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No contexto atual, em que vivemos uma franca expansão do alcance e do uso das tecnologias digitais, como a internet e os smartphones, compreendo que é de fundamental importância a realização de estudos acerca de atividades que se utilizam da rede telemática para realizar produções em parceria. A meu ver, práticas ligadas à ideia de hardware livre, como a construção artesanal de sintetizadores, vão no sentido de uma articulação múltipla de conexões, visando a construção e o desenvolvimento de conhecimento e tecnologia.

Na presente dissertação, busquei explorar algo que as tecnologias digitais expandiram com muita força na contemporaneidade: a capacidade de se conectar. Procurei observar e refletir acerca das diversas conexões articuladas nas práticas que envolvem os sintetizadores. Seja entre fabricantes, internautas e tecnologias nas trocas de ideias e criações, visando a construção dos equipamentos, seja entre os módulos na instalação de um sistema modular e, através deles, entre diferentes linhagens tecnológicas, a conectividade parece ser fundamental nessa atividade.

A partir de trabalhos de Bruno Latour (2012) e Jean Segata (2013; 2014), procurei formar redes unindo as diversas conexões. O pensamento desses autores enxerga as redes como construtos do pensamento, uma espécie de ferramenta metodológica, articulada através da ligação de pontos para facilitar a observação da conectividade do panorama geral. Com esses autores, busquei construir redes para refletir sobre os efeitos das ações, parcerias e conexões em conjunto na construção e troca de ideias sobre os sintetizadores, tais como o desenvolvimento de novas formas de trabalhar a tecnologia, a capacitação das pessoas para construírem seus próprios equipamentos e o desenvolvimento de novas formas de produzir conhecimento tecnológico.

Por sua vez, esse último efeito seria uma das mais importantes contribuições do hardware livre para a contemporaneidade: a criação de novas maneiras de trabalhar tecnologia e conhecimento. Inspirando-me na reflexão de Takeuti (2016) sobre a formação de novos contornos de uma cultura política, que se realiza em ações de parcerias abertas, distanciando- se dos métodos tradicionais da política hegemônica, ligada a partidos e movimentos institucionais, pude refletir sobre a maneira como os artesãos de sintetizadores, assim como

outros adeptos do hardware livre, podem contribuir para o surgimento de uma nova política do conhecimento e da tecnologia.

Isto é, através do compartilhamento e da difusão indiscriminada de informações, esses construtores se distanciariam de uma antiga postura que entende o conhecimento como algo que deve ser reservado a poucos privilegiados, seja através da difícil entrada em Universidades públicas, seja pagando cursos particulares ou se unindo a algum profissional experiente como aprendiz. Na realidade, a internet como um todo realiza uma ruptura em relação a essa visão, através de ferramentas como a enciclopédia Wikipedia e várias outras páginas que veiculam conhecimentos os mais diversos.

O hardware livre vai de encontro também a noções fortes no capitalismo, como a competição e o patenteamento de invenções. Enquanto as patentes transformam o conhecimento tecnológico em uma mercadoria de altíssimo valor, isolada nas mãos das empresas proprietárias, a abertura e a divulgação dos esquemáticos, sejam eles de hardwares ou de softwares, apostam no compartilhamento como uma maneira de desenvolver o conhecimento. Além disso, a competitividade, característica do capitalismo, é abandonada em favor da cooperação: grandes fabricantes, como o falecido Ray Wilson, não pensam que ajudar alguém a aprender sobre os sintetizadores irá fornecê-los um competidor, mas sim um colega de prática, com o qual eles poderão trocar ideias posteriormente, ensinando, mas também aprendendo.

O sistema Eurorack e a sua adesão por parte dos fabricantes representa também um distanciamento da mentalidade capitalística presente em diversas empresas de tecnologia que prezam pela exclusividade no que diz respeito à conectividade dos seus produtos. Por exemplo, certas marcas de celular e de computador só permitem a compatibilidade dos aparelhos com acessórios da mesma marca, tais como carregadores e fones de ouvido. Já os sintetizadores modulares procedem de uma maneira completamente diferente, uma vez que, através da adesão ao sistema Eurorack, módulos dos diversos fabricantes, até mesmo com diferentes métodos de síntese, podem ser conectados para juntos produzirem som como um único sistema modular.

