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Insalubridade, terceirização e marginalização

3 O TRABALHO DOS GARIS COLETORES DE RESÍDUOS

3.3 Insalubridade, terceirização e marginalização

Há uma preocupação constante dos organismos internacionais, como a Organização Mundial da Saúde e a Organização Internacional do Trabalho (OIT), em dar concretude às diversas formas de proteção do trabalhador nesta seara laboral. Se, no passado, o homem tinha de adaptar-se ao trabalho exercido em condições subumanas perpetradas na revolução industrial, hodiernamente, há a necessidade das condições de trabalhose adaptarem ao homem, consoante a forma de produção capitalista, em que o trabalhador é inserido como parte integrante do processo produtivo e elemento fundamental na organização do trabalho (GONÇALVES, 2011).

No Brasil, até o final da década de 1970, a Consolidação das Leis do Trabalho (CLT), aprovada pelo Decreto-Lei nº 5.452 de 1º de maio de 1943, dispunha de capítulo dedicado à “Segurança e Higiene do Trabalho”. Com a publicação da Lei 6.514 de 22 de dezembro de 1977, foi atribuído ao citado capítulo o título de “Segurança e Medicina do Trabalho”. Tal alteração demonstra a preocupação do Estado em garantir proteção legal mais ampla ao trabalhador, visto que o termo “medicina do trabalho” possui maior abrangência, essencialmente no que diz respeito às consequências negativas imediatas do exercício do trabalho em local não dotado de higiene. Em suma, a medicina do trabalho considera os aspectos relativos à saúde do trabalhador, que deve ser observada muito além de reações aparentes, tendo em vista que o conceito de saúde perpassa pela condição física e psíquica do indivíduo (BRASIL, 2014).

De acordo com o artigo 155 caputeinciso I, da CLT, pós alteração também promovida pela Lei 6.514/1977, incumbe ao órgão de âmbito nacional competente em matéria de segurança e medicina do trabalho, neste caso o Ministério do Trabalho e do Emprego (MTE), estabelecer, nos limites de sua competência, normas sobre a aplicação dos preceitos relativos àtemática. Por meio de Portaria, o MTE exerce a competência de regulamentação dando origem à Norma Regulamentadora (NR) específica, dotada de força normativa (BRASIL, 2014).

As Normas Regulamentadoras devem ser observadas obrigatoriamente pelas empresas privadas e públicas, pelos órgãos públicos da administração direta e indireta, bem como pelos órgãos dos Poderes Legislativo e Judiciário, que possuam empregados regidos pela CLT.

De outro modo, as disposições contidas no texto da NR se aplicam, no que couber, aos trabalhadores avulsos, às entidades ou empresas que lhes tomem o serviço e aos

sindicatos representativos das respectivas categorias profissionais. A observância das Normas não desobriga as empresas do cumprimento de disposições que, com relação à matéria, sejam incluídas em códigos de obras ou regulamentos sanitários dos estados ou municípios, e de outras, oriundas de convenções e acordos coletivos de trabalho.

O lixo representa o resíduo sólido descartado pela população. A Associação Brasileira de Normas Técnicas (ABNT-NBR-10004) define resíduos sólidos como:

Resíduos nos estados sólidos e semi-sólidos, que resultam de atividades da comunidade de origem: industrial, doméstica, hospitalar, comercial, agrícola, de serviços e de varrição. Ficam incluídos nesta definição os lodos provenientes de sistemas de tratamento de água, aqueles gerados em equipamentos e instalações de controle de poluição, bem como determinados líquidos cujas particularidades tornem inviável o seu lançamento na rede pública de esgotos ou corpos de água, ou exijam para isso soluções técnicas e economicamente inviáveis em face à melhor tecnologia disponível. (Associação Brasileira de Empresas de Tratamento de Resíduos, 2006).

De acordo com o Manual de Gerenciamento Integrado de Resíduos Sólidos do Governo Federal (MONTEIRO et. al., 2001), a Constituição Federal, em seu art. 30, inciso V, dispõe sobre a competência dos municípios em "organizar e prestar, diretamente ou sob regime de concessão ou permissão, os serviços públicos de interesse local, incluído o transporte coletivo, que tem caráter essencial".

O que define e caracteriza o "interesse local" é a predominância do interesse do Município sobre os interesses do Estado ou da União. No que tange aos municípios, portanto, encontram-se sob a competência dos mesmos os serviços públicos essenciais, de interesse predominantemente local e, entre esses, os serviços de limpeza urbana.

