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2.1 Comunicação musical

2.1.1 Intenção comunicativa

A comunicação musical tem sido foco de uma profunda reflexão sobretudo nos últimos sessenta anos7 (Sloboda, 2005). Cobrindo uma diversificada gama de processos

interativos, o exercício desta reflexão abre caminhos para um aproveitamento mais

7 Como exemplos de autores estão John Sloboda (1983, 1991), Vieira de Carvalho (1999), Dorothy Miell (2005), Patrick Juslin (2005), Malloch & Trevarthen (2009), dentre outros. Outros autores tratam da comunicação musical relacionando-a com o gesto semiótico (Kuhl, 2011), com a interação entre co-intérpretes (King & Ginsborg, 2011, Graybill, 2011) e principalmente com o gesto físico na performance, largamente estudado pelos filósofos Mark Johnson e George Lakoff. Num escopo mais alargado, convém citar ainda os autores Marshall McLuhan e o livro Gutenberg Galaxy (1962) e Jurgen Habermas e sua Theory of Communicative Action (1984) como dois dos principais responsáveis pelo desenvolvimento das bases da teoria moderna da comunicação.

holístico das inter-relações entre compositor e intérprete. Incluem-se, nestes processos interativos, competências de âmbito cognitivo, biológico, social, histórico, artístico, político, cultural, económico, linguístico e, se quisermos, até metafísico.

Seguindo por uma conduta semiótica, nota-se que o estudo da comunicação musical compreende diversos níveis de construção, transmissão e reconstrução de signos codificados por um sistema percetível sobre a qual a poiesis é construída. Contudo, a prática interpretativa mostra que os signos se tornam úteis para a performance sobretudo quando repercutidos pela relação semântica-mimética de seus significados, sem a qual não haverá possibilidade de compreensão. Neste sentido, Virginia Anderson (2013) faz referência a importantes autores da teoria da linguagem, retomando a questão da poiesis musical:

Among others, Jean-Jacques Nattiez and Nelson Goodman have used linguistic models to outline the transmission of a musical idea from composer through performer to listener. Both poesis [making] and esthesis [taking in] are active as to decision-making and critical faculties; indeed, Nattiez calls them the ‘poietic process’ and ‘esthetic process’ to highlight their activity (p. 134). Visto que aprofundar o estudo sobre os processos interativos da comunicação é um trabalho laborioso de multidisciplinaridade e multidimensionalidade, resguardo-me aos limites à que esta discussão se propõe: evidenciar aspetos (benéficos ou não) da comunicação musical como ferramenta de interação entre compositor e intérprete em obras de notação alternativa. Dada a necessidade de uma crescente expansão do número de atores e conteúdos, diversos aspetos da comunicação musical ficarão à margem desta discussão8. No entanto, o que se afigura como elemento de grande

importância para o que se segue é a forma como se dá o processo de comunicação musical entre compositor e intérprete.

Ao refletir sobre a citação no início da seção, percebemos que, ao conferir à atividade interpretativa a faculdade criativa que Stockhausen propõe, a comunicação musical é abordada de maneira transversal. Com base na equiparação entre compositor e

8 Diversos trabalhos propõem-se a expandir esta discussão. Destes, destaco os volumes Musical Communication (Miell, MacDonald & Hargreaves, eds., 2005) e Comunicative Musicality (Malloch & Threvarthen, eds., 2011) como centrais na literatura pós anos 2000.

intérprete – ou, em outras palavras, entre criador e recriador9 – a comunicação é atribuída ao domínio da intenção protocooperativa dos atores. Com efeito, a reciprocidade e o mutualismo assumem um papel primário no fazer musical e a comunicação transcende o plano da entrega da mensagem enquanto objeto para tornar- se um sistema heterogêneo de assistência.

Koellreutter (2015) corrobora com o ideal Stockhauseniano de colaboração na comunicação musical, mas sugere a necessidade de unir fatores concomitantes para existir. Basicamente, ele define comunicação como

transmissão de informação, isto é, participar uma mensagem de algo novo, de fatos, de acontecimentos ou processos que são novos, desconhecidos ou pouco conhecidos. Algo desconhecido ou pouco conhecido, no entanto, diferente em cada sociedade e depende, finalmente, de seu nível de consciência e bagagem cultural. (Koellreutter in Brito, 2015, s/p)

Koellreutter faz-nos perceber que a comunicação musical implica uma inter-relação entre conhecimentos de caráter social e histórico, com grande enfoque na primeira parte. Dentro da linguagem social inserem-se os conceitos de sucessão, simultaneidade, convergência e integração que, juntos, “significam informação, na medida em que inauguram sintaxes sonoras e visuais” (Décourt, 2003, s/p). Décio Pignatari (1999) também partilha a ideia de comunicação como sinónimo de condição social quando diz que

quer se processe entre homem/homem, homem/máquina, ou, mesmo máquina/máquina, a comunicação é um fenómeno e uma função social. [...] Em suma, comunicação significa partilha de elementos ou modos de vida e comportamento, por virtude da existência de um conjunto de normas. (p. 17) Os escritos de Pignatari (1999) vão ao encontro de uma hipótese de estruturação etimológica que me interessa particularmente. Foquemos por instantes na palavra comunicação. Ao incidirmos um olhar pragmático, percebemos que comunicação implica uma ação comum, comprovada pela interseção das palavras comum + [única] + ação. Se aceitarmos como verdadeira tal desconstrução vocabular, consideramos que o sentido de unidade da comunicação circunscreve faculdades socioculturais de carácter coletivo, sem

as quais a condição para a tomada da referida ação se tornaria incompleta. Como atesta Sloboda (2005): “For the communicator to know that communication has been successful,

he or she requires some feedback, direct or indirect, from the audience” (p. 238). Estas

faculdades socioculturais têm por função orientar e determinar não só a abrangência global da comunicação, mas também a compreensão totalitária da mensagem. Através de interações comunicativas, o aspeto sociocultural da comunicação ganha um sentido verdadeiramente autopoiético (voltarei mais tarde a este termo). Ou seja, a sinergia da comunicação exerce sobre a dialética uma força transversal de benefício mútuo. Ora, uma vez que “todo comportamento comunicativo objetiva uma reação por parte do interlocutor” (Asensi, 2013, p. 36), este último tem o dever de não só atuar em resposta ao estímulo sugerido pela escrita como estimular aquele que comunica. É dado à experiência de transversalidade da comunicação (ou, como vimos, de uma “ação comum”) o nome de processo comunicativo.