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Para uma compreensão multidimensional do terceiro sector

Da discussão anterior resulta evidente que as características do terceiro sector nos diferentes países dificilmente podem ser consideradas indepen- dentemente das instituições existentes, sendo íntima a ligação com as fun- ções de protecção e inclusão sociais do Estado. Um dos problemas para a compreensão do terceiro sector, nas suas especificidades nacionais, nas suas articulações com o Estado-Providência e no seu carácter relacional, é a ausência de dados comparativos e de quadros analíticos abrangentes que dêem conta destes seus diferentes papéis entre o Estado, a comuni- dade e o mercado. Estes implicam um modelo analítico descentrado do Estado e do enfoque privilegiado nos indicadores de despesas e condições de elegibilidade no acesso ao bem-estar que tem tipificado as análises do Estado-Providência. Porém, é possível enriquecer esta discussão com os estudos internacionais sobre os valores e as atitudes que se têm debruçado sobre a articulação entre a participação e o bem-estar. Uma destas áreas é a da prolífica literatura que tem vindo a discutir o terceiro sector a partir do conceito de capital social.

O capital social é constituído pelos laços individuais e redes e as nor- mas de reciprocidade e confiança que daí resultam são vistas como re- cursos para a democracia e o desenvolvimento económico (Putnam 1993). É habitual a distinção entre dois tipos de capital social – bonding e bridging. O primeiro está associado à definição tradicional de comuni- dade, relativa às relações face a face em grupos homogéneos que parti- lham um conjunto de valores e normas, o segundo está associado à res- ponsabilidade cívica e à criação de pontes entre grupos e comunidades, orientando-se para a resolução de problemas sociais de larga escala (Wuth- now 2002). É neste último sentido que o conceito possui um aspecto mais político, podendo emergir como alternativa ao papel centralizador

do governo através do autogoverno descentrado (Evers 2003, 16).4Já o

conceito de civicness dá uma ênfase à dimensão «pública» do terceiro sec- tor no sentido em que indica um bem comum. Civicness inclui uma di- mensão social, em que os cidadãos são vistos como iguais, uma dimensão pessoal, que implica respeito e tolerância mútuos, e uma dimensão po-

4Jochum et al. (2005) acrescentam a dimensão linking social capital para defender o

restabelecimento da ligação do terceiro sector ao sistema político e a participação nas de- cisões políticas que a discussão do capital social de ênfase comunitarista tende a menos- prezar.

lítica, implicando a participação activa na governação (Brandsen et al. 2010). Como se verá a seguir, a dimensão política e a referência ao papel do Estado são cruciais para entender os indicadores sobre o capital social do European Social Survey (ESS).

A discussão sobre o capital social inspirada por Putnam (1993) recu- pera os argumentos de Tocqueville (1889) sobre o contributo das asso- ciações voluntárias ou não lucrativas para a democracia, daqui derivando também uma das acepções actualmente mais comuns de sociedade civil (Dekker 2010).

A hipótese do chamado crowding out effect argumenta que um Estado forte (em termos da burocracia e das despesas em bem-estar) tende a fo- mentar uma sociedade civil fraca, assumindo tarefas que deviam ser de- sempenhadas por OTS, pelas relações informais de cuidados ou pelas redes sociais, bem como a auto-ajuda e a reciprocidade. Porém, esta hipó- tese é refutada não só na Europa, em que existe uma tradição de relação próxima entre o Estado-Providência e o terceiro sector (Evers e Laville

