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Uma abordagem multimodal de situações do ensino de ciências mediadas por simulações e laboratórios virtuais parece ainda mais pertinente, quando consideramos o caráter multimidiático desses recursos mediadores. Para apresentar conceitos e modelos da Física Escolar aos estudantes, as simulações e os laboratórios virtuais costumam combinar sons, imagens em movimento, textos escritos em língua materna, equações, dentre outros. Imagens, equações e outros elementos gráficos, por sua vez, aparecem reunidos em inscrições didáticas.

O conceito de inscrição didática pode ser encontrado no livro Critical Graphicacy:

understanding visual representations practices in school science (2005), escrito por

Roth, Ardenghi e Han. A maioria das ideias apresentadas nesta seção é orientada por esse trabalho.

De acordo com os autores, inscrições podem ser compreendidas como representações não-verbais, constituídas por um ou mais signos, usadas para comunicar informações, fenômenos abstratos, ou para organizar dados. O conceito de inscrição didática designa de modo genérico objetos tais como fotografias, tabelas, gráficos, diagramas, fluxogramas e equações.

Segundo Roth et al. (idem) as inscrições estendem-se ao longo de um continuum que separa os mundos vividos e os mundos idealizados ou concebidos pelas Ciências. Nesse

continuum, as inscrições localizadas na extremidade esquerda são menos abstratas e

mais carregadas de informações vinculadas com contextos específicos. Em outras palavras, essas inscrições se aproximam daquilo que os autores chamam de “mundo vivido”. No extremo direito do mesmo continuum, estão inscrições mais abstratas que têm pouca ou nenhuma informação vinculada a contextos específicos de vida. Tais inscrições constituem representações daquilo que os autores chamam de mundos concebidos pelas Ciências. Os autores afirmam que aprender Ciências equivale a aprender a transitar entre os mundos vividos e os mundos concebidos por meio de diferentes tipos de inscrições. Isso implica compreender as relações entre as inscrições que compõem o continuum. Tal compreensão emerge, necessariamente, de práticas sociais e culturais de uso das inscrições em situações relevantes.

A figura 2, inspirada no trabalho de Roth et al. (2005, p.86), situa diferentes tipos de inscrições dentro desse continuum.

FIGURA 2: Continuum no qual se distribuem os diferentes tipos de inscrições.

De cima para baixo, na figura 2, nós encontramos as seguintes inscrições: (a) fotografia de uma mola na qual se propaga uma onda transversal; (b) ícone que representa a mola que aparece nessa fotografia; (c) esquema com a representação de frentes de onda com a indicação do seu comprimento de onda; (d) gráfico mostrando a amplitude da onda, em um dado instante, em função da posição s, ao longo da sua direção de propagação; (e) expressões que relacionam a velocidade de propagação da onda com outras grandezas físicas que a caracterizam.

No esquema mostrado na figura 2, quanto mais em cima estiver situada uma determinada inscrição, maior é a quantidade de informações contextuais que podemos

obter a partir dela. Por isso, se a fotografia mostrada no topo da figura tivesse maior tamanho e melhor resolução, poderíamos identificar até o material que constitui a mola, uma vez que molas desse tipo podem ser feitas tanto com metal, quanto com plástico. Deslocando nossos olhos para baixo, encontramos uma inscrição com menos informações contextuais. Nela aparece um esquema que não se limita à representação de ondas em molas, mas pode representar qualquer tipo de onda periódica (mecânica ou eletromagnética, transversal ou longitudinal) se propagando em qualquer meio. Essa inscrição, na verdade, abstrai todas as características das ondas, exceto: o sentido de propagação, as cristas e os vales e a distância entre essas duas fases. Tanto o grau de abstração, quanto a perda de informações contextuais vai aumentando, progressivamente, quando olhamos para inscrições situadas mais abaixo no esquema. Assim, na parte inferior da figura temos inscrita uma equação que não faz referência contextual a nenhuma situação específica.

Ao interpretarmos a figura 2 percebemos que o aumento no grau de abstração de uma inscrição tem como consequência uma redução da quantidade de informações contextuais específicas que ligam a inscrição a um contexto particular. Em contrapartida, as inscrições situadas mais abaixo no esquema mostrado na figura 2 são também aquelas que podem se referir a uma maior quantidade de diferentes situações. Em outras palavras, o aumento do grau de abstração implica, simultaneamente, ganho de generalidade e de abrangência em termos das possibilidades de significação de uma determinada inscrição.

