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Capítulo 1. Novo padrão de inserção externa monetária e financeira

2. Inserção externa monetária

A análise da inserção externa monetária apoia-se, sobretudo, na posição da moeda doméstica na Currency Pyramid, ou seja, considera os processos de currency

internationalization e currency substitution9 na caracterização da moeda doméstica. Conceitos correlatos, como a Hierarquia Monetária Internacional10 e o padrão de internacionalização

monetária de moedas periféricas11 também são essenciais para a análise a seguir. As

principais questões são a importância relativa da moeda doméstica nas transações internacionais e seu padrão de internacionalização, o processo de currency

internationalization, e a capacidade de atuar domesticamente, considerando a soberania

monetária e o processo de currency substitution.

9 A Pirâmide Monetária ordena as moedas nacionais a partir da capacidade dessas de cumprir as funções

clássicas da moeda, primeiro no plano internacional e, em seguida, no plano doméstico. No topo da Pirâmide Monetária estão as moedas que desempenham plenamente as funções clássicas no plano internacional. Em uma posição intermediária, as moedas que têm uso internacional limitado ou nulo, mas que cumprem plenamente suas funções no âmbito doméstico. Na base da Pirâmide, as moedas que não cumprem suas funções, inclusive no âmbito doméstico. O processo de currency internacionalization refere-se ao uso de moedas nacionais no plano internacional, enquanto o processo de currency substitution compreende o uso de moedas estrangeiras em transações domésticas. Sobre a literatura de Pirâmide Monetária, ver Cohen (1998, 2004, 2013).

10 A Hierarquia monetária internacional classifica as moedas nacionais a partir da capacidade de desempenhar as

funções clássicas no plano internacional e, consequentemente, em função do prêmio de liquidez (ou liquidez da divisa), com destaque para as funções de reserva de valor/funding. Sobre o tema da Hierarquia Monetária Internacional, ver Carneiro (1999, 2008), Prates (2005), Andrade & Prates (2012, 2013), De Conti, Prates & Plihon (2013, 2014), e Kaltenbrunner (2015).

11 Sobre o padrão de internacionalização das moedas periféricas, ver Kaltenbrunner (2010, 2011 e 2015) e Orsi

A moeda adotada oficialmente pelo Brasil, denominada de real brasileiro ou BRL, desempenha de forma satisfatória as funções da moeda no plano doméstico de jure e de facto, de modo que a economia brasileira possui soberania monetária, ao menos nos termos de Vernengo & Caldentey (2019)12. Do ponto de vista legal, o real é a moeda de curso forçado,

ou legal tender, no Brasil, sendo inclusive vedadas transações domésticas em moeda estrangeira e altamente restritas as opções de possuir contas bancárias domésticas em moeda estrangeira, considerados por Akyüz (1993) o terceiro nível da abertura financeira13.

Ademais, o Estado brasileiro é capaz de emitir dívida soberana de longo prazo denominada em moeda doméstica, não demostrando sinais significativos de domestic original

sin14. Na prática, no espaço econômico nacional, o real não enfrenta a concorrência de outras

moedas, mesmo no mercado informal. Com essas características, o Brasil já se diferencia, no âmbito do uso doméstico da moeda, das economias emergentes dolarizadas, da periferia da Zona do Euro e de países que adotam, de jure ou de facto, moedas estrangeiras em transações domésticas.

Por outro lado, o BRL não desempenha nenhuma das funções clássicas da moeda no plano internacional, em virtude da ausência da liquidez da divisa ou, em outros termos, do baixo prêmio de liquidez15. Segundo a Hierarquia Monetária Internacional, a moeda brasileira pode ser classificada como uma moeda periférica, entendida como as moedas “que não exercem nenhuma de suas funções em âmbito internacional – a não ser em caráter excepcional” (De Conti, Prates & Plihon, 2014, p. 345). Em termos da Pirâmide Monetária de Cohen (1998, 2004, 2013), o BRL é uma moeda plebeia, pois cumpre de forma satisfatória as funções da moeda no plano doméstico, mas possui um uso internacional muito restrito ou nulo.

12 Seguindo a definição de Vernengo & Caldentey (2019), “sovereign currencies are essentially currencies that are issued on the basis of the power of the state, and are legal tender in their issuing country”, o Brasil possui

soberania monetária.

13 O terceiro nível da abertura financeira refere-se a “allowing debtor–creditor relations among residents in foreign currencies such as bank deposits and lending in foreign currencies” (Akyüz, 2014, p.37).

14 Eichengreen, Hausmann & Panizza (2005) denominam de domestic original sin a incapacidade de um Estado

de emitir dívidas no longo prazo no mercado doméstico denominadas na moeda nacional.

