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O nascimento das três correntes teóricas apresentadas na subseção anterior, coincide com as três ondas do feminismo brasileiro assim nominado por Pinto (2003) comentados a seguir. São elas o resultado das mudanças históricas que ocorreram na nossa sociedade entre os anos de 1970 e os anos de 1990. Observa-se que até o final dos anos 60 para a virada da década de 1970, tivemos o feminismo sufragista. Esse buscava a igualdade de direitos entre homens e mulheres, nominado como

sendo o feminismo das semelhanças segundo Pinto (2003, p. 13-15). “Somos iguais”, essa era voz que ressoava na época. Acusadas de elitistas, pois essas mulheres vinham da classe média, as sufragistas não enfocaram o homem no centro do problema da assimetria entre o feminino e o masculino. Diferentemente do feminismo “mal-criado”, nos termos de Pinto (2003, p. 37) que via o homem como o opressor.

Nos anos de 1970, o machismo, a ditadura militar masculina e o direito hegemônico dos homens, mantinham a lógica da polarização “mundo masculino” e “mundo feminino”; como categorias hierarquizadas. Lembremos que alguns direitos, como o do voto da mulher é uma conquista muito recente. Somente se consolidou em 1932. Não por acaso, a primeira corrente teórica da violência contra a mulher foi denominada de corrente da “dominação masculina, resultado da anulação da mulher pelos homens” (SANTOS; IZUMINO, 2005, p. 1). Presumimos que até o final dos anos de 1970 e começo dos anos de 1980, fosse historicamente necessário alimentar a teoria da denúncia contra os homens, centralizando as teorias, as pesquisas e a militância, contra eles, para dar visibilidade social a uma situação que até então dava o direito ao homem de agredir, ou matar a esposa, em legítima defesa da honra. Eram os chamados crimes passionais, justificados pela emoção e pela paixão. Um tipo de crime exclusivamente masculino, justificado “pelo amor”. Compreensível a responsabilidade social das feministas não se interessarem por perspectivas mais relacionais, como o “consentimento” da mulher nos termos de Perrot (1988, p. 184) ou por sua possível cumplicidade, porque no final dos anos de 1970, o poder vertical e arbitrário dos homens era legitimado não somente pelo estatuto legal da época, como também pelo machismo vigente. Esse dicotomizava de um lado, a legítima defesa da honra como crime tipicamente masculino e do outro, o adultério como crime tipicamente feminino. Tal paradoxo colocava sempre a mulher na condição de culpada, ou de vítima. Não se vislumbravam outras possibilidades de se pensar o fenômeno, senão pela revolta histórica das “vingadoras” (CORRÊA, 1981, p. 76).

A segunda onda do feminismo no Brasil ocorreu nos anos de 1980 e inaugurou o feminismo das diferenças, segundo Pinto (2003). Entram em voga discussões sobre o aborto, a liberdade sexual e se incluem nas discussões feministas a saúde da mulher em seus aspectos mais íntimos como a sexualidade e o amor. Nessa perspectiva, a mulher passa a ser tratada como uma categoria diferenciada dos homens à medida que a liberdade sexual da mulher ganha visibilidade. Nota-se que houve um deslocamento do mirante sociológico das causas públicas, como o direito do voto,

para uma perspectiva mais indutiva das causas privadas, como o direito à sexualidade levando o olhar do pesquisador para outros mirantes. Se o sufragismo foi nominado de feminismo das semelhanças, por proclamar “somos iguais”, a nova virada feminista

dos anos de 1980, proclamava “somos mulheres”, daí a designação dessa onda como

o feminismo de identidade e a preocupação com outras dimensões do fenômeno, como a saúde da mulher, o aborto, a sexualidade, o planejamento familiar e a sua vida conjugal. Em 1988, o artigo 5º da Constituição iguala homens e mulheres em direitos e obrigações. É por essa via que, nessa década, iniciam-se as primeiras instituições de atendimento às mulheres vítimas da violência de seus companheiros.

Independentemente dos diferentes feminismos e das divergências entre as pesquisas de gênero, muitos avanços fundamentais ocorreram. Para o sociólogo

Bourdieu (2011; p. 106), “a maior mudança está, sem dúvida, no fato de que a

dominação masculina não se impõe mais com a evidência de algo que é indiscutível”. Essa dominação, naturalizada até a década de 1970, foi parcialmente desnaturalizada. No entanto, as teorias essencialistas, biologizantes, tão radicais quanto as perspectivas extremas da imaterialidade pós-moderna, encontram-se em processo de relativização, sobretudo no corpo de quatro instituições básicas da nossa sociedade, para as quais aponta Pierre Bourdieu. “Família, Igreja, Estado, Escola” (BOURDIEU, 2011, p. 101).

A terceira onda feminista desloca-se da categoria mulher para a categoria gênero, pois não restringe o feminismo apenas à mulher como era nos anos de 1980. O feminismo do início dos anos de 1990, influenciado pelo pós-estruturalismo, procurou desconstruir a categoria mulher, para a análise das diferenças de gênero até chegarmos às correntes da pós-modernidade em que se concebe a dissolução da própria noção de gênero. Nossa tese procurou focar a categoria mulher e seu sofrimento acerca da violência conjugal. Mais especificamente, o seu lugar no discurso da violência a partir dos anos de 1980, momento em que a sociedade expunha publicamente a violência contra a mulher, estampado no excerto a seguir.

