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A institucionalização da concertação social e os seus impactos O Conselho Permanente de Concertação Social (CPCS) foi criado,

em 1984, como um primeiro passo da estratégia de reforço da governa- bilidade da sociedade portuguesa julgada indispensável para permitir a

adesão do país à Comunidade Económica Europeia (Lopes 1993; Dor- nelas 1999).

A sobrecarga das reivindicações patronais e sindicais, a necessidade de reduzir a inflação e de pôr os aumentos salariais portugueses em fase com os dos restantes países europeus, a procura de um modelo social capaz de conjugar melhor o aumento da competitividade empresarial, o crescimento sustentável dos salários e a melhoria das condições de tra- balho levaram a que o CPCS, inicialmente criado como órgão de con- sulta do governo, se tenha transformado, apesar das reticências iniciais da CIP e da CGTP, numa instância relevante de negociação tripartida.

O quarto de século que o CPCS tem de existência pode ser dividido em quatro ciclos políticos, cada um deles correspondente a um ciclo par- lamentar de natureza distinta.

O primeiro ciclo político, que corresponde ao início da concertação social propriamente dita em Portugal, inicia-se com os acordos tripartidos que fizeram da moderação salarial a regra predominante da negociação salarial em Portugal, inclui a maior greve geral de sempre em Portugal (1988) e, subsequentemente, o primeiro acordo tripartido sobre a regu- lação do mercado de trabalho (1990), os dois primeiros acordos triparti-

Quadro 1.1 – Ciclos políticos e resultados da concertação social

Ciclo político PSD PS PSD/CDS-PP PS

(Cavaco Silva) (António Guterres) (Durão Barroso; (José Sócrates) 1985-1995 1995-2002 Santana Lopes) 2005-2009

2002-2005

Questões principais Adesão à CEE Conformidade Crise orçamental e dívida externa e integração com os critérios Crise económica e aumento europeia de Maastricht do desemprego

Acordos tripartidos 1986; 1990;

1996 2006

sobre política salarial 1992 Outros acordos 1991 1996; 2001 2006; 2007; 2008 tripartidos ad hoc Acordos bipartidos 2004 2005 Acordos globais sobre a regulação do emprego, da protecção social 1990 1996 2008 e do mercado de trabalho

dos ad hoc (1991), e termina com duas tentativas falhadas de negociação tripartida sobre a política de rendimentos e sobre a regulação do mercado de trabalho.

O ciclo político correspondente aos governos de António Guterres constitui uma tentativa de responder à crise da concertação social verifi- cada no fim do ciclo precedente com o relançamento e o aprofunda- mento da lógica neocorporativista, tentando ultrapassar quer os proble- mas procedimentais, quer os problemas substantivos herdados do primeiro ciclo. Entre as questões de procedimento avultam, desde então, dois problemas: primeiro, o do momento óptimo para a celebração de acordos tripartidos, que os parceiros sociais tentaram localizar no início da legislatura e os governos de Cavaco Silva preferiram fazer aproximar do extremo oposto do seu mandato; segundo, a questão da unanimidade entre os parceiros sociais, abordada adiante.

O terceiro e o quarto ciclos correspondem a duas estratégias gover- namentais diferentes de resposta a problemas análogos: a desconformi- dade das contas públicas com os critérios do Pacto de Estabilidade e Crescimento. Assim, no ciclo dos governos PSD/CDS-PP verifica-se a periferização da concertação social, o que se traduziu na ausência de qualquer acordo de concertação social e na assinatura do primeiro dos dois acordos bipartidos (2005) até agora assinados em Portugal. O quarto ciclo corresponde aos governos PS de José Sócrates, inclui o segundo acordo bipartido, o único acordo unânime sobre a política de rendi- mentos até agora obtido em Portugal (2006), quatro acordos tripartidos ad hoc (2006, 2007 e 2008) e o recente compromisso social tripartido sobre a política de emprego, a protecção social e a regulação do mercado de trabalho.

Ora, como no terceiro ciclo político não foi formalizado qualquer acordo tripartido, há que retirar duas conclusões: primeira, que os go- vernos e os ciclos político-parlamentares têm influência relevante na ac- tividade de concertação social; segunda, que o ciclo Durão Barroso-San- tana Lopes, como, aliás, o governo Cavaco Silva até à greve de 1988, influenciaram negativamente o desenvolvimento da concertação social. Acresce que a síntese dos temas constantes dos acordos de concerta- ção social constante do quadro 1.2 mostra que as escolhas políticas e a orientação ideológica dos actores do triângulo neocorporativo – e, em particular, da CGTP, dada a representatividade daquela confederação sin- dical – constituem traços relevantes da caracterização do topo do sistema de relações laborais e ajudam a compreender a frequente ausência de consenso quanto à renovação da agenda da negociação colectiva.