15 De acordo com De Conti, Prates & Plihon (2014), “o uso de uma moeda para além de suas fronteiras nacionais

define sua liquidez em âmbito internacional” (p. 347), visto que a liquidez internacional é definida como “a capacidade de um ativo de ser trocado, nas condições supracitadas (sem perda de capital, sem custos de transação e sem demora), contra um meio de pagamento aceito em âmbito internacional” (p. 347). De forma semelhante, Kaltenbrunner (2015) define o prêmio de liquidez como “the ease with which the domestic currency can be used to meet future obligations plus the expected stability of its value” (p. 431).

Contudo, a literatura recente tem destacado um processo de internacionalização periférica do BRL, em um padrão denominado por Orsi (2017) de short-term investiment

currency, no qual a moeda é demandada por investidores não residentes para fins

especulativos. A questão já estava presente nos trabalhos de Kaltenbrunner (2010, 2011 e 2015) e Kaltenbunner & Painceira (2014), em que se observa que a presença de investidores não residentes em segmentos do mercado financeiro doméstico evidenciaria um processo de internacionalização da moeda doméstica 16 . Segundo esses estudos, o processo de internacionalização do real possui dois movimentos: a posse de ativos denominados em moeda doméstica por investidores não residentes e a posse da moeda em si, na condição de ativo financeiro, o que inclui posições nos mercados de derivativos cambiais. Esse processo derivaria da desregulação e liberalização financeira que ampliaram a liquidez desses mercados, além desses ativos fornecerem alta rentabilidade em comparação ao risco. Contudo, dado o caráter periférico da internacionalização, não haveria uma melhora do real brasileiro na hierarquia de moedas.

Esse padrão de internacionalização monetária, uma novidade da inserção externa monetária brasileira nos anos 2000, pode ser evidenciada por meio do aumento dos investidores não residentes no mercado cambial e de ativos domésticos. Com a finalidade de classificar o padrão de inserção financeira das economias emergentes, Ramos (2019) propõe cinco indicadores, dos quais três envolvem o mercado cambial: a relação do turnover com o PIB e a corrente de comércio, e a relação entre o mercado de derivativos e o mercado spot, ou à vista. A Tabela 1 apresenta os resultados para a economia brasileira e evidencia o aumento das negociações da moeda brasileira em proporção ao Produto Interno Bruto (PIB) e à corrente de comércio. Para além do aumento quantitativo, o último indicador evidencia a crescente importância dos derivativos cambiais em relação ao mercado spot, configurando um padrão de integração financeirizado (RAMOS, 2019; MARINS & PRATES, 2020).

16 Nas palavras da autora, “a rising share of domestic currency held and/or traded by non-residents to be a sufficient and defining dimension of currency internationalisation.” (Kaltenbrunner, 2011, p. 110).

Tabela 1. Indicadores de integração monetária, 2001 - 2016

2001 2004 2007 2010 2013 2016 FX turnover /PIB (abril) 0,22 0,19 0,30 0,32 0,38 0,46 FX turnover /PIB (12 meses) 0,02 0,02 0,03 0,03 0,03 0,04 FX turnover/ Corrente de comércio (abril) 1,09 0,93 1,64 1,99 1,86 2,44 FX turnover/ Corrente de comércio (12 meses) 0,09 0,08 0,14 0,19 0,17 0,20 FX derivativos / FX spot 1,73 2,67 5,14 5,79 5,90 4,23 Fonte: Elaboração própria a partir de dados do Bank of International Settlements: triennial Central Bank Survey

of foreign exchange, OTC derivatives markets e exchange-traded derivatives e Banco Central do Brasil.

Nota 1: Seguindo a apresentação do BIS, os dados referem-se a médias diárias do mês de abril de cada ano da amostra.

Nota 2: Os dados de FX turnover consideram o mercado spot, o mercado de derivativos de balcão (OTC) e as posições em aberto de opções e futuros em mercados organizados.

Nota 3: Os indicadores consideram os dados de PIB e de corrente de comércio para o mês de abril e acumulados nos últimos 12 meses.

A magnitude e a composição do turnover cambial também evidenciam elementos do novo padrão de inserção externa monetária da economia brasileira. Em termos absolutos, há uma tendência de crescimento do volume de negociação da moeda brasileira, apesar da redução em 2016, representando uma maior grau de integração financeira. Quanto à composição, os segmentos cross-border e offshore aumentaram de forma significativa sua participação relativa no turnover total da moeda brasileira, segundo os dados do Bank of International

Settlements (vide Tabela 2), reforçando o movimento de internacionalização periférica da

moeda brasileira.