O sistema de limpeza urbana da cidade pode ser administrado das seguintes formas: a) diretamente pelo Município; b) através de uma empresa pública específica e c) através de uma empresa de economia mista criada para desempenhar especificamente essa função.

Antes de verificar o disposto em Norma Regulamentadora relativa às atividades ou ambientes insalubres, faz-se necessária a análise da legislação que, de modo geral, traz definições acerca do tema. Desse modo, o artigo 189 da CLT, estabelece que:

Serão consideradas atividades ou operações insalubres aquelas que, por sua natureza, condições ou métodos de trabalho, exponham os empregados a agentes nocivos à saúde, acima dos limites de tolerância fixados em razão da natureza e da intensidade do agente e o tempo de exposição aos seus efeitos. (BRASIL, 2014).

relacionados ao trabalho e a eles peculiares, podem contrair doenças causadas pelos mesmos, chamadas de Doenças Profissionais. O ambiente de trabalho insalubre coloca em risco a saúde, a segurança e o bem-estar dos trabalhadores.

Os riscos ocupacionais são aqueles presentes no ambiente laboral. Podemos encontrar duas espécies de riscos ocupacionais: os riscos ambientais e os riscos de operação. Os primeiros desencadeiam as moléstias profissionais e os segundos, os acidentes de trabalho.

Riscos ambientais são os riscos existentes no ambiente de trabalho, que, em função de sua natureza, concentração ou intensidade e tempo de exposição, são capazes de causar danos à saúde do trabalhador.

Os principais riscos ambientais e operacionais presentes na coleta de resíduos são: risco químico (gases, névoa, neblina, poeira e substâncias químicas tóxicas), físico (ruídos, vibração, calor, frio e umidade), biológico (doenças patológicas, animais transmissores de doenças, lixo hospitalar), ergonômico (levantamento de peso em excesso, correr atrás do caminhão, subir no caminhão) e acidentes (corte com materiais perfurantes, quedas, contusões, atropelamento e esmagamento).

A presença de substâncias químicas agressivas no ambiente de trabalho, isto é, no caminhão de coleta de lixo, pode constituir um risco para a saúde dos trabalhadores. Isso não significa que todo o pessoal exposto irá contrair uma doença profissional, o que dependerá da concentração do contaminante no ambiente de trabalho, do tempo de exposição, das características físico-químicas do contaminante e da susceptibilidade pessoal.

Inegavelmente, os valores culturais atribuídos ao lixo tornam-se um sério determinante na atividade dos garis e contribuem para uma desvalorização do trabalhador na área. Seligmann-Silva (1994) afirma que o conteúdo de certas ocupações está relacionado aos significados atribuídos a elas e aos trabalhadores que as realizam.

Do ponto de vista psicossocial, uma série de tarefas e ocupações podem apresentar significados que levem a uma discriminação e desvalorização de seus executantes, em decorrência, por exemplo, da natureza e do conteúdo de atividades em que há contato com dejetos e cadáveres. (SELIGMANN-SILVA, 1994, p. 127).

Independentemente disso, os serviços podem ser ainda objeto de concessão ou terceirizados junto à iniciativa privada. As concessões e terceirizações podem ser globais ou parciais, envolvendo um ou mais segmentos das operações de limpeza urbana. Existe ainda a possibilidade de consórcio com outros municípios, especialmente nas soluções para a destinação final dos resíduos.

A terceirização é o que ocorre no município de Fortaleza-CE na prestação do serviço de recolhimento de lixo domiciliar em substituição à administração direta municipal. Com essa forma de prestação de serviços, a empresa contratada passa a executar, com seus próprios meios (equipamentos e pessoal), a coleta, a limpeza de logradouros, o tratamento e a destinação final dos resíduos.

O Manual de Gerenciamento Integrado de Resíduos Sólidos do Governo Federal (MONTEIRO et. al., 2001) relata que a terceirização consolida o conceito próprio da administração pública, qual seja, de exercer as funções prioritárias de planejamento, coordenação e fiscalização, podendo deixar às empresas privadas a operação propriamente dita. É importante lembrar que a terceirização de serviços pode ser manifestada em diversas escalas, desde a contratação de empresas bem estruturadas com especialidade em determinado segmento operacional, tais como as operações nos aterros sanitários, até a contratação de microempresas ou trabalhadores autônomos, que possam promover, por exemplo, coleta com transporte de tração animal ou a operação manual de aterros de pequeno porte.