Devido às especificidades de um campo empírico espalhado pelas redes virtuais através de conexões momentâneas, ou mesmo de possibilidades de conexão, compreendo que a pesquisa aqui descrita exigiu a articulação de um pensamento aberto a essas conectividades. A realização desse trabalho demonstrou a necessidade do desenvolvimento de saberes que possam refletir a interatividade e conectividade cada vez mais presentes na atualidade.

Articulações teóricas como as de Bruno Latour (2012), mas também as que propõe Norma Takeuti (2016), se desprendendo de conceitos considerados clássicos por uma sociologia focada em laços sociais estáveis e fatos sociais cristalizados, para privilegiar as associações e conexões momentâneas, ou as associabilidades, como coloca Takeuti, foram fundamentais. Na pesquisa sobre os artesãos de sintetizador, os escritos de autores com esse tipo de pensamento possibilitaram o estudo das articulações sociais mobilizadas pela web que não chegavam a se cristalizar na forma de grupos sociais. Através da sua interpretação da obra de Latour, Segata (2013; 2014) também foi fundamental, abrindo o entendimento das ações em redes no mundo digital.

Formulações teóricas de Deleuze e Guattari (2012a, 2012b, 2014), como as ideias de rizoma (DELEUZE; GUATTARI, 2014) e espaço liso (DELEUZE; GUATTARI, 2012a), também representaram uma formidável contribuição a esse estudo. Tais conceitos facilitaram a reflexão acerca do funcionamento das redes que envolvem o sintetizador, no que diz respeito à abertura das conexões e comunicações, que ocorrem sem a presença de uma organização hierárquica. A obra desses autores também auxiliou na compreensão da maneira aberta através das quais algumas empresas de construção de sintetizadores, como a Bastl Instruments, trabalham.

Outra situação comumente negligenciada pela sociologia, com a qual me deparei desde o início da pesquisa, são as relações e conexões entre agentes humanos e não humanos. Pesquisando sobre o desenvolvimento e a construção de equipamentos eletrônicos com o suporte da internet, não seria possível deixar de lado a importância dos objetos tecnológicos. A observação dessas relações se tornou possível através da mobilização de aportes teóricos e metodológicos, de autores como Bruno Latour (2012) e Gilbert Simondon (1980). O primeiro foi fundamental através da noção da presença dos objetos não humanos nas ações, enquanto o segundo trouxe a importância do modo de existência dos objetos técnicos.

Simondon (1980) elabora uma crítica a respeito da pouca compreensão que cultura ocidental possui da presença dos objetos tecnológicos em nossas vidas. Apesar do vasto conhecimento tecnocientífico, que proporciona o desenvolvimento de diversos aparelhos e máquinas novas, não há um entendimento subjetivo, ou cultural, como coloca o autor. Por um lado, as máquinas são vistas com desconfiança, de maneira que muitas pessoas acreditam que elas ameaçariam a humanidade, enquanto, no extremo oposto, há uma espécie de idolatria das máquinas, que as observa como agentes externos, capazes de sozinhas proporcionar diversos avanços à humanidade, resolvendo nossos problemas.

Compreendo que a construção artesanal de sintetizadores e a observação e reflexão acerca dela pode proporcionar uma maior compreensão técnica nesse sentido. Fabricantes como os membros da Bastl Instruments, comprometidos com o desenvolvimento de máquinas abertas e envolvidos numa forma de produção inventiva e aberta, a meu ver, possuem um entendimento subjetivo ou cultural do papel das máquinas, utilizando a tecnologia para produzir arte e produzindo tecnologia de maneira artística.