Uma análise horizontal de três dos temas acima mencionados parece confirmar esta tese, sugerindo que, mesmo que a agenda temática da con- certação social seja modulada para obter, sempre que possível, a unani- midade dos parceiros sociais, tal não garante, por si só, que os resultados sejam transpostos para a contratação colectiva de trabalho.

Quadro 1.2 – Conteúdos dos acordos de concertação social em Portugal (1986-2008)

Ano Temas Acordo Impacto Papel dos parceiros

sociais na implementação 1986

1990

Moderação salarial Maioria Elevado

Forte e generalizado,

1992 apesar da oposição

1996 da CGTP

1996 Criação do rendimento Unanimidade

Elevado Reduzido mínimo garantido ex post

2006 Reforma do subsídio Unanimidade Elevado Reduzido de desemprego

Aumento sustentado

2006 do salário mínimo Unanimidade Elevado Reduzido nacional

Direito individual à formação;

reconhecimento e Unanimidade Elevado 2001

certificação das em 2001; quanto Reduzido

2007

qualificações adquiridas maioria em 2007 ao RVCC no exercício da profissão

(RVCC) 1991 Quadro legal da

2001 segurança, higiene Unanimidade Reduzido Reduzido e saúde no trabalho

2001 Quadro legal da

proteção social Unanimidade Elevado Reduzido 2001 Aumento da

2006 sustentabilidade Maioria Elevado Reduzido

da segurança social 1990

Acordos globais sobre 1990: elevado;

1990 e 1996: 1996

a regulação do emprego, 1996:

reduzido, forte 2008

da proteção social e Maioria tendencialmente

oposição da CGTP;

do mercado reduzido;

2008: ?

de trabalho 2008: ?

No que respeita às políticas salariais, o caso português sugere que, uma vez adoptada na concertação social a decisão de alterar os critérios de actualização das tabelas salariais, e decorridos alguns anos de aplicação da decisão, pode não ser necessário que ela volte a ser validada no topo tripartido do sistema para que os salários se mantenham sob o controlo unilateral dos empregadores, mesmo que a maior confederação sindical se pronuncie reiteradamente contra essa abordagem. De facto, desde que a almofada salarial que separa as tabelas salariais dos salários efectiva- mente recebidos seja suficientemente grande e a inflação se mantenha baixa, existem equivalentes funcionais aos acordos de concertação social sobre políticas de rendimentos. O aumento do salário mínimo nacional e os aumentos dos vencimentos dos funcionários públicos são exemplos desses equivalentes funcionais. Porém, se se pretender alterar o modus operandi estabelecido por acordo – ainda que não unânime – e confir- mado por anos de aplicação na negociação colectiva, pode ser necessário um novo acordo que garanta a legitimação da mudança.

Foi o caso com o acordo de 2006 quanto ao aumento sustentado do salário mínimo nacional. O acordo, neste caso unânime, estipula que o salário mínimo nacional deve ter um acréscimo de 30% em cinco anos, um valor significativamente superior aos aumentos que, mesmo antes da actual crise global, eram expectáveis para as tabelas salariais das conven- ções colectivas de trabalho. A solução encontrada baseia-se no controlo dos efeitos colaterais indesejados por qualquer dos três vértices do triân- gulo neocorporativo: os empregadores obtiveram a garantia de que o au- mento do salário mínimo nacional não teria efeitos de bola de neve que pusessem automaticamente em causa os baixos salários de alguns sectores económicos; os sindicatos obtiveram uma vitória altamente simbólica com impactos efectivos – mas não automáticos! – na parte inferior dos sectores de trabalho intensivo e baixo nível de remunerações; o governo manteve a possibilidade de controlar a despesa pública com as prestações sociais, desindexando as prestações sociais do valor do salário mínimo nacional.

Além disto, é forçoso reconhecer que é limitado o entendimento comum dos problemas a resolver pelo acordo. De facto, no texto respec- tivo não há qualquer referência formal ao princípio da moderação sala- rial, aceite pela UGT desde 1986, mas ainda hoje formalmente recusado pela CGTP; os empresários obtiveram uma redução da pressão para o aumento dos salários dos trabalhadores pobres sem terem de abrir um debate global sobre a política salarial e a desigualdade; o governo pôde adoptar um instrumento de política laboral e social de grande impacto

sem induzir um efeito de contaminação das prestações sociais, uma opção totalmente inviável no contexto orçamental da época.

