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7. Discussão

7.3. Integralidade da atenção à saúde bucal

Pela análise dos ITs apresentados neste estudo e pelas observações realizadas nas equipes durante a coleta de dados, foi possível perceber que as práticas de saúde bucal estavam voltadas principalmente para o atendimento individual, conduzido de maneira rápida, centrado na queixa do usuário, limitado pelo equipamento ou insumo disponível no momento e pelo número de vagas, restrito a um procedimento por indivíduo. Além disso, a unificação da porta de entrada dos serviços de saúde bucal com a área de médico-enfermagem e a organização de ações conjuntas de promoção da saúde e prevenção de doenças estavam ausentes nas unidades pesquisadas.

Assim, as observações provocam uma discussão sobre o processo de trabalho do cirurgião-dentista, ou seja, a clínica desenvolvida em sua prática nas unidades de saúde. Para Campos (2003), existem três clínicas que se comunicam e se interpenetram: a clínica oficial, a clínica degradada e a clínica ampliada. A primeira seria a tradicional clínica cartesiana, espaço no qual a prática desconhece a pessoa enferma e personifica a enfermidade de forma que a saúde é entendida como

mercadoria. A segunda consiste numa clínica marcada por interesses de ordem econômica, política ou ideológica, mas que, nesse caso, transfigura-se numa práxis distante das necessidades de saúde, sendo que os diferentes interesses sobrepõem- se à promoção, prevenção, cura ou reabilitação dos usuários, impingindo a estes uma lógica de submissão. A antítese seria a clínica ampliada, centrada no sujeito concreto e não somente na sua enfermidade, a fim de resgatar a integralidade humana, o espaço de relações e de responsabilização na ação de cuidar das pessoas (SANTOS & ASSIS, 2006).

De acordo com Carnut (2017), outra estratégia que corrobora a prática integral é o Acolhimento, pois promove um encontro diferenciado, permeado de contato e afeto. Assim, o autor diz que se pode identificar a articulação entre o acolhimento e a integralidade, no conceito de linhas de produção de cuidado, nas quais a integralidade do cuidado (compreendida como acesso do usuário a todos os níveis do sistema) perpassa a Rede de Atenção, através da qual o usuário – portando seu Projeto Terapêutico Singular (PTS) - é guiado no itinerário terapêutico, pelos serviços, e cujo acesso requer a acolhida desse usuário, por onde quer que ele passe.

Neste sentido, as unidades de saúde pesquisadas apresentaram limitações no ato de acolher os usuários, sendo que, na maioria das vezes, a integralidade da atenção ficou comprometida.

As duas Redes de Atenção à Saúde (RAS) citadas nesta pesquisa, a Rede Cegonha e a Rede de Urgência e Emergência, mostraram uma inserção muito incipiente da saúde bucal. No IT Margarida, no momento da confirmação da gravidez, foi agendada uma consulta odontológica pela enfermeira, no entanto, ao necessitar de um atendimento de urgência, novamente o critério de ordem de chegada foi utilizado. Ao contrário, no IT Tulipa, mesmo com o encaminhamento médico para a realização do tratamento odontológico, teve que aguardar o dia do agendamento. Da mesma forma, as UPAs, que são os pontos de atenção à saúde bucal na Rede de Urgência e Emergência, ao invés de realizar o atendimento de urgência para amenizar a dor dos usuários, encaminhavam o paciente para as unidades de referência (IT Lírio, Violeta, Gérbera, Margarida, Jasmim).

Pela análise do IT Hortênsia, pudemos verificar que o princípio da integralidade da atenção à saúde bucal no município de Ibaté não pôde se concretizar, uma vez que quando o usuário necessitava de atendimento odontológico especializado devia recorrer ao consultório particular. Todavia, o CEO do município de São Carlos era referência para os municípios de Dourado, Ibaté, Porto Ferreira e Ribeirão Bonito (municípios pertencentes ao CGR Coração). Entretanto, na prática, apenas os municípios de Dourado e Ribeirão Bonito encaminhavam pacientes para o CEO. Ao

questionar os profissionais de saúde bucal do município de Ibaté sobre os motivos pelos quais não encaminhavam os pacientes para o CEO de São Carlos, todos demonstraram desconhecer essa possibilidade.

Neste sentido, Mello et al. (2014) consideram que a implantação da rede regionalizada de atenção à saúde tem a condição de levar o cuidado à saúde bucal a um novo patamar de atenção e assistência. Para os autores, a partir da (re)estruturação do atendimento da Atenção Primária, progressivamente, vão se traçando os contornos dos serviços da rede de atenção secundária e terciária. E a formalização de fluxos entre os pontos de atenção conduzirá a uma plena interação da saúde bucal na RAS.

Santos & Assis (2006) acreditam que o debate em torno das práticas em saúde bucal demanda um modelo de atenção mais adequado, que possibilite agregar as diversas tecnologias (leve, leve-dura e dura) disponíveis da maneira mais adequada, sem reduzi-las nem tampouco ultrapassar as suas possibilidades. Os autores afirmam que a ênfase na equipe interdisciplinar parece ser uma potencial ferramenta de mudança nos processos de trabalho, alicerçando a integralidade e seus dispositivos (acolhimento, vínculo, autonomia, resolubilidade, responsabilização) na confecção de práticas originais, de novos modelos.

Por fim, os autores concluem que nem sempre é possível curar ou resolver uma necessidade apresentada, mas é sempre possível cuidar, escutar e contribuir para amenizar o sofrimento do outro, pois quem adoece, adoece como um todo, ou seja, uma cárie, uma dor de dente, repercute na boca, no corpo, na alma, na vida e junto com alguém que sofre, sofrem os que o amam, de forma que o sofrimento é compartilhado, ainda que não dividido. Por isso, é patente a necessidade de trabalhadores sensíveis, com uma nova ética na saúde (SANTOS & ASSIS, 2006).

Afirmando que não há possibilidade de integralidade e equidade sem a garantia da universalidade do acesso, Cecílio (2009) alerta que esses dois conceitos– integralidade e equidade – constituem os objetivos da atenção à saúde. Além da discussão do simples consumo e acesso a determinados serviços, o debate sobre a integralidade remete ao campo da micropolítica de saúde e suas articulações, fluxos e circuitos, ou seja, é um valor que se expressa na forma como os profissionais respondem aos pacientes que os procuram, sendo a integralidade o princípio que mais conduz o desafio de realizar os valores de justiça, democracia e efetividade do acesso à saúde para a intimidade do núcleo tecnológico das práticas de saúde (AYRES; MATTOS, 2009).