Dez de outubro de 1980: dia em que a escadaria do Teatro Municipal de São Paulo ficou repleta de mulheres vestidas de branco e portando faixas com os dizeres “O silêncio é cúmplice da violência”, e, nomes de mulheres assassinadas por seus maridos. Um evento público que entre outras denúncias e palavras de ordem divulgou a formação da entidade SOS- Mulher...A ideia foi promover um júri popular que julgasse o assassinato recente de duas mulheres: Esmeralda Dias e Anne Marie Armichaub. “Quem

ama não mata” foi a frase repetida aos berros pelo coro das feministas entre cada uma das falas proferidas ao microfone. (GREGORI, 1993, p. 40).

A violência dos homens contra a mulher passa a ser o foco central do feminismo nesse período; especialmente das mulheres agredidas por seus maridos. Inicia-se uma reflexão sobre o amor e o poder na vida conjugal. A busca de autores, como Foucault, é utilizada para questionar a teoria da dominação patriarcal que concebe o poder como uma ordem vertical dos machos sobre as mulheres. Assim, novas perspectivas se manifestam.

Primeiro, entendemos que a noção de dominação patriarcal é insuficiente para dar conta das mudanças que vêm ocorrendo nos diferentes papéis que as mulheres em situação de violência têm assumido. Defendemos uma abordagem da violência contra as mulheres como uma relação de poder, entendendo-se o poder não de forma absoluta e estática, exercido via de regra pelo homem sobre a mulher, como quer-nos fazer crer a abordagem da dominação patriarcal, senão de forma dinâmica e relacional, exercido tanto por homens como por mulheres, ainda que de forma desigual. (SANTOS; IZUMINO, 2005, p. 8)

As pesquisadoras também destacam a relativização do lugar da vítima no processo da violência conjugal como apontam a seguir.

As pesquisas sobre o tema vêm demonstrando que a mulher, não é mera vítima, no sentido de que, ao denunciar a violência conjugal, ela tanto resiste quanto perpetua os papéis sociais que muitas vezes a colocam em posição de vítimas. O discurso vitimista não só limita a análise da dinâmica desse tipo de violência como também não oferece uma alternativa para a mulher. (SANTOS; IZUMINO, 2005, p. 5)

Outras pesquisadoras também se encaminham para essa direção, como Gregori (1993). A antropóloga entende a violência como um jogo relacional, no qual se desempenha um papel socialmente construído e esperado, “De um certo modo ser

vítima significa aderir a uma imagem de mulher” (GROSSI, 1991, p. 6). A relação entre

a vitimização e o amor, passa a ocupar um lugar nos estudos da violência. Até então essas duas categorias haviam permanecido na sombra das perspectivas de gênero. A presença da paixão nos estudos feministas não só relativiza a posição “passiva” da mulher, como convoca novos diálogos com novas perspectivas teóricas. Até o final dos anos de 1980, poucos estudos focaram os fatores e processos que poderiam estar corroborando com a manutenção da violência conjugal.

Estudos mais recentes sobre a violência doméstica no Brasil, especialmente nos anos noventa, reconhecem atitudes que levam mulheres a se manterem em relações de violência e até mesmo contribuírem para a continuidade do jogo, não só nos campos da Psicologia e da Psicanálise quanto no campo dos estudos de gênero e estudos feministas. (MACHADO, 1998, p. 3)

A afirmação vigente dos anos de 1980, “Quem ama não mata”, vai aos poucos

se enfraquecendo na entrada dos anos de 1990, perante as novas perspectivas teóricas sobre as relações conjugais. Quem padece do amor-paixão (ROUGEMONT, 1988) está condenado a uma relação de dor, e em muitos casos, até que a morte os separe. A maioria dos assassinatos de mulheres no Brasil, ainda recebe a nominação de crime passional, pela crônica policial. Nesse caso, quem ama, mata. O amor-paixão é um vício para Norhood (1988). Leva ao sofrimento para Rougemont (1988). É uma “carga” para Bourdieu (2011). No drama de Romeu e Julieta, atribui-se ao “destino” a força do amor e antes ainda, no mito de Tristão e Isolda, teria sido uma “poção mágica”

o álibi que uniu o casal. Na nossa tese, o amor é tratado como um “dispositivo” ao

qual, em diferentes graus todos aderimos.

As pesquisas feministas dos anos de 1990 encontram outras realidades históricas e outros discursos que se interpenetram, exigindo novas perspectivas sobre o fenômeno da violência contra a mulher.

As políticas sociais e pessoais que se seguiram se encaminharam para o aprofundamento e deciframento dessas questões. Tiveram que se defrontar não só com propostas de mudanças sociais e pessoais para os homens criticando suas posições de poder e de violência, mas também se defrontaram com o reconhecimento da dificuldade de mudar para muitas das mulheres suas posições de vítimas.

As, e os analistas da temática passaram a delinear e nomear como objeto de reflexão a trama mesma das relações entre homens e mulheres, e a dupla indagação sobre os lugares de uns e outros. Não basta entender as mulheres como vítimas, mas sim suas reações e interações. Também não basta entender as relações conjugais entre homens e mulheres apenas como relações de poder ou não-poder, de desigualdade ou de igualdade e de violência ou de não violência; essas relações também se organizam como relações de afetividade, sexualidade, amor e paixão. (MACHADO, 1998, p. 3).

Este trabalho considera que as lutas feministas das décadas de 1970 e 1980 foram de suma importância e se fizeram procedentes nessa caminhada contra a violência sobre a mulher. A perspectiva relacional que adotamos só é possível de existir porque outras lutas nos precederam.

4 PERSPECTIVAS TEÓRICAS