A Autarquia de Regulação, Fiscalização e Controle dos Serviços Públicos de Saneamento Ambiental (ACFOR), através da Diretoria de Resíduos Sólidos, é o órgão designado para regular, fiscalizar e controlar os serviços de limpeza pública realizados pela empresa concessionária, nos termos das Leis 8987/95 e 11445/07 (ACFOR, 2015).

Segundo a lei 12.305/2010 Art. 3º, Gestão Integrada de Resíduos Sólidos é um conjunto de ações voltadas para a busca de soluções para os resíduos sólidos, de forma a considerar as dimensões política, econômica, ambiental, cultural e social, com controle social e sob a premissa do desenvolvimento sustentável (ACFOR, 2015).

A partir de 2007, os caminhões coletores que fazem a coleta domiciliar da cidade de Fortaleza passaram a ser fiscalizados através de um sistema de monitorados por sinais de satélite (GPS). Por meio do sistema, pode-se verificar o tempo do circuito de coleta, acompanhar a coleta e a chegada ao destino final, que pode ser o aterro do Jangurussu ou o Aterro Sanitário Metropolitano Oeste de Caucaia (ACFOR, 2015).

Os funcionários da administração pública pareciam estar preservados da exploração intensificada da força de trabalho decorrente das relações de trabalho pós- fordistas. Entretanto, com a redefinição das funções do Estado contemporâneo, a terceirização avança a passos largos, inclusive no setor público, impulsionado pela racionalização da administração pública. Ao Estado, reduzido às funções essenciais, caberia controlar e regular as atividades econômicas em vez de executá-las; na prática, com a terceirização, assistimos à desregulamentação das relações de trabalho e à perda de controle pelo trabalhador sobre as

condições de realização do trabalho. Não se trata, aqui, do controle legal, uma vez que o uso da força de trabalho assalariada pertence formalmente ao empregador, mas sim do controle sobre o trabalho real (SANTOSet. al., 2009).

Como afirma Lima (2010), embora a flexibilização e a terceirização não impliquem necessariamente na precarização dos processos e das relações de trabalho, progressivamente tornam-se sinônimos.

Um dos aspectos da complexidade do trabalho dos garis é revelado pela importância que eles atribuem ao conhecimento do trecho a ser percorrido e pela regulação coletiva do trabalho, fundamentais para que as equipes, chamadas de “guarnições”, gerenciem os diversos eventos e imprevistos, ao ponto de denominarem os roteiros de coleta de “meu trecho”. Todavia, a empresa continua terceirizando os trechos, separando as equipes e remanejando os garis para outras funções e outras regiões, de forma autoritária e inesperada, desconhecendo a complexidade real desta atividade (VASCONCELOSet al., 2008).

A adoção do modelo mundial de terceirização e/ou privatização dos serviços de limpeza urbana nos países em desenvolvimento pode ter um reflexo negativo sobre a saúde dos colaboradores, já que, além de uma redução nos seus padrões salariais, a rotatividade é extremamente elevada nas empresas privadas do setor. Isso inviabiliza programas de treinamento e de prevenção, podendo resultar em um aumento no número de acidentes e na deterioração dos padrões de saúde dos referidos colaboradores (FERREIRA, 1997).

Borges e Mourão (2013) afirmam que, no chamado mundo do trabalho, podemos dizer que existe uma hierarquia de profissões, na qual as que têm prestígio são valorizadas, reconhecidas e ocupam os lugares mais altos na escala social, enquanto outras, desconhecidas e desprovidas de calor social e, em alguns casos, até mesmo temidas pelo contágio que possam supostamente provocar, encontram-se no nível mais baixo da escala.

As autoras asseguram também que existem, no interior de cada ofício ou função, atividades que se constituem em fonte de prazer e gratificação e outras consideradas como indevidas ou ingratas. Tais diferenças orientam tantos os olhares externos quanto a imagem que os trabalhadores fazem de si mesmo.

Segundo Borges e Mourão (2013), algumas atividades ocupam a cena e outras, marginalmente, encontram-se nos bastidores da organização produtiva. Estas últimas, muitas vezes envergonhando quem as realiza, são invisíveis, ocultadas, silenciadas, consideradas como restos da produção de primeira classe. Nesse caso, o objeto de trabalho é alvo da negação ou condenação, e os trabalhadores são contaminados pelo mesmo julgamento, a

ponto de muitos se calarem sobre seu trabalho ou o esconderem em ambiguidades e tentativas de uma apresentação que o valoriza.

