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Como método, tomamos as contribuições de Foucault e as deslocamos para entender a violência, especialmente a psicológica, tratando da “microfísica da violência” e desta enquanto processo relacional, tal como o poder.

Fanini (1992), embasada em Michel Foucault, trata da microfísica da violência utilizando-se do conceito do pensador francês de microfísica do poder. A violência espetáculo, física, não é a única forma de agressão, mas a violência imaterial, psicológica, discursiva, também afeta os relacionamentos. Para esta tese, usamos nesta acepção, reforçando a questão da violência do cotidiano dentro das famílias e que, não raras vezes, não é visível e palpável, mas é um exercício constante de todos contra todos especialmente pelas palavras violentas. A pesquisa também destaca a “microfísica do poder” de Foucault, ressaltando que o poder se exerce de todos contra todos e não só de um poder central e soberano sobre os subordinados. Aplica-se, no entanto, aos relacionamentos violentos não espetaculares, que são recriados esteticamente em obras da literatura. São aí descritos como microfísicos, ocorrendo no nível discursivo, psicológico, em oposição aos castigos e traumas físicos. Nesse sentido, utilizaremos em nosso estudo, ou seja, percebendo que nas microações e falas cotidianas reforçamos uma cultura da agressão, independente de nosso gênero. Assim:

o poder não existe. Quero dizer o seguinte: a ideia de que existe, em um determinado lugar, ou emanado de um determinado ponto, algo que é um poder, me parece baseada em uma análise enganosa e que, em todo caso, não dá conta de um número considerável de fenômenos. Na realidade, o poder é um feixe de relações mais ou menos organizado, mais ou menos piramidalizado, mais ou menos coordenado... então o único problema é munir- se de análises que permitam uma analítica das relações de poder (FOUCAULT, 1982, p. 248).

Como método e perspectiva teórica, aderimos à Análise de Discurso de Michel Foucault apresentada na obra A ordem do discurso. Não se interpreta o discurso unicamente pelo seu significado ou o que nele está subjacente. A Análise do Discurso remete-o às condições histórico-culturais que o constituíram, onde e como esses discursos se imbricaram. Neste caso, fazer uma análise foucaultiana das queixas de mulheres que sofrem com o parceiro amoroso, não é algo que nos habilitamos a fazer com desprendimento, pois encontrar tais imbricações exigiria um exercício epistemológico. Encontrar as estratégias da historicidade nas falas das participantes, não é tarefa da qual nos sentimos suficientemente autorizados. Quando apresentamos os dispositivos do amor-paixão, da sexualidade e do machismo, parece-nos aí, o ponto mais concentrado dessa tarefa, embora a nossa modesta Análise do Discurso esteja presente também ao longo de toda a tese.

O discurso inscreve a linguagem na história, especialmente por intermédio da instituição (FOUCAULT, 2012, p. 6-7). Logo, podemos defini-lo como uma linguagem institucionalizada. A instituição, uma das fontes principais do discurso, apodera-se das

estratégias da sua produção e reverberação, autenticando-o pelo “regime da verdade”

(p. 14). Diferentemente da linguagem, o discurso tem poder e designa hierarquias, contudo dentro de uma lógica relacional. O discurso do médico e a fala do paciente. O discurso do professor e a fala do aluno, ambos se endentam na reprodução de um saber-poder-saber. O discurso articula a língua com a história e a cultura e institui uma identidade, de aluno, de médico, professor e também uma identidade feminina e masculina. Homens e mulheres são constituídos por essa historicidade da linguagem e agem a partir desse arcabouço discursivo-cultural e histórico.

Assim, a violência de suas ações é também fruto de seus valores violentos veiculados, no e pelo discurso. Ao avaliar as falas das mulheres do corpus aqui selecionado, intentamos identificar esses valores negativos que levam a ações de agressão que também, infelizmente, conduzem à morte, de centenas de milhares de mulheres no Brasil. Nossa Análise do Discurso não se concentra somente no corpus principal da tese. Está presente em várias seções do nosso trabalho, como por exemplo, nos fatos que marcaram a experiência da violência na vida cotidiana de algumas mulheres que se tornaram notícia na crônica policial. Nas rebeliões dos presídios, letras de música, no Estudo de Caso de Oliveira (2011), nos crimes de gênero que abalaram a mídia nacional e relatos de mulheres que participam do grupo “Mulheres que Amam Demais Anônimas (MADA). Já da fonte principal do corpus

foram extraídos três dispositivos. O dispositivo de amor-paixão. O dispositivo de sexualidade e o dispositivo de machismo. Esses, julgamos serem representativos para nosso trabalho e serão tratados como “dispositivo” tal como o concebe Michel Foucault. O dispositivo é:

um conjunto decididamente heterogêneo que engloba discursos, instituições, organizações arquitetônicas, decisões regulamentares, leis, medidas administrativas, enunciados científicos, proposições filosóficas morais, filantrópicas. Em suma, o dito e o não dito são os elementos do dispositivo. O dispositivo é a rede que se pode estabelecer entre estes elementos. (FOUCAULT, 1982, p. 244).

