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“É difícil, pois, identificarmos o sujeito da violência, quando ela é sistêmica ou estrutural” (FELIPE; PHILIPPI, 1998, p. 35). Mais fácil é centrar a atenção na agressão interpessoal do que na violência estrutural, como a violência econômica ou os mecanismos de colonização adotados pelas sociedades industriais. Formas de violência naturalizadas e que nos passam de forma imperceptível, decodificadas como sendo um processo normal do desenvolvimento histórico.

Somente a partir de 1920, quando a Antropologia, guiada pelo relativismo cultural, reconhece que cada cultura tem a sua lógica própria é que ela começa a voltar os olhos para os genocídios étnicos. Com a exploração do Novo Mundo, a partir do século XVI, inicia-se o extermínio dos nativos. Em nome da coroa e da igreja, esses povos “sem lei, sem rei e sem fé” sentiram na pele e na alma as marcas da cruz e da

espada21. A pergunta que os exploradores faziam para reconhecer ou destituir aqueles

que acabaram de serem descobertos era: eles “pertencem à humanidade? A Igreja

Católica da época das conquistas não pôde se ausentar de tais perguntas formuladas acerca da humanidade ou não dos nativos do Novo Mundo, sendo necessário um debate político, em seu interior, nos marcos teológico-filosóficos para decidir o que

fazer com o Novo Mundo.22 O critério essencial para saber se convém atribuir-lhes um

21Relatos da época sobre a barbárie e extermínios dos nativos do Novo Mundo encontram-se, por exemplo, nos escritos de Frei Bartolomé de Las Casas: CASAS, Bartolome de las. O paraíso destruído: brevíssima relação da destruição das Indias. Porto Alegre: L&PM, 1984. 150 p.

22Tal debate, que teve Frei Bartolomé de Las Casas (1474-1566) e Juan Ginés de Sepúlveda (1490-1573) como protagonistas de teses opostas, ficou conhecido como “Junta de Valladodid”, ocorrido em 1549. Las Casas, ao contrário de Sepúlveda, defendia a humanidade dos nativos e também a tese de que não se podia entender a cultura dos nativos com lentes europeias. Séculos mais tarde, estas mesmas ideias de viés lascasiano voltaram à tona na Antropologia Cultural, por exemplo, a de Franz Boas.

estatuto humano é, nessa época, religioso: o selvagem tem uma alma?” (LAPLANTINE, 1989, p. 37-38).

Séculos depois e com o mesmo impulso imperialista, a Conferência de Berlin,

no final do século XIX – 1884-5, dividiu a África em colônias europeias para levar a

civilização aos povos “primitivos”. Reconhecer a humanidade era pertencer à civilização, e esta civilização era a europeia. O assassinato de nativos africanos não era entendido como genocídio. Há crime sem lei que antes o defina? Até o final da Segunda Guerra Mundial, a Europa não tinha vivido tão proximamente o extermínio

aos moldes dos judeus pelos nazistas. A palavra “genocídio” foi juridicamente

oficializada como crime em 1946, após a opinião pública reconhecê-la como tal, contudo, extermínios como os do Novo Mundo e da África não são encarados como “genocídios”, se muito como “conquistas”. Vemos aí o uso da linguagem, por parte dos vencedores, no seu sentido eufêmico quando o outro violentado e exterminado não é europeu, caucasiano, “civilizado”, devoto da tradição religiosa judaico-cristã.

A noção de violência adotada pelo Mapa 1998 e pelo Mapa 2012 concebia que há violência quando em uma situação de interação um ou vários atores agem de maneira direta ou indireta, maciça ou esparsa, causando danos a uma ou a mais pessoas em graus variáveis, seja em sua integridade física, seja em sua integridade moral, em suas posses, ou em suas participações simbólicas e culturais (MICHAUD, 1989).

A expressão “em briga de casal não se mete a colher” é mais um exemplo da mudança de perspectiva dos “fatos”, pois são eles fatos apenas porque uma teoria

promove-os ou rebaixa-os à condição de realidade. As “surras”, castigos físicos,

privações e humilhações às quais as crianças eram submetidas, na concepção adulta das famílias tradicionais, eram entendidas como medidas educadoras. Hoje, essas mesmas atitudes são enquadradas pela “Lei da Palmada”, que tenta ainda inscrever a palmada e outras agressões, na linguagem da cultura local, nomeando- a como uma violência.

