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CAPÍTULO II: PATATIVA DO ASSARÉ POR INSPIRAÇÃO DIVINA,

2.1 O encontro com Jesus de Nazaré: a inspiração que veio das

2.1.4 Inspiração, adesão e seguimento fiel

A inspiração poética de Patativa do Assaré veio das pregações de Jesus de Nazaré, como ele mesmo afirmou em entrevista, citada anteriormente, a Gilmar de Carvalho95, de um

Jesus Cristo que era como supõe o poeta, um agricultor, um artesão da Palavra, um homem simples como tantos outros da sua terra, porém, receptivo ao lúdico, ao belo, assim como ele Patativa, em todo caso, como afirma José Antonio Pagola96, o encontro com Jesus não é fruto

da investigação histórica nem da reflexão doutrinal. Ele só acontece na adesão interior e no seguimento fiel. O encontro com Jesus ocorre quando há confiança no Deus que Jesus confiava, na crença do amor que ele cria, quando se aproxima dos que sofrem como ele se aproximava, quando se defende a vida, como ele a defendia, quando se olha as pessoas como ele as olhava, quando se enfrenta a vida e a morte com uma fiel esperança como a que ele as enfrentou, quando se transmite uma Boa Notícia como ele transmitiu e transmite.

A realidade vivida no Brasil, na América Latina e Caribe da época em que Patativa do Assaré começou a publicar seus livros, como para os dias atuais, continua condicionada a um sistema capitalista, cruel, desumano, e que a cada dia aumenta a distância entre ricos, cada vez mais ricos, e pobres, cada vez mais pobres. Não há um sistema de saúde de qualidade, a violência e o extermínio das juventudes aumentam a cada dia, uma solução simples seria investir numa educação de qualidade, que preparasse seres humanos para atuarem em todas as instâncias da sociedade, pois com uma boa educação muitos problemas poderiam ser evitados. No tempo de Jesus de Nazaré, havia todo um sistema bem organizado de educação e formação, marcado pela observância da Lei de Deus e pela Tradição dos Antigos, onde os pilares eram a família, a sinagoga (comunidade) e o templo. Apesar de existir uma religião oficial ambígua e muitas vezes opressora, que privilegiava a classe dominante, Jesus se posicionará do lado dos mais fracos.

95CARVALHO, Gilmar de. Cem Patativa. Fortaleza: Omni Editora, 2010, p.72-73. 96

Segundo Carlos Mesters97, Jesus se colocará do lado do povo esquecido, abandonado,

sem proteção e sem defesa, cheio de doenças sem cura; gente que era explorada pelo sistema injusto, que causava desemprego, empobrecimento e endividamento crescentes. Irá testemunhar os poderosos insensíveis que não se importavam com a pobreza de seus irmãos e irmãs; ficará sando das tensões e conflitos sociais com repressão violenta e sangrenta da parte dos romanos que matavam sem piedade. Irá denunciar as classes altas, comprometidas com os interesses do Império Romano que por sua vez, exploravam o povo. Não se deixou intimidar, denunciou e ameaçou, por isso foi perseguido, caluniado, difamado, preso, torturado e assassinado.

Patativa do Assaré98 assim o retrataria:

Meu Jesus, Reis dos Judeu, Saibo, Divino e profundo Que padeceu e que morreu Pra miorá este mundo, Que pregou na Palestina A pura e santa dotrina De paz, amô e ingualdade E deu na sua insistença Um inzempro de cremensa Para toda humanidade. Que do seu grande podê Querendo uma prova dá, Fez alejado corrê Fez morto ressucitá. Foi preso, foi amarrado E pelo chão arrastado, Meu Divino e bom Jesus, E deu ainda o perdão Para a corja de ladrão Que lhe cravaro na cruz. Isto tudo o Senhô fez Para o mundo consertá, Sendo poderoso Reis, Quis a todos se umiá. Mas a farsa humanidade Não quis sabe das verdade Dos insinamento seu, No nosso mundo de ingano São bem pôco os pubricano Quase tudo é fariseu.