A escolha dos signos utilizados em uma inscrição é mediada por um conjunto de convenções que regulam a circulação e o uso desses diferentes tipos de inscrição em uma determinada comunidade e em um dado conjunto de práticas culturais. Na figura 2, a fotografia da mola, por exemplo, retrata um experimento muito usado em aulas de Física para introduzir conceitos de ondulatória. A interpretação dessa inscrição por estudantes ainda não iniciados no estudo da Física certamente será bem diferente daquela feita por estudantes com conhecimentos de ondulatória. Desse modo, para que um leitor possa interpretar uma inscrição, de modo similar aos membros da comunidade na qual a mesma foi originalmente concebida, é necessário que ele se aproprie de algum conhecimento compartilhado por esse grupo.

Segundo Roth et al. (2005), o caminho para permitir a compreensão e o uso eficaz de inscrições pelos estudantes passa por engajá-los em práticas culturais mediadas por inscrições. Ainda segundo esses autores, é necessário ajudar os aprendizes a transitar entre as diferentes formas de inscrição, tematicamente relacionadas, mas distintas no sistema de significação (ou sistema semiótico) utilizado em sua concepção.

2.3.1. INSCRIÇÕES DIDÁTICAS NAS SIMULAÇÕES E LABORATÓRIOS VIRTUAIS

Muitas representações contidas nas simulações e nos laboratórios virtuais usados no ensino de ciências são constituídas por imagens complexas, constituindo o que Roth et al. (2005) denominam inscrições em camadas. Além disso, essas representações são dinâmicas, uma vez que a inclusão de algumas camadas pode ser controlada pelo usuário do aplicativo e algumas inscrições são dotadas de animação.

Para ilustrarmos esse tipo de representação, reproduzimos na figura 3 a tela de um aplicativo de simulação de fenômenos ondulatórios usados na sequência de ensino que observamos em nossa pesquisa.

FIGURA 3: Captura de tela do aplicativo Interferência de ondas do Phet

Disponível em https://phet.colorado.edu/pt_BR/simulation/legacy/wave-interference, acesso em maio de 2016

Nas representações complexas há uma sobreposição de várias inscrições didáticas com elementos que têm referentes tanto no mundo dos objetos e eventos, o mundo vivido, quanto no mundo das teorias e conceitos, o mundo concebido. Essas representações podem ser analisadas como camadas superpostas2 umas às outras. Identificar as diferentes camadas presentes nesse tipo de representação complexa e relacionar essas camadas umas com as outras exige certo trabalho de interpretação que não deve ser desprezado.

Cada uma das camadas ou inscrições que compõem a figura 3 utiliza diferentes tipos de signos. No lado esquerdo da figura vemos uma inscrição didática composta pelo ícone de um alto falante. Essa inscrição aproxima o estudante do mundo vivido.

Ao lado dessa primeira camada ou inscrição didática, na parte central da figura, vemos bolinhas que oscilam para frente e para trás quando o alto falante é acionado. Essa inscrição tem como referentes entidades do mundo concebido. As bolinhas representam as moléculas de ar e o movimento de oscilação representa a onda sonora emitida pelo alto falante.

A terceira e última inscrição didática, no lado direito da figura, é a mais abstrata de todas. Nela vemos um gráfico senoidal que mostra a variação da pressão em função do tempo. O gráfico está ligado a uma espécie de alvo localizado na região onde estão as bolinhas. O alvo indica a região do ar que, ao ser atingido pelas frentes de ondas emitidas pelo alto falante, sofre as variações de pressão indicadas no gráfico. Essa inscrição não apresenta nenhuma informação contextual específica, seus referentes são conceitos e relações que remetem ao mundo concebido.

O exemplo acima nos permite imaginar uma parte do trabalho de interpretação demandado pelas representações complexas presentes nos aplicativos de simulação usados no ensino de ciências. Roth et al.(2005) elaboraram um modelo semântico que possibilita dimensionar todo o trabalho necessário à interpretação de inscrições em camadas. Um exemplo de aplicação desse modelo pode ser encontrado em Alves e Paula (2011, pp. 37-40).

2 O termo camada é utilizado nos softwares de tratamento de imagens. Assim, uma fotografia original de

uma pessoa em pé no interior de sua casa pode ser decomposta em duas camadas: uma delas contendo a imagem de seu próprio corpo e a outra com todo o restante do cenário que aparece ao fundo. Os softwares de tratamento de imagens permitem não só separar essas duas camadas, mas criar novas imagens a partir delas.