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3.2. BUYTENDIJK

3.2.1. Sobre o juvenil

Existem características imediatamente perceptíveis que nos fazem identificar um organismo como “jovem” ou “adulto”; não há necessidade de se realizar uma análise científica ou com base em dados históricos (BUYTENDIJK, 1935). Entendendo que não é a

juventude que tem o impulso para o jogo e sim que o juvenil (Jugendlichen em alemão e

jongeren no original holandês)21 é uma maneira de se relacionar com as coisas, o que tange a

este específico modo de ser? Quais seriam suas características?

Segundo Buytendijk (1935), antes de prosseguir com o questionamento, é preciso que nos lembremos que: todas as formas, figuras e estruturas (especialmente orgânicas) possuem propriedades que só podem ser descobertas intuitivamente22; as propriedades das figuras não

são independentes entre si; não só os seres vivos possuem forma como também manifestam ações (que não se derivam das partes que as compõem); no decorrer das ações e expressões de animais ou pessoas se revela o que assinalamos de seu ser, ou caráter (propriedades comuns a todas as ações são a expressão de sua vida impulsiva e constituem a forma de relação do animal com seu ambiente); as relações entre estas propriedades intuídas não só são percebidas imediatamente como também experimentalmente; e não se deve nunca equiparar o estudo da natureza do juvenil com o da natureza da juventude. Afinal, como já o dissemos, os adultos podem nos oferecer características do juvenil; e, além disso, muitos jovens têm características que nada têm a ver com o juvenil. Para ele, a essência do jogar tem conexão com o juvenil; de modo que em um organismo não jovem em que encontramos traços juvenis, é fácil que surja o jogo. Esta é a idéia fundamental de seu trabalho: “a essência do jogo não se compreende senão partindo da essência do juvenil” (BUYTENDIJK, 1935, p.25).

A primeira propriedade do juvenil é, segundo Buytendijk (1935), a indireção; tal fenômeno é uma característica comum a todo movimento de crianças e animais jovens e facilmente percebida. Com esta expressão designa a ausência de um sentido único e linear, a ausência de governo, de uma direção, de estar orientado a um fim. E em quais casos o modo de se mover revela-se inequivocamente como juvenil? Ele pontua quatro aspectos essenciais, observando o comportamento de crianças: (1) o movimento da criança recomeça incessantemente e é disparado por qualquer coisa (não há uma razão determinada, nem ponto de partida e chegada implicado no conceito mesmo de direção); (2) não há características de um movimento linear e nem o de uma rápida mudança de direção com sentido (não assinala um progresso ou continuidade); (3) a indiferença em cada momento é o que produz a disponibilidade para a mudança de direção (a criança se distrai facilmente); (4) nem o corpo e nem o juvenil se acha adaptado às circunstâncias exteriores. A esta falta de direção, liga-se

21 Seria possível usar o termo “jovialidade”. Embora não seja incorreto, o fato dele remeter muito ao riso e à

alegria, pode haver a impressão de que o jogo se trata sempre de um mero gracejo. E o que Buytendijk faz referência aqui é a uma vivacidade, uma relação mais próxima e original com as coisas.

outra característica: a “plenitude” que se acha vinculada à espontaneidade. Todo movimento concreto compreende sempre todos os contrários e oferece plenitude e forma, espontaneidade e regra, imanência e transcendência. Assim, a dinâmica juvenil não possui direção determinada, pouca forma definida e mais plenitude. A falta de direção afeta a atuação juvenil em conjunto e a cada uma de suas partes.

A segunda característica é o afã de movimento que um organismo jovem oferece em grau máximo. Tem forte relação com a espontaneidade também e, na criança, caracteriza-se pela agitação, por partes do corpo que se movem sem motivo. É esta característica que dá ao juvenil sua expressão de vitalidade: ele tem que estar sempre em atividade e sem descanso por uma espécie de impulso interior, e não por reações simples a excitações do ambiente ou do sistema nervoso. Deste impulso central, oriundo de uma verdadeira atividade espontânea e da falta de sentido deste movimento, resulta outra propriedade típica do juvenil: a instabilidade23.

No juvenil, há predomínio dos co-movimentos e é desta indireção primitiva e empuxe dinâmico do organismo jovem que se deriva uma relação especial com o ambiente; chama a isto, tomando emprestado um termo de Erwin Strauss, de atitude pática. Opõe-se a ela a atitude gnóstica. Enquanto que a primeira consiste em “ser captado”, em uma totalidade sentimental24 (um ser tocado e comovido); a segunda consiste em “captar”, ou seja, não é

emocional e se orienta à existência objetiva de objetos pelo conhecimento. A atitude pática da juventude se relaciona com a inexperiência, significando que o ambiente se mostra estranho, desconhecido. Não é por não haver relação gnóstica que há sempre uma atitude pática. Vivenciamos originalmente o meio ambiente com base em processos funcionais circulares que unem a percepção e o movimento. Este viver original é livre de todo pensar acerca do enfrentamento das coisas com que nos relacionamos nesse processo: é um vínculo imediato, de comunicação pré-compreensiva (Volkelt) estabelecida entre o organismo e os fenômenos. Como são somente fenômenos que se nos apresentam, ao dizer que impressões nos “excitam”, queremos dizer que os órgãos do sentido nos oferecem primeiro a vivência de ser captado e captar. Então, a atitude pática do juvenil se refere à sensibilidade para os movimentos (luzes ou cores, por exemplo); são impressões que nos impressionam e nos fazem vivenciar uma forma de movimento. Ou seja, não só percebemos o movimento, como também nos

23 Que é algo confirmado já pela fisiologia de sua época: toda a constância e regularidade de fenômenos

orgânicos não procedem de uma estrutura fixa ou de uma arquitetura pré-formada como nas máquinas, e sim resultado secundário do equilíbrio de cada função. E o equilíbrio é que produz limitação de movimento.