97MESTERS, Carlos. Jesus formando e formador – aprender e ensinar. São Leopoldo: CEBI, 2012, p. 48-49. 98ASSARÉ, Patativa do. Cante lá que eu canto cá – filosofia de um trovador nordestino. 16. ed. Petrópolis:

Meu Divino e Bom Juiz, Veve na face da terra Os país cronta os país Na mais sanguinara guerra. É o maió ispaiafato;

Não tão seguindo os ingrato As lição que o Senhô deu. Cheio de inveja e imbição Tão seguindo é a lição Do juda que lhe vendeu.

Patativa do Assaré não foi torturado, nem foi assassinado, foi preso apenas uma vez por colaborar com jornais alternativos. Teve sua prisão decretada no período da ditadura militar no Brasil, fato que acabou não acontecendo, pois teve a ordem de prisão relaxada por interferência pessoal de uma parente, que tinha laços de amizade com os agentes da repressão, e que teria rasgado a intimação deixada no cartório para o poeta prestar depoimento. O pretexto seria um poema sobre a questão da terra. O poema é Caboclo Roceiro99:

Caboclo roceiro das plagas do norte, Que vives sem sorte, sem terras e sem lar, A tua desdita é tristonho que canto, Se escuto o teu pranto, me ponho a chorar. Ninguém te oferece um feliz lenitivo, És rude, cativo, não tens liberdade. A roça é teu mundo e também tua escola, Teu braço é a mola que move a cidade. De noite, tu vives na tua palhoça, De dia, na roça, de enxada na mão, Julgando que Deus é um pai vingativo, Não vês o motivo da tua opressão. Tu pensas, amigo, que a vida que levas, De dores e trevas, debaixo da cruz E as crises cortantes quais finas espadas, São penas mandadas por Nosso Jesus. Tu és, nesta vida, um fiel penitente, Um pobre inocente no banco do réu. Caboclo, não guardes contigo esta crença, A tua sentença não parte do céu.

O Mestre Divino, que é Sábio Profundo, Não fez, neste mundo, o teu fado infeliz, As tuas desgraças, com tuas desordens, Não nascem das ordens do Eterno Juiz.

99ASSARÉ, Patativa do. Cante lá que eu Canto cá – filosofia de um trovador nordestino. 16.ed. Petrópolis:

A Lua te afaga sem ter empecilho, O sol e o seu brilho jamais te negou, Porém, os ingratos, com ódio e com guerra, Tomaram-te a terra que Deus te entregou. De noite, tu vives na tua palhoça,

De dia na roça, de enxada na mão. Caboclo roceiro, sem lar, sem abrigo, Tu és meu amigo, tu és meu irmão.

A trajetória em defesa da vida do povo fez de Patativa do Assaré uma voz para os sem voz100:

Feliz daquele que despreza o mundo Para viver ao lado de Jesus,

Levando aos ombros a pesada cruz, Resignado no sofrer profundo.

Gilberto de Carvalho101 dirá que Patativa do Assaré é uma voz plural:

Marcante na produção de Patativa do Assaré o seu compromisso com o outro ou com todos, melhor dizendo. Mesmo quando o poema está centrado na primeira pessoa, mesmo quando a dor ou o amor parece individual, ele se projeta e assume uma dicção que passa a ser da Humanidade como um todo. Isso faz com que uma toada que possa parecer singela ou despretensiosa, em sua formulação original, ganha a força e a contundência de um épico. Essa grandeza de abrangência se embate com a simplicidade e a discrição de um enunciador que brinca de se anular, valorizando o poema, impregnado de um tom iniciático.

Essa poderia ser a primeira utopia: a de amplificar uma voz fora das instâncias de legitimação da fala. Patativa se situa na periferia do poder e à margem das mídias. O que pode ser considerado uma utopia também se inscreve como um paradoxo. Sua fala se afirma nessa polifonia ou destoa desse coro, como a de um oráculo que soasse estranho e por isso mesmo torto.