Existem, evidentemente, casos em que tal contaminação não atinge a relação do sujeito com seu trabalho que preserva a dimensão de realização profissional e de construção de sentido, como as singularidades e a complexidade das energias entre atividade, valores e saberes nos permitem entender (SCHWARTZ; DURRIVE, 2007).

Para os que trabalham com lixo, dejetos e cadáveres, a aproximação com o objeto do trabalho é incontornável, ocupando esses objetos posição de inferioridade, de impureza, de infecção e indignidade e até mesmo de intocabilidade. Tais trabalhadores não têm uma imagem social valorizada, são massivamente contaminados pelo que manipulam. Fazer dos restos seu trabalho não é tão simples: significa confrontar-se com o que provoca nojo ou repulsa a si próprio e àqueles que possuem um olhar de desprezo sobre essas atividades ou desviam o olhar para manter o dejeto no esquecimento (BORGES; MOURÃO, 2013).

A associação ao lixo, ao impuro, coloca em jogo o medo da contaminação ou degradação. Podemos citar pesquisas similares com categorias que se enquadram nesse perfil, como: os catadores de papel (BARROS; PINTO, 2008), os trabalhadores em cemitérios, funerárias e similares (BARROS; SILVA, 2004;SANTOS, 1998), os coletores de lixo (OLIVEIRA, 2004), entre outros. Além de discriminantes por seu conteúdo, geralmente são atividades que submetem os trabalhadores a condições insalubres e de sobrecarga física e psíquica.

Borges e Mourão (2013) afirmam que o risco de uma identificação coesa à sujeira, ao abjeto e à morbidade é grande, e o olhar do outro tende a assimilar o trabalhador ao objeto com o qual trabalha.

Nesse caso, as defesas passam por uma prática discursiva tecnicista: o vocabulário utilizado visa a suprimir ou camuflar a carga afetiva associada ao objeto do trabalho, depurar seu significado. “Resíduo” é menos inconveniente do que “lixo”, “agente de limpeza urbana” substitui “lixeiro”, “gari” substitui “varredor”.

Sobre a „contaminação‟, Borges e Mourão (2013) exemplificam que, em uma pesquisa realizada nos cemitérios públicos de Belo Horizonte, em Minas Gerais, os trabalhadores relataram que seus amigos geralmente não sabiam onde eles trabalhavam, pois “Trabalhar em cemitério dá medo nas pessoas, elas se afastam de nós.” Da mesma forma, procurando maior valorização, nomeavam-se como plantonistas de sepultamento, e não coveiros, como são geralmente conhecidos. Mesmo aqueles que exerciam atividades administrativas recusavam-se a dizer que trabalhavam em cemitérios, afirmando

simplesmente que trabalhavam na prefeitura de Belo Horizonte, pois, segundo um de nossos entrevistados, “Se digo que trabalho em cemitério, as pessoas vão ficar com nojo de mim. Até em minha casa, a roupa e o sapato que uso para trabalhar ficam do lado de fora para não serem misturados com as outras coisas.”

Lhuilieret al. (2009) relatam que algumas atividades contêm mais trabalho sujo do que outras, como os trabalhos realizados no “negativo psicossocial”. Nesse caso, esses trabalhos podem ocupar um lugar de pouca realização profissional para os sujeitos que neles estão inseridos, impossibilitando-os de se reconhecerem e de serem reconhecidos por meio dessas atividades, colocando-os à margem das sociabilidades construídas pelo trabalho.

À medida que sobe na hierarquia das profissões, o trabalhador delega o trabalho sujo para aqueles que ocupam posições mais baixas. Assim é que a definição de trabalho sujo se estabelece sobre o critério de proximidade ao que é repugnante e abjeto.

Cada um tem seu lugar na hierarquia que posiciona no topo os que são dispensados de manipular e aproximar-se diretamente da sujeira do repulsivo. Até mesmo dentre os „trabalhadores do lixo‟ existe uma distinção de atividades, em que limpeza, manejo e remoção de resíduos sólidos, em geral, são executados por pessoas que possuem grau de escolaridade e nível social baixos, estando, assim, fadados a exercer tais funções insalubres e degradantes.

Finalizando o referencial teórico que embasará este estudo, o objetivo principal é investigar os sentidos do trabalho no campo profissional dos trabalhadores de uma empresa de coleta de resíduos domiciliares. Além disso, pretende-se analisar o sentido do trabalho sob a dimensão individual; investigar a dimensão organizacional do sentido do trabalho e caracterizar a dimensão social do sentido do trabalho, sempre sob a perspectiva dos trabalhadores garis coletores da empresa de coleta.

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