Salienta-se aqui, a dimensão heterogênea do dispositivo que na aparência incauta, parece harmonioso, dado o “conjunto” de “proposições”. No entanto, Foucault (1984) vai revelar que ao falar da sexualidade, imaginava-se que se estivesse encontrado nela a nossa libertação, pela possibilidade que o século XVIII nos deu de falar e exercitá-la livremente. Ao contrário, ela é nosso cárcere, como veremos na subseção DISPOSITIVO DE SEXUALIDADE e na seção 5 AS FALAS FEMININAS ENREDADAS NOS DISPOSITIVOS.

Uma mulher, quando se arroga da sua liberdade de vestir a roupa que lhe convém e de ter um corpo escultural, atraente e moldado; não é expressão da sua beleza. É sim a sua submissão ao dispositivo da sexualidade. Outro exemplo desse “conjunto de proposições” é a relação entre a política e a guerra, duas categorias apresentadas pelo discurso midiático como entidades antagônicas, mas, atentas para que a surdez da história permita em algum fraquejo seu, que elas muito rapidamente se transformem, uma na outra. Também convém ressaltar que a concepção de dispositivo, menciona as “proposições filantrópicas”. Estas, sempre ávidas para acolher os oprimidos, seja pelos movimentos sociais ou pelas resistências, alertam- nos sobre a necessidade de se inventar, ou ressaltar um grande mal, como estratégia para se encontrar a utilidade do bem. A aparente harmonia com a qual esses discursos, leis, decisões administrativas, enunciados científicos, se reverberam por todos os lugares, revela a difícil tarefa de se fazer uma análise crítica do discurso, incorrendo nos mesmos equívocos que procuramos denunciar, como nos alerta Foucault. Nossas críticas ou resistências muitas vezes acabam sendo nada mais que o “outro termo nas

relações de poder” (FOUCAULT, 1984, p. 91). Por vezes, a defesa de uma causa torna-

das correlações de força que se deve tentar analisar os mecanismos de poder” (FOUCAULT, 1984, p. 91). Nada se encontra na posição de exterioridade a ele.

Questionamos ao longo da tese a concepção de poder adotada pelas pesquisas de gênero que utilizam a perspectiva da dominação masculina e que se colocam como um instrumento do lado de fora do fenômeno. Entendem o poder como uma categoria social centralizado na soberania do homem dominador, verticalmente capaz de impedir e submeter a mulher no lugar de oprimida. Essa concepção tem a sua tradição de longa data. Apoia-se numa representação jurídica que permaneceu num sistema de lógicas conduzida pela culpa e pela inocência. Eles culpados, elas vítimas. “Nossa linha de fuga nos afasta cada vez mais de um reino do direito” (FOUCAULT, 1984, p. 86). Com a gênese nas monarquias da Idade Média e potencializado a partir do século XVIII, o jurídico serviu como representante da história da sexualidade e das relações entre homens e mulheres, mediadas pelo modelo “poder-lei”. Emprestamos de Foucault a saída para construir “uma analítica do poder que não tome mais o direito como modelo e código” (FOUCAULT, 1984, p. 87).

O que rege a sexualidade e as relações de gênero, são as estratégias de normalização, os dispositivos, os funcionários do saber, os discursos, as instituições, tudo isto agora entendido como os “novos procedimentos do poder que funcionam, não pelo direito, mas pela técnica” (p. 86). Procedimentos que não impedem, que não

reprimem, que não interditam. Que não dizem “não”. Ao contrário, seria esse um poder

ineficaz, inaceitável, facilmente combatido, pelo inconformismo dos dominados. Mas, contrariamente a isso, os “dispositivos da dominação” não se reduzem ao

exclusivismo do enunciado da lei, pois se assim fosse, “todos os modos de dominação,

submissão, sujeição, se reduziriam, finalmente, ao efeito de obediência” (p. 83). As estratégias de poder não funcionam como um mecanismo proibitivo, apenas “apto a colocar limites” este, seria a tragédia da sua ineficácia: O “nada poder”. Sua eficácia funciona de outra maneira. O poder não impede o sujeito de um não-fazer. Ao contrário, conduz a fazer o que o discurso diz. Por isto o poder não reprime, mas reproduz aquilo que supostamente estaria obliterado.