A política sobre a duração e organização do tempo de trabalho cons- titui outra ilustração relevante da relação problemática entre os acordos de concertação social e a contratação colectiva de trabalho. O Acordo Económico e Social (1990) estabeleceu o princípio de que a redução do tempo de trabalho seria realizada pelo uso convergente da legislação e da contratação colectiva de trabalho. Nos termos então previstos, a le- gislação reduziria, como reduziu, de 48 para 44 horas a duração semanal do período normal de trabalho, devendo a redução das 44 para as 40 horas ser completada, em cinco anos, por negociação colectiva, que de- veria regular igualmente as formas de adaptabilidade do tempo de traba- lho a aplicar em cada sector. Porém, em 1995, em consequência do de- sacordo verificado em inúmeras unidades negociais quanto ao modo de combinar a redução da duração com o aumento da adaptabilidade do tempo de trabalho, continuava a haver mais de 1 milhão de trabalhadores com horários superiores a 40 horas. O governo da época, adepto público da concertação social, optou pela única solução possível para sair do im- passe: promoveu a negociação do Acordo de Concertação Social de Curto Prazo (ACSCP), que assinou em 1996 com todos os parceiros so- ciais, excepto a CGTP, e, em consequência desse acordo, publicou a le- gislação que dava força vinculativa ao compromisso tripartido revalidado. Os resultados são conhecidos: uma vaga de greves sectoriais, particular- mente no sector dos têxteis e confecções, problema que só foi resolvido com a intermediação do primeiro governo Sócrates.

A evolução no domínio da protecção social é diferente, o que, indi- rectamente, confirma a tese que se vem sustentando. Em primeiro lugar, porque uma das medidas mais inovadoras desde meados dos anos 90 – a criação, em 1996, do rendimento mínimo garantido – foi adoptada com uma participação menor dos parceiros sociais. O mesmo aconteceu, em 2006, com a criação do complemento solidário para idosos. Em se- gundo lugar, apenas em 2001 a protecção social começou a ser tratada como questão autónoma na concertação social. Em terceiro lugar, e ao contrário do que vem acontecendo noutros domínios, a larguíssima maioria das medidas adoptadas desde 2001 ou já está a ser aplicada ou foi substituída por medidas julgadas mais adequadas à situação presente, como aconteceu recentemente com a introdução do chamado «factor de sustentabilidade» das pensões. Apesar destas especificidades, desde o úl- timo governo de António Guterres que o papel dos parceiros sociais na determinação da agenda é suficientemente relevante para que o conteúdo

dos acordos de concertação sobre protecção social seja modelado para tentar obter o consenso da CGTP no maior número de matérias possí- veis. Foi o que aconteceu quer em 2001, quer em 2006, com a diferença de que, ao contrário do que se passou em 2001, na data mais recente o governo não conseguiu obter o acordo unânime, que também agora de- sejava.

A análise dos acordos globais sobre a regulação do emprego, da pro- tecção social e do mercado de trabalho parece confirmar que continuam por resolver de forma consistente quatro problemas principais.

O primeiro problema é o da legitimidade e da utilidade de acordos de concertação social que não incluam todas as confederações patronais e sindicais com um papel activo na concertação social. Se a questão da legitimidade se põe independentemente do maior ou menor papel da contratação colectiva de trabalho na aplicação do acordo, o problema da utilidade dos acordos não unânimes é potencialmente mais grave nos casos em que a negociação colectiva constitui um instrumento muito importante para a realização dos compromissos tripartidos alcançados na concertação social. Ainda assim, a experiência das duas décadas e meia de concertação social sugere que o poder de veto das confederações com assento na concertação social, sendo relevante, não é sempre absoluto e não parece ser definitivo, tal como se mostrou acima quanto à política salarial e quanto ao tempo de trabalho.

A segunda questão, directamente relacionada com a anterior, é a da capacidade de as entidades subscritoras de acordos – bipartidos ou tri- partidos, unânimes ou apenas maioritários – celebrados com os parceiros sociais os transporem para a negociação colectiva realizada pelas organi- zações que ali representam. Pelo menos até agora, essa capacidade tem- se mostrado muito limitada.

O terceiro quesito é o das fronteiras que podem ou devem limitar a concertação social, ou, se se preferir, a definição dos temas em relação aos quais é aceitável entender as confederações sindicais e patronais como interlocutores preferenciais do governo.

A quarta dúvida respeita aos modos de tornar compatíveis os consen- sos tripartidos obtidos na concertação social com as competências espe- cíficas de outros órgãos do Estado de direito democrático, especialmente quando os acordos de concertação social incluem medidas da compe- tência reservada da Assembleia da República.