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intérprete compositor Hermenêuhca

4.2 Aspetos gerais da poiesis composicional

4.2.3 Organização métrica

Conforme Koellreutter (1990), a organização métrica das obras pode se apresentar de três formas:

“Métrico: que se refere à existência de um metro perceptível, regular ou irregular” (p. 87).

“Não métrico: que se refere a ausência do metro; não há tempos fortes e fracos dispostos regular ou irregularmente” (p. 98).

“A-métrico: que se refere a uma disposição dos elementos temporais da partitura que causa a sensação da ausência de pulsação e metro” (p. 13).

Esta tipologia, tal como a tipologia anterior (tabela 2), tem como defeito a generalização dos dados, pois trata-se de uma análise baseada em número de ocorrências. É, conquanto, verdadeira uma vez que elucida e esclarece, em linhas gerais, o objetivo. A imprecisão justifica-se pelo facto de que as próprias notações não buscam exclusividade.

Figura 10. Tipologia das relações métricas.

Tal como já foi mencionado (secção 4.2.1), é impossível delimitar com exatidão cada parâmetro da organização métrica das obras em questão, já que, para tanto, as obras deveriam obedecer, na sua essência, uma rigidez composicional que não faz parte do objetivo desta pesquisa. Esta classificação é, antes de mais, um referencial analítico pelo qual o estudo das obras está baseado.

• For guitar • Dois

métrico

• Naí

não métrico

• O movimento obscuro das coisas • ...como a luz se dispõe sobre a luz • Campânulas inclinadas • Pedra celeste: Estrela e musgo • Atabul

a-métrico

4.2.4 Narrativa

Esta secção consiste numa breve discussão sobre aspetos relevantes da narrativa composicional enquanto fenómeno construtivo da estrutura formal. A narrativa é aqui tratada como o pensamento composicional que resulta de um seguimento linear do discurso musical e das suas inter-relações entre conteúdo e modos de apresentação da ideia. Para Tarasti (1994) narratividade baseia-se em três princípios: espacialização, temporalidade e atividade, podendo ser entendida

In the very common sense as a general category of the human mind, a competency that involves putting temporal events into a certain order, a syntagmatic continuum. This continuum has a beginning, development, and end; and the order created in this way is called, under given circumstances, a narration. (p. 24)

Trazendo a discussão para dentro de um corpus de obra indeterminista, nota-se que a narrativa se dispõe entre dois polos distintos, constituindo-se, por conta disso, de forma

contínua ou fracionada.

4.2.4.1 Narrativas contínua e fracionada

Na narrativa contínua, o seguimento do discurso é mantido por extenso, distendendo-se de maneira gradual e constante. Ainda que hajam referenciais prescritivos indeterministas que dependam dos objetivos que emergem do plano discursivo inicial, o resultado, enquanto obra escrita, será uma exposição ordenada do material composicional apresentado ao intérprete na sua forma final. Os melhores exemplos de obras que manifestam uma narrativa contínua são Dois e O movimento obscuro das coisas.

Já na narrativa fracionada, a condução é construída sobre uma rede de possibilidades que afetam não só a estrutura das frases (conteúdo) mas a própria apresentação física da partitura (modo de apresentação da ideia). Como exemplos estão as obras Naí e

...como a luz se dispõe sobre a luz. A definição de notação fracionada encontra

ressonância no conceito de forma móbile, da qual ambas as obras são exemplos representativos. A organização da forma nestas obras pode ser interpretada como um

jogo82 proposto aos intérpretes, já que a performance consiste em ordenar, consoante o que está determinado pelas regras, a posição das peças. Analogicamente, todos os elementos de um jogo de dados estão presentes, ainda que alguns elementos sejam invisíveis, como é o caso dos dados (acaso) e do tabuleiro (tempo).

No que se refere às obras Atabul, Campânulas Inclinadas e Pedra Celeste, estas estão numa posição central, pois a narrativa oscila entre períodos contínuos e períodos fracionados. Nelas, a linearidade é visivelmente contínua (em contraste com as obras de forma móbile), porém o que as torna igualmente fracionadas é a estrutura interna, apresentado uma escrita baseada em procedimentos de natureza separadora tais como cadência, período, reexposição e variação contrastante.

Figura 11. Exemplificação de três obras (respectivamente O movimento obscuro das coisas, Pedra Celeste e

Naí) representando uma linha transversal aos dois polos e ainda uma região mediana da narrativa.

Outrossim, há na narrativa fracionada uma importante variável técnica83 a ser considerada quanto à relação entre determinismo e indeterminismo, que se subdivide em dois estádios: narrativa pré- ou pós-ordenada. Enquanto em algumas obras (e.x Pedra

82 Gadamer (2008) tece importantes considerações sobre o jogo e a ontologia da obra de arte, elucidando, num espectro bastante alargado, o significado hermenêutico por detrás da interpretação e da relação sujeito-objeto dentro do jogo. 83 Ainda que hajam outras variáveis (e.x. interativa, estética, mofológica), refiro-me aqui especificamente à variável cronológica. Na variável interativa, por exemplo, a possibilidade de classificação será uni- ou co-orndenada.