Quem é esse poeta que é um e parece muitos? Como se o seu canto fosse uma resultante de muitos sonhos que se tecem ou se acumulam (se sedimentam). Parece um canto vário para ser de um só autor e no entanto é formulado por alguém que é capaz de sentir todos os sentimentos do mundo, com uma intensidade tal que se transfigura em palavras, que, mais que palavras, são uma utopia de uma Humanidade solidária, ao pé do fogo, agregando-se em tempos de individualismo exacerbado e extrema competitividade.

Ir na contramão dessas tendências não seria lançar as bases de uma utopia que pode parecer nostálgica, de um projeto comum? Alguma ideia que

100ASSARÉ, Patativa do. Inspiração Nordestina. São Paulo: Hedra, 2003, p.320.

101CARVALHO, Gilmar de. Patativa do Assaré Pássaro Liberto. 2.ed. Fortaleza: Museu do Ceará, 2011, p.

reatualizasse o cristianismo primitivo, com uma pitada romântica de Fourier?

[...] Como essa voz, que faz questão de ser regional, anunciada de um espaço determinado, consegue superar tantas barreiras e ser tão universal (globalizada?) nestes tempos cínicos de mascaramento da exclusão e de constituição do grande mercado?

Como consegue se impor no tempo? Porque é ao mesmo tempo ancestral e profética. Porque ela se projeta a partir de tudo o que foi dito e vivido antes. Porque sua atualidade vem desse anacronismo que faz com que ela seja ou esteja permanentemente atualizada, como uma voz ritual que se ampara nos mitos e supera as ideologias.

Luiz Tadeu Feitosa102 diz que Patativa do Assaré aprendeu a ouvir e a ver o que sua

mente poderia fazer vir à tona depois. Sua capacidade perceptiva foi treinada desde muito cedo pela curiosidade dos tempos de criança. Por isso, as “visões” e as “memórias” de um poeta que se fazia menino não podem ser desprezadas, como também os depoimentos sobre as perseguições que sofria da inspiração:

Patativa. Eu não sei como é que pode, rapaz, parece até mentira, mas não é

não. Eu às vezes ficava aperreado com aquela coisa, com aquela insistência. Eu não podia trabalhar. Pelejava e ela não deixava, me perseguindo, querendo que eu fizesse verso e mais verso. E eu tinha que limpar, que plantar, que fazer broca.

Luiz. E quem era ela, Patativa?

Patativa. Ora, era a inspiração, homem. Você não entende disso não? Era a

inspiração. Eu só faltava era ficar doido, ela me dizendo pra eu fazer poema disso e daquilo outro.

Luiz. É por isso que o senhor diz num poema que viu uma chuva de rima

caindo em cima do senhor?

Patativa. Não, aquilo é eu inventando. Eu falando da minha lira, da minha

inspiração, mas nesse outro caso, era a inspiração me ditando as coisas. Ora isso aconteceu foi a vida quase toda, viu? Mas eu não gosto de falar disso não. Isso é uma coisa minha, uma coisa pura, uma coisa que só Deus é quem sabe. Mas eu não sou doido, eu sei que aconteceu. Eu não faço é dizer pra todo mundo, que eles não entendem?!

Percebe-se que a inspiração de Patativa do Assaré acontece em família, a partir da cultura, através da língua, do lugar do seu nascimento. Família, cultura, língua e lugar de nascimento afetam a vida das pessoas, de alto a baixo, e isso, ninguém escolhe. Elas fazem parte da existência de cada ser humano. São o ponto de partida para toda e qualquer coisa que se desejar fazer durante toda a vida. Foi assim com Jesus de Nazaré, foi assim com Patativa do Assaré.

102FEITOSA, Luiz Tadeu. Patativa do Assaré – a trajetória de um canto. São Paulo: Escrituras, 2003, p. 103-

2.2 O encontro com o Povo: a luta pela libertação ou exercício de fé do