Tabela 2. Turnover do BRL e participação relativa de residentes (local) e não residentes (cross-border) e dos mercados onshore e offshore, médias diárias para o mês de abril, US$ e

%, 2001 - 2016

Fonte: Elaboração própria a partir de dados do Bank of International Settlements: triennial Central Bank Survey

of foreign exchange, OTC derivatives markets e exchange-traded derivatives.

Nota 1: Os dados Exchange-traded derivatives (XTD) captam o volume de negócios (turnover) e as posições em aberto (open interest) em mercados de opções e futuro em valores nocionais. As estatísticas de OTC derivatives cobrem as posições em aberto nos mercados de balcão. A pesquisa Triennial Central Bank Survey of foreign

exchange and OTC derivatives markets apresenta o volume de negociações nos mercados spot (a vista) e OTC

(de balcão).

Nota 2: As estimativas de local, cross-border, onshore e offshore seguem a metodologia de King & Mallo (2010).

2001 2004 2007 2010 2013 2016 Turnover

(spot & OTC) 5.893 5.143 13.100 27.213 59.167 50.685 Local 91% 82% 61% 45% 36% 48% Cross-border 9% 18% 39% 55% 64% 52% Turnover (spot, OTC, mercados organizados) 10.267 10.504 34.282 57.825 78.691 69.464 Onshore 96% 87% 79% 77% 47% 55% Offshore 4% 13% 21% 23% 53% 45%

O segundo conjunto de indicadores refere-se à composição monetária dos compromissos externos do Brasil, muito ilustrativos das tendências aqui mencionadas, apesar de menos discutidos na literatura. O Gráfico 1 apresenta a composição monetária dos três níveis de dívida externa17 e do passivo externo. É possível notar que, ao passo que se

considera um conceito mais amplo de compromissos externos, maior a parcela denominada em moeda doméstica. Enquanto no caso da dívida externa tradicional, os compromissos em moeda doméstica não atingem o patamar de 10%, no caso do passivo externo essa proporção é próxima de 60%, evidenciando o processo de desdolarização parcial do passivo externo

brasileiro. Maiores detalhes sobre essa mudança de composição monetária do passivo externo

brasileiro serão apresentados na seção 6.

Gráfico 1. Participação relativa dos compromissos denominados em moeda doméstica por categoria de dívida externa e do passivo externo, %, 2001 – 2018

Fonte: Elaboração própria a partir de dados do Banco Central do Brasil.

Nota: São considerados denominados em moeda doméstica a parcela da dívida externa nível I e das operações intercompanhia declaradamente denominadas em reais, a parcela dos investimentos em carteira no mercado doméstico e parcela do IDP na categoria de participação no capital.

17 Segundo a apresentação dos dados do Banco Central do Brasil, o primeiro nível representa a dívida externa

tradicional, composta, sobretudo, de empréstimos, títulos de dívida emitidos no exterior, crédito comercial e moeda e depósitos. O segundo nível agrega as operações intercompanhia e o terceiro nível agrega ao segundo os títulos de dívida negociados no país e liquidados na doméstica em posse de não residentes.

0% 10% 20% 30% 40% 50% 60% 70% IV II IV II IV II IV II IV II IV II IV II IV II IV II IV II IV II IV II IV II IV II IV II IV II IV II IV 2002 2003 2004 2005 2006 2007 2008 2009 2010 2011 2012 2013 2014 2015 2016 2017 2018

Em síntese, o real brasileiro é uma moeda soberana que cumpre todas as suas funções plenamente no âmbito doméstico, mas possui uma inserção externa periférica que assume novos contornos nas últimas décadas em relação aos anos 1990. O BRL não desempenha de forma significativa as funções de moeda no plano internacional, com destaque para as funções de funding18 e reserva de valor/receptáculo da incerteza19. Contudo, como consequência da

inserção periférica e da crescente integração à globalização financeira, a moeda doméstica passou ser crescentemente demandada por investidores não residentes para fins especulativos.

A combinação dessas características permite classificar o real brasileiro como uma

moeda emergente, não no sentido de uma moeda em ascensão ao topo da hierarquia

monetária, mas sim em paralelo à definição de economias emergentes, uma moeda periférica inserida na dinâmica das finanças internacionais. Logo, há uma distinção tanto em relação às

moedas centrais, com ampla aceitação internacional, como às moedas periféricas, que não

possuem qualquer padrão de internacionalização ou que sofrem processos de substituição monetária. Por fim, as especificidades da inserção externa monetária brasileira condicionam aspectos da inserção externa financeira, assim como têm repercussões macroeconômicas, no mesmo sentido pelo qual, dentre as assimetrias do sistema monetário e financeiro internacional definidas por Prates (2005), a monetária condiciona a financeira e a macroeconômica.