Na realidade, a própria rede de trocas de informação e construções de parcerias que envolve os sintetizadores, abordada nessa dissertação, proporciona um maior entendimento sobre os objetos técnicos. Assim como o desenvolvimento dos chamados softwares livres, a prática do hardware livre visa a abertura dos códigos, no caso, do processo de construção das máquinas. Dessa forma, ocorre uma abertura, tanto no que diz respeito ao potencial de modificação e aperfeiçoamento desses instrumentos, quanto à possibilidade de conexão com outras máquinas e com o ser humano, a partir dos diversos usos possíveis. Assim, tais iniciativas contribuiriam para a construção de uma nova relação do ser humano com a tecnologia, embasada no entendimento da presença dela através do seu potencial criativo e da capacidade de auxiliar na expansão do conhecimento e do acesso ao mesmo.

Dessa forma, na prática do hardware livre, a tecnologia representa um mediador fundamental na construção e na difusão de conhecimento e, no caso dos sintetizadores, arte. A rede mundial de computadores e seus softwares e sites diversos, assim como várias inovações tecnológicas que ocorreram ao longo da história, tais como o sistema Eurorack e o padrão de afinação de volt por oitava, são atores nessa rede, junto com os artesãos, promovendo o aperfeiçoamento e a difusão de conhecimento eletrônico e sonoro.

A partir da pesquisa realizada visando a presente dissertação, compreendi que iniciativas como essas, que promovem uma difusão do conhecimento tecnológico e a sua utilização de maneira inventiva possibilitam uma relação entre o ser humano com a tecnologia para além de uma oposição ou de uma idolatria. A meu ver, uma construção aberta e inventiva proporciona uma maior presença humana nessas máquinas, e a coordenação das mesmas como um conjunto modular é uma prática que vai no sentido da compreensão da existência dos objetos técnicos.

Pesquisando acerca dos sintetizadores DIY, surgiram diversos questionamentos que, apesar de impulsionarem o trabalho, não puderam ser resolvidos de forma definitiva. Portanto, trago aqui as principais hipóteses que esse estudo fez surgir. Foi possível observar a importância da conectividade no mundo contemporâneo, assim como a necessidade de formulações teóricas mais abertas a essa interatividade. A partir do esboço teórico das associabilidades lisas,

trabalhado por Takeuti (2016), busquei aportes teóricos em autores como Latour (2012) e Deleuze e Guattari (2012a, 2012b, 2014) para melhor compreender as associações abertas e provisórias. Um estudo acerca das maneiras de se relacionar que os internautas vêm exercitando nos diversos espaços da web, focando na produtividade e criatividade presente nessas conexões pontuais e momentâneas, seria profundamente construtivo para um entendimento do que fazemos ao acessar a internet, para além de apologias ou críticas simplistas.

Percebo também que iniciativas coletivas como a que envolve os sintetizadores trazem, além de um entendimento mais profundo do uso das tecnologias, a possibilidade da construção de conhecimento e tecnologia a partir de parcerias e da difusão irrestrita de informação, rompendo com práticas antigas de elitização do conhecimento que acabam por travá-lo no tempo. Outra hipótese que a pesquisa fez surgir, e que renderia uma outra investigação, diz respeito às mudanças que certos usos das ferramentas da internet estariam provocando na maneira como as pessoas aprendem e ensinam. A partir da distribuição irrestrita de conhecimento que ocorre através da disposição de e-books, artigos e vídeos tutoriais, assim como as discussões e parcerias formadas nos fóruns, estaria surgindo uma forma de aprendizado que difere da educação institucional e da relação professor e aluno, ao possibilitar ao internauta uma maior autonomia no que concerne ao que ele almeja aprender.

O desenvolvimento de ferramentas tecnológicas e a utilização da internet como plataforma de compartilhamento e construção de conhecimento em parceria é um terreno fértil para a realização de diversas incursões sociológicas. As redes virtuais da internet já vêm sendo estudadas pelas ciências humanas, entretanto, percebo que não há uma atenção suficiente para a conectividade fugaz que se configura nas relações dentro da web. Compreendo que estudos nessa área demonstram a necessidade de uma sociologia que observe também associações pontuais levando em consideração a produtividade tecnológica, intelectual e artística dessas parcerias.

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