narrahva connnua

narrahva fracionada

Celeste) a apresentação é fixada previamente pelo compositor através de uma série de

regras e valores herméticos estipulados durante o processo composicional, noutras obras (e.x. Naí) o compositor se abstém da necessidade de ordenar os eventos, atribuindo ao acaso ou aos intérpretes a ordenação. A comunicação, neste último caso, não busca um fim resoluto em si, mas um processo que estará eternamente incompleto do plano criativo, refletindo-se numa experiência que se renova através da resolução ativa do recriador. De qualquer forma, tal como num puzzle, o objetivo recai efetivamente sobre a união destes eventos fragmentados numa forma conjunta na qual a narrativa, enquanto resultado sonoro, deve ser interpretada continuamente. Sobretudo na intenção criativa que acolhe o processo interpretativo destas obras em particular, o objetivo procura sempre encontrar-se com o método, posto que tal discussão só é posta no momento em que existem diferentes formas de organização narrativa.

Ainda que provenham de um pensamento orientado pela relação paradigmática existente entre os conceitos de ordem e desordem no universo, as palavras de Morin (2005) mostram grande similaridade com este debate. De acordo com ele, “a complexidade da relação ordem/desordem/organização surge, pois, quando se constata empiricamente que fenómenos desordenados são necessários em certas condições, em certos casos, para a produção de fenómenos organizados, os quais contribuem para o crescimento da ordem” (Morin, 2005, p. 63). Tal afirmação incide luz sobre a discussão do parágrafo acima, posicionando-se a favor de um modelo aberto de narratividade. Ao aceitar a desordem como fenómeno necessário para a constituição da ordem, a narratividade coloca-se a favor de uma ordem efémera e impermanente.

Por fim, é importante notar que esta classificação é só valida no que se refere aos parâmetros definem a narratividade das composições, não servindo para a discussão que se segue. Isto demonstra que as possibilidades de classificação de obras só podem representar uma fração do que a análise se propõe a entender.

4.3 Cronologia

O espaço cronológico que permeia as composições compreende quatro anos de trabalho. Durante este período, e principalmente em decorrência do objetivo pretendido, iniciou-se uma gradual remodelação na minha ideologia criativa, fruto de uma profunda reflexão sobre uma filosofia de vida que conjugasse os princípios de ética, moral e

estética. Fortemente influenciada pela prática da investigação académica, a remodelação deu-se principalmente na revisão da capacidade comunicativa e recriativa da notação. Através da análise cronológica, pôde-se verificar também a evolução do processo composicional como um todo, refletindo na relação poiesis/praxis criativa. De modo a apresentar uma amostra significativa desta reformulação, duas obras terão destaque na análise: uma concluída em 2014 (Campânulas Inclinadas) e outra em 2016 (Atabul). Porém, antes de adentrar nas especificações destas obras, cabe aqui apresentar uma tabela com um pequeno historial das estreias de todas as obras.

Tabela 5. Datas de estreia e intérpretes envolvidos.

Obra Data Intérprete(s)

Atabul Junho de 2018 Pedro Sá, percussão

For guitar 20 de Maio de 2016 Alexandre Nobre, guitarra

Naí 19 de Maio de 2016 Andrea Conangla Fernandes,

soprano e Luís Alberto Bittencourt, percussão

...como a luz se dispõe sobre a luz

13 de Junho de 2015 Márlou Peruzzolo, guitarra e Samuel Peruzzolo, percussão

Dois Maio de 2014 CAn Duo (Chris Nadeau e Anthony

Jackson)

O movimento obscuro das coisas

(mantêve-se inédita até a entrega da tese)

Campânulas inclinadas

13 de Junho de 2015 Veronique Marques, acordeão; Liziane Venes, piano; Márlou Peruzzolo, guitarra e Samuel Peruzzolo, percussão

Pedra Celeste:

Estrela e Musgo

(mantêve-se inédita até a entrega da tese)

Infelizmente, nem todas as obras tiveram a oportunidade de serem estreadas publicamente até a altura da conclusão desta tese. Atribuo isso à “inacessibilidade” a que a grande maioria dos intérpretes ainda hoje atribuem às obras de notação alternativa. O

parágrafo84 abaixo, de autoria de John Sloboda (2005), subscreve tal dificuldade, conquanto propõe como solução uma superação do pragmatismo imediático da interpretação calcada no fator temporal.

Any evaluation of notation reform is going to be a long-term process, and one which will require a considerable commitment from musician who are required to learn and operate with new systems. Any short-term experimentation is almost bound to lead to the erroneous conclusion that orthochronic notation as it now stands is the best of all possible systems. (p. 68)

O pensamento de Sloboda (2005) impera sobre algumas questões comuns à esta investigação, uma vez que traz consigo a emergência de investigar não somente a elaboração de notações alternativas, mas a aplicação de uma reforma do paradigma da notação e do pensamento tradicional de escrita musical. Há, em obras desta natureza, uma dificuldade em tê-las tocadas mais de uma vez em um curto espaço de tempo. Elas teriam de ser tocadas mais vezes; só assim serão criações coletivas; só assim deixarão de ser estreias e passarão a ser uma experiência refletida. O fator temporal foi, tal como aponta a citação acima, um obstáculo para esta investigação, visto que, dada a pouca disponibilidade dos intérpretes em preparar as obras, o tempo de amadurecimento foi, de facto, escasso e condicionante.