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3.1. CONCEITOS FUNDAMENTAIS EM FENOMENOLOGIA

3.1.1. Intencionalidade

A intencionalidade, tomada na amplitude que possui, é um conceito essencial e indispensável à fenomenologia (HUSSERL, 1913). Principalmente pelo fato de consistir no problema que abarca a fenomenologia inteira; todos os questionamentos fenomenológicos sejam estes quais forem, estão incluídos nela. Em quê consiste então?

Intencionalidade é a peculiaridade das vivências de ser consciência de algo (HUSSERL, 1913). Não devemos pensar, contudo, que se trataria somente de uma relação intelectual, ou de uma dicotomia entre o sujeito que tem consciência e um objeto isolado que existindo por si mesmo. É o próprio Husserl (1913) quem coloca que o termo “consciência” deve ser entendido como “experiência” para que não haja enganos. É isso que caracteriza a consciência em seu pleno sentido. Assim, é essencial a toda consciência ser consciência de algo (HUSSERL, 1913). Não se pode falar o mesmo de uma relação entre processo psicológico e um objeto de modo que somente uma vivência intencional é consciência de

algo; seja imaginar um centauro, ou perceber um objeto real. Por “vivência”, ele entende tudo aquilo com que nos encontramos na corrente de vivências.

Isso significa que uma percepção é percepção de algo; que julgar é o julgar de uma relação objetiva; que uma valoração é uma relação de valor; que um desejar, é sempre com relação a um objeto desejado; o fazer é sempre fazer alguma coisa. É essencialmente a direção do eu puro ao correlato da consciência que chamamos de “objeto”, mas não no sentido da dicotomia negada acima (HUSSERL, 1913). Esse correlato pode ser qualquer ente que se dá no mundo: uma coisa, uma relação, uma pintura, uma paisagem, ou uma pessoa. Chamamos também esta “consciência de” de ato intencional, evidenciando melhor a intencionalidade.

Há ainda a seguinte verdade: “em todo ato impera um modo de atenção” (HUSSERL, 1913, p.85). A atenção seria como uma luz que alumia. Aquilo a que damos atenção se encontra dentro do cone de luz, mais ou menos brilhante; ainda que possa também pode retirar-se à penumbra ou à escuridão completa. Este movimento de iluminação não altera o que aparece em nada de seu sentido próprio; contudo, a claridade e a escuridão modificam seus modos de aparecer; que se encontram nele e se pode descrever.

Assim como dissemos que a consciência não deve ser vista como algo puramente intelectual, deve estar claro que todo ato intencional se dirige a certo objeto, ou em outras palavras, tem em vista certo objeto (HUSSERL, 1913). Ou seja, ao percebermos algo, somos percebedores e ao imaginarmos, imaginadores. Não devemos considerar como um ato específico este “ter em vista” que descreve o ato intencional que, do mesmo modo, não deve ser confundido com o perceber; “ato intencional” é sinônimo de qualquer ato de consciência, de qualquer experiência que tenhamos no mundo. Chamamos então, ao correlato do ato intencional, de objeto intencional de um ato de consciência (HUSSERL, 1913). Um objeto intencional não é sinônimo de objeto apreendido já que apreender sim é um tipo específico de ato intencional.

No perceber propriamente dito, estamos voltados ao objeto apreendendo-o como esta coisa que existe aqui e agora. Imaginemos que percebemos uma folha de papel. Ao redor dela, há livros e canetas que também são, de certo modo, “percebidos”, que estão aí, perceptivamente, no campo da intuição18. Porém, voltado ao papel, não estava voltado a

18 Husserl (1913) distingue dois tipos de intuição. A intuição empírica é a consciência de um objeto individual, é

percepção de um objeto que aparece originariamente em sua identidade pessoal. Já a intuição de essências é consciência de um “objeto” (de algo a que se dirige seu olhar e que se dá em si mesmo). Esta última não é uma mera e vaga representação, e sim uma intuição na qual se dá originariamente a essência. A intuição de essências não é possível sem a livre possibilidade de voltar o olhar a algo individual que lhe corresponda e o desenrolar da consciência de um exemplar. A intuição de essência é um ato que se dá originariamente de modo que não se trata

nenhum destes outros objetos e nem os apreendia de modo algum; eles “estavam presentes (...) e não se destacavam, não estavam postos por si” (HUSSERL, 1913, p.79). Ao percebermos qualquer coisa, esta só pode se dar, em princípio, por um lado. E isso, é claro, não quer dizer que se mostra incompleta ou imperfeitamente. As coisas só se dão em “modos de aparecer” em que há um núcleo de algo “realmente exibido”.

Toda percepção tem ainda um halo de intuições de fundo que também é uma vivência de consciência (um cogitatio segundo a terminologia de Husserl), uma consciência de tudo aquilo que de fato há no “fundo” simultaneamente visto (HUSSERL, 1913). É depois que me volto a eles que se tornam explicitamente conscientes, percebidos “com atenção” etc. A mesma coisa acontece com lembranças, livres fantasias, o querer, o sentir e o pensar. Dizer que todas as vivências são conscientes significa que, antes de toda e qualquer reflexão, estão aí como “fundo” e, portanto, prestes a ser percebidas. Ou seja, não quer dizer que, sendo consciência de algo, só ocorrem quando são objetos de uma consciência que reflete: o campo possível de nossa atenção não é infinito.

Enquanto nos dirigimos intencionalmente às coisas, não temos consciência do ato como objeto intencional, mas em qualquer momento há a possibilidade de se converter nisso (HUSSERL, 1913). É inerente à sua essência a possibilidade de uma volta “reflexiva”; evidentemente que sob a forma de um novo ato que se dirige ao primeiro. O mesmo se pode dizer dos atos de que temos consciência na fantasia e na recordação em que compreendemos e revivemos atos alheios.

Ter consciência de algo então é levar a cabo um ato de consciência, seja ele qual for. E um ato de consciência é um ato intencional que, por sua vez, descreve a nossa relação com as coisas do mundo e com o mundo mesmo; descreve a intencionalidade. Intencionalidade que é, como dissemos, o campo fundamental dos questionamentos fenomenológicos.