tem a sua lógica própria e a cada dia se especializa para sua autonomia e empoderamento, estabelecendo alianças com a corrupção do sistema prisional e político “os políticos continuam a barganhar votos em alianças secretas com os traficantes” (AMORIM, 1993, p. 8). Com outros segmentos da justiça a corrupção não se diferencia como afirmou o tesoureiro do CV, o “Meio-Quilo “No tráfico, a gente compra quem quer” (AMORIM, 1993, p. 26). Outras estratégias se multiplicam dentro e fora da prisão, com casamentos arranjados para beneficiar os criminosos. As facções financiam candidatos escolhidos para cursarem faculdade de Direito e assim poderem aprimorar mais ainda a jurisprudência do crime.

Em 2007, Marcos Willians Herbas Camacho, o Marcola, número um da hierarquia do PCC, condenado a 44 anos de prisão, casou-se no presídio de segurança máxima, interior de São Paulo, com a estudante de Direito, Cynthia Giglioli da Silva, de 30 anos. Dois anos antes, o número dois do PCC, Júlio César Guedes Morais, o Julinho Carambola, casou-se no mesmo presídio que não permite visitas íntimas. A cerimônia ocorreu através do vidro blindado e o sim conjugal foi dado por meio de um interfone. Na ocasião a imprensa indagou a um dos agentes penitenciários sobre o que ele achava do casamento um deboche à sociedade. "Se isso é normal, o que é anormal", afirmou o agente. Marcola era viúvo, pois sua esposa havia sido executada na disputa pelo comando da facção. A nova mulher, estudante de Direito, Cynthia, esteve detida em 2005, acusada de colaborar com o PCC, do qual recebia mesada de R$ 15 mil, conforme declarou o Jornal O Estado de São Paulo de 03 de janeiro de 2007. Ao longo da tese apresentamos outros casos divulgados pela imprensa nacional acerca dessa paradoxal relação que conjuga amor e violência.

Entendemos que a nossa sociedade, movida por uma ética afetiva Holanda (1995) e concebida como uma “sociedade paradoxal” nos termos do antropólogo DaMatta (1993), favorece a combinação dos contrários. Tão paradoxal como são as relações amorosas mergulhadas na cultura da agressão, esta, capaz de conjugar amor e ódio. É fato que a cobrança do homem como sendo violento e dominador, reforçada ainda mais em sociedades de forte presença patriarcal, é um imperativo discursivo poderoso e constituinte tanto para os homens quanto para as mulheres.

Contudo, cabe ressaltar que, não raro, à mulher sobra uma posição mais vulnerável e estigmatizante, como se ela sofresse duplamente a violência social e conjugal. A trágica importância que adquiriu esse fenômeno e o fato de que a cada ano que passa mais aumenta o número de assassinato de mulheres no Brasil, é um dos motivos que justificam o nosso trabalho.

Em dezembro de 2012, as redes de TV e de jornais publicaram os resultados de uma pesquisa divulgada pelo Ministério da Saúde através do SUS, acerca do assassinato de mulheres no Brasil. O Paraná é o Estado que ocupa a quarta posição no índice de assassinatos de mulheres no país. Além do homicídio, outras formas de violência são significativas. Em 2011, na capital do Estado paranaense, foram registradas 27 ocorrências diárias na Delegacia da Mulher. Curitiba ocupa a quarta posição entre as capitais do país onde incidem os maiores números de feminicídio. A média é de 10,4 mulheres assassinadas para cada 100 mil habitantes. O Brasil ocupa hoje o quinto lugar entre as nações que mais matam mulheres no mundo, segundo a última publicação sobre violência de gênero, o Mapa da Violência 2015 homicídio de mulheres no Brasil. Precisaríamos de mais motivos ainda para justificar o interesse por esse estudo?

Ao final dessa seção, encerro ao dizer que não é nada confortável para um homem de 60 anos que, após ter nascido e vivido em uma cultura machista, decidiu pesquisar a violência contra a mulher, principalmente quando sabemos que ainda é baixíssimo o número de pesquisadores homens nos estudos de gênero e que esse

pode ser visto como um elemento exótico8, estranho e nem sempre entendido como

gostaria que fosse, ao participar de grupos feministas. Não são raros os episódios nesses grupos de pesquisa que refutam essa diferença de gênero, sob a égide de que

8 O termo “exótico” em Antropologia Social refere-se a um contingente populacional ou a um indivíduo que não é nativo, que não é originário daquela sociedade ou grupo social. Assim um brasileiro que vive entre os zulus, na África, é um elemento exótico ao grupo, pois tal indivíduo veio de fora. Dada a imensa fronteira existente entre o “mundo masculino” e o “mundo feminino”, tal abismo também polarizou a ciência, já que temos de um lado, as pesquisadoras feministas e do outro lado, o de fora, os pesquisadores homens, como duas categorias estranhas. Com o uso do termo exótico, pretendemos apenas enfocar a profundidade do abismo que acaba por arraigar as diferenças de gênero, cerceando a evolução das pesquisas, na medida em que essa estranheza afasta tudo que é diferente. Toda diferença é ameaçadora, pois fere a nossa identidade grupal ou cultural (ROCHA, 1988; LAPLANTINE, 1989). Entendemos que a mesma lógica do “estranhamento antropológico” se aplique à identidade de gênero ou de outros grupos sociais que se defrontam com a diferença.; qualquer que seja ela. A temática da diferença em ciências sociais seria um capítulo à parte. Aqui apenas enfatizamos que a rara quantidade de pesquisadores homens nos estudos do gênero feminino, já é um produto da própria polarização já instituída. A ordem identitária “nós” e “eles”, apropria-se de uma lógica excludente na qual somente mulheres poderiam estudar mulheres. Lógica essa que tem aderência tanto entre as feministas radicais quanto entre os pesquisadores homens que “pensam como homens”.

apenas as mulheres podem falar sobre elas. Os antropólogos perderiam seu objeto de estudo se adotassem a lógica de que somente um Xamã estaria autorizado a falar sobre feitiçaria. Ressalta-se que a polarização; eles culpados/elas vítimas nas pesquisas

sobre a violência contra a mulher, também pode transformar as feministas que “falam

pelas mulheres” em “teólogas da mulher”, nos termos de Alice Jardines Costa (1994, p. 173). Trata-se de feministas que não buscam pesquisar as causas do fenômeno da violência na relação entre homens e mulheres, mas somente defender as causas das mulheres, mesmo que tais causas sejam muito mais em prol das feministas do que das mulheres defendidas. Foi o que ocorreu com o SOS-Mulher de São Paulo, a primeira instituição no Brasil que deu apoio oficial a mulheres agredidas por seus parceiros. Fundado no final dos anos de 1980, as funcionárias do SOS-Mulher ocuparam o lugar de “teólogas da mulher” à medida que tentaram converter as vítimas da violência física e psicológica, em feministas militantes. O resultado desse trabalho foi quase nulo, segundo a pesquisa de campo feita pela antropóloga Gregori (1993, p. 79).