Em 1996, a Assembleia Mundial da Saúde convocou a ONU para tipificar as diferentes formas de violência. “A tipologia aqui proposta divide a violência em três amplas categorias, segundo as características daqueles que cometem o ato violento: a) violência autodirigida; b) violência interpessoal; c) violência coletiva”, (KRUG et al., 2002, p. 5). Também dividiu a violência interpessoal em duas sub-categorias: violência da família e de parceiro(a) íntimo(a) e violência comunitária. A terminologia

“parceiros” é utilizada pelo último Mapa da Violência 2015 e trata-se de um recorte que agrupa agressores cônjuges e namorados, como agressores ex-cônjuge e ex- namorado. O conceito de violência adotado pela Organização Mundial da Saúde no Relatório Mundial sobre violência e saúde em Genebra 2002 define:

A violência configura-se como o uso da força física ou do poder real ou em ameaça, contra si próprio, contra outra pessoa, contra um grupo ou uma comunidade, que resulte ou tenha qualquer possibilidade de resultar em lesão, morte ou dano psicológico, deficiência de desenvolvimento ou privação... A inclusão da palavra ‘poder’, completando a frase ‘uso de força física’, amplia a natureza de um ato violento e expande o conceito usual de violência para incluir os atos que resultam de uma relação de poder, incluindo ameaças e intimidação. O "uso de poder" também leva a incluir a negligência ou atos de omissão, além dos atos violentos mais óbvios de execução propriamente dita. Assim, o conceito de uso de força física ou poder deve incluir negligência e todos os tipos de abuso físico, sexual e psicológico, bem como o suicídio e outros atos autoinfligidos. Esta definição cobre uma ampla gama de resultados, incluindo injúria psicológica, privação e desenvolvimento precário. Ela reflete um crescente reconhecimento entre pesquisadores da necessidade de incluir a violência que não produza necessariamente sofrimento ou morte, mas que, apesar disso, impõe um peso substancial em indivíduos, famílias, comunidades e sistemas de saúde em todo o mundo (KRUG et al., 2002, p. 5).

Outras fontes assim definem a violência:  Violência contra a mulher.

A violência contra as mulheres é definida pelas Nações Unidas como qualquer ato de violência de gênero que resulte ou possa resultar em dano físico, sexual, dano psicológico ou sofrimento para as mulheres, incluindo ameaças, coerção, ou privação arbitrária de liberdade, tanto na vida pública como na vida privada. (ONU, 1994, p. 4)

 Violência sexual.

De acordo com a Organização Mundial de Saúde, violência sexual é “qualquer ato sexual ou tentativa de obter ato sexual, investidas ou comentários sexuais indesejáveis, ou tráfico ou qualquer outra forma, contra a sexualidade de uma pessoa usando coerção”. Pode ser praticada por qualquer pessoa, independente da relação com a vítima, e em qualquer cenário, incluindo a casa e o trabalho. A violência sexual pode ser exercida no espaço doméstico (casa) ou no público (rua). (SOUZA; ADESSE, 2005, p. 37).

É importante ressaltar que a violência sexual contra as mulheres não deve ser abordada como um problema de esfera privada ou das relações interpessoais, e sim como um problema social que exige para o seu enfrentamento ações públicas no âmbito da segurança, do direito e da saúde. (VILELA. LAGO, 2007, p. 472).

Os estudos publicados até agora sobre violência de gênero concluem que a maioria dos assassinatos de mulheres ocorre dentro do espaço doméstico e são cometidos pela seguinte ordem: ou por parceiros com os quais elas convivem, ou por ex-parceiros ou pelo marido. Nenhum deles mata ou agride abruptamente sem que tenha antes participado do ritual onde se inicia o fenômeno. As brigas de casais mediadas pelo “bate-boca” dentro de casa. É nesse embate que as palavras crescem e se tornam palavrões e xingamentos, cuja função é a de fazer o outro se calar pela disputa de quem dará a “última palavra” (GREGORI, 1993, p. 179). É a linguagem que também leva ao ato de violência. E esta realimenta a palavra. Uma é corolário da outra. Releva-se também que, se os dados numéricos acerca da violência física são assustadores, por serem palpáveis e observáveis, o que dizer da violência discursiva e simbólica que o precede numa dialogia constante?

Cada agressão letal é antecedida por uma série de agressões psicológicas. Logo, estas ocorrem em maior número de vezes que a violência física. A violência discursiva está presente no dia a dia das relações violentas e se manifesta pela linguagem que o casal se utiliza no embate amoroso. A violência discursiva é o palco onde se materializa a violência física e os assassinatos de mulheres. O Mapa da violência 2015 constatou que o lugar privilegiado das agressões contra a mulher é a residência da vítima, pois 71,9% dos casos ocorrem no ambiente doméstico. Em 2014, o Ministério da Saúde tipificou o agressor pelos atendimentos de mulheres agredidas que acabaram procurando socorro nas unidades de atendimento do SUS. Esses dados foram publicados pelo mesmo Mapa da Violência 2015 e indicam que a maioria das agressões contra as mulheres, foi causada por seus parceiros ou ex-parceiros amorosos.

Esta pesquisa não tem como centro a violência física ou a letal, mas é sabido que, especialmente no convívio entre casais violentos, o homicídio é a última etapa de uma sequência de violências físicas e psicológicas que se repetiram por longos períodos de tempo no curso da vida conjugal, como um ciclo que se inicia com xingamentos, bate boca, podendo avançar para a violência física, podendo culminar com o homicídio.