2004), mas também nos Estados Unidos (Salamon e Sokolowski 2001).5

Procurando ligações entre o nível de desenvolvimento do Estado-Provi- dência e os indicadores de capital social, van Oorschot e Arts (2005) en- contram uma correlação entre muitos indicadores de capital social em Es- tados-Providência desenvolvidos, mas não conseguem clarificar a direcção da relação causal. Van der Meer (2009) conclui que em Estados-Provi- dência com maiores níveis de segurança social as pessoas tendem a par- ticipar mais em termos cívicos (voluntariado) e que em Estados onde os direitos civis estão garantidos existe maior participação activa em volun- tariado e donativos. Este autor argumenta que mesmo em Estados com burocracias centralizadas se verificam elevados níveis de voluntariado e de donativos. Ou seja, a segurança e confiança na esfera pública são con- dições im portantes para a participação. Van Oorschot e Arts (2005), a partir de dados do European Values Study, refutam a hipótese do crowding out, concluindo que é nos Estados-Providência mais desenvolvidos (com maior nível de despesas sociais) que a confiança nas instituições e a parti -

cipação activa e passiva6são mais elevadas, sendo também aqui que as

5Aliás, revendo as várias teorias sobre a emergência do terceiro sector, a partir da

ideia de fracasso do Estado ou do mercado, Salamon (1987) contrapôs a hipótese de vo-

luntary failure para explicar como o Estado veio a assumir crescentes responsabilidades

no bem-estar, em substituição das formas filantrópicas e familiares de ajuda, dando origem ao Estado-Providência.

6No primeiro caso inclui ser membro activo ou fazer voluntariado; no segundo caso

pessoas passam mais tempo e dão mais importância aos amigos. Em países mais desiguais, as pessoas têm menos confiança mútua, são mais activas em organizações voluntárias (em comparação com a participação passiva) e mais orientadas para a família. Finalmente, estudos a partir do ESS 2006 também não confirmaram a hipótese de que baixos níveis de voluntariado formal corresponderiam a níveis mais elevados de outras formas de ajuda, como o voluntariado informal; pelo contrário, verificou-se uma correlação positiva entre os dois tipos de voluntariado (Plagnol e Huppert 2009). Plagnol e Huppert (2009) encontraram uma correspondência positiva entre a integração social (frequência de encontros sociais com amigos, fa- miliares ou colegas, participação em actividades sociais, participação em serviços religiosos) e o voluntariado formal.

Relacionando as características do capital social com o Estado-Provi- dência, van Oorschot e Arts (2005) indicaram que a dimensão do envol- vimento político parecia ser mais fraca nos países do modelo liberal e da Europa do Sul, a confiança nas instituições era mais importante nos paí- ses escandinavos, os amigos eram mais importantes nos países dos mo- delos continental e liberal e a família era mais importante nos Estados- -Providência do modelo continental e da Europa do Sul.

Nos estudos comparativos internacionais que medem algumas das pro- postas teóricas e normativas sobre a relação entre o capital social e o terceiro sector tende-se a contabilizar as várias formas de participação em OTS, as várias dimensões da participação política e outras variáveis, como a confiança nas instituições. Por exemplo, Dekker et al. (2003) encontraram uma relação estatística positiva entre a participação em OTS, a confiança social e o en- volvimento político, mas não puderam concluir se existem causalidades entre estas variáveis ou se se verifica um efeito de auto-selecção: as pessoas mais predispostas a confiar são também as mais predispostas a participar, etc.

Esta discussão traz-nos outro debate importante que decorre no mundo do capital social e que se prende com o significado da diferen- ciação interna do terceiro sector, muito em especial a distinção não só entre as actividades de produção de serviços e de expressão, mas também, neste grupo, a distinção entre as organizações mais activas na cultura, no desporto e no recreio e as organizações ditas de advocacia ou de militân- cia na área ambiental, de expressão política e defesa de direitos, sindicatos e associações profissionais e empresariais. Van der Meer e van Ingen (2009) argumentam que existe uma correlação mais forte entre a partici- pação política e a consciência cívica (interesse na política, confiança so- cial, ausência de cinismo político, interesse pela política nos media) e a participação em associações activistas e promotoras de interesses do que

em associações onde a interacção social é mais intensa, como as associa- ções de lazer, portanto falsificando uma das hipóteses da literatura sobre o capital social relativa aos efeitos de socialização destas últimas como contribuindo positivamente para um maior espírito cívico.

Da presença de múltiplos modelos de Estado