24 É preciso ficar claro que ele não pensa em sentimento como algo puramente emotivo, mas no sentido de

sentirmos algo que, de algum modo nos afeta. Sentimento seria, então, sinônimo do seguinte termo atualmente corrente em psicologia: afeto.

movemos; isto é co-movimento. É como se o jogo, enquanto ambiente, nos envolvesse enquanto jogamos.

Experimentamos o espaço ao nosso redor de forma totalmente distinta quando predomina esta atitude; por exemplo, num baile, em que o movimento não-orientado espacialmente nem limitado, perde-se toda relação com objetos (com distâncias espaciais e temporais); dançamos através, em um espaço no qual estamos e não meramente à nossa frente, enfrentando-nos; nós nos sentimos em espaço (o que é perdido na atitude gnóstica). Por isso, para Buytendijk (1935), não haveria medo do espaço em crianças e animais jovens; não por ignorância de perigo e sim por sua presença mais íntima no espaço. “O jovem vive em outro espaço que o adulto e mantém com ele outra relação” (BUYTENDIJK, 1935, p.34).

E, no contato com o ambiente (atitude), vê-se ainda que o juvenil manifesta-se na forma de timidez (Schüchternheit ou die Scheu em alemão; verlegenheid no original holandês): uma atitude ambivalente, um ir e vir (e não só o voltar como ocorre no temor) que se manifesta de formas diferentes em quase todo movimento juvenil. Porém, uma de suas características essenciais é expressa pela intenção de conservar o vínculo com uma totalidade de vida já existente (digamos, o “pático conhecido”) e trata de estabelecer uma relação com o “desconhecido”.

A indireção, afã de movimento, a atitude pática e a timidez são elementos essenciais do juvenil; e é a relação entre eles que conduz pessoas e animais à esfera do jogo que está repleta de objetos de jogo. Embora no gênero característico de comportamento que chamamos de jogar vejamos facilmente todas estas características, o que realmente delimita natureza da situação de jogo é a peculiaridade do objeto de jogo (Spielgegenstand) (BUYTENDIJK, 1935).

O que torna então algo em objeto de jogo? Primeiro é preciso considerar que somente jogamos com algo que se acha presente a nós paticamente; ou seja, só jogamos com figuras (Bild). Um objeto só é objeto de jogo na medida em que possui figurabilidade. “A esfera do jogo é a esfera das figuras e com isso a esfera das possibilidades, da fantasia.” (BUYTENDIJK, 1935, p.132). Em quê consiste então esta figurabilidade dos objetos? Qual significado possui esta qualidade ao jogador? “Figura”, segundo Buytendijk (1935), é a forma de manifestação das coisas e dos fatos em seu caráter pático. Além disso, não existem figuras puras e sim fenômenos com maior ou menor caráter figurativo. Assim, o que chamamos de figuras possui, ao percebê-las, possibilidades imediatas; a figura, tal como a consideramos

concretamente, é figurada pela fantasia. Não devemos pensar em algo puramente da ordem do pensamento ou da razão: cada percepção só se produz por força da imaginação. Tal se aplica às percepções da vida cotidiana, na qual não nos damos conta da intervenção da fantasia. Segundo ele, dizer que “não se joga senão com figuras” (BUYTENDIJK, 1935, p.134) significa afirmar que o objeto de jogo nunca tem o caráter de um objeto determinado intelectualmente: não é um “algo” e sim um “como” que figura no processo circular de atração e reação a ela, de mover e ser movido, ainda que quem joga nada saiba desse processo. Os fenômenos que um organismo percebe em seu mundo circundante têm, quase sempre, uma significação determinada; o mais não é percebido. A esfera do jogo é, portanto, a esfera das figuras, das possibilidades, do pático, do parcialmente desconhecido e da fantasia; nós descobrimos as possibilidades contidas na figurabilidade do objeto. Portanto, o objeto de jogo, em seu caráter de figurabilidade e em suas possibilidades de figuração, une-se ao jogador e, deste enlace, surge o jogar. Com base nisso, alguns objetos são mais comuns: bolas; formas irregulares (galhos com folhas); substâncias amorfas (neve, água); objetos vivos ou que parecem vivos (objeto preferido de jogo).

Jogamos com figuras que, por sua vez, jogam conosco. Jogar é sempre jogar com algo e, por isso, se realiza por movimentos que têm lugar na coexistência de um sujeito com determinados objetos e/ou com outros seres vivos (BUYTENDIJK, 1935). Estes movimentos têm que nos oferecer o ir e vir, pois esta é a característica essencial de uma atividade sem orientação.

Segundo Buytendijk (1935), é importante ter em mente que o jogo enquanto acontecimento se desenrola; ou seja, não se apresenta plenamente desde seu princípio, e sim vai pouco a pouco mudando, mostrando-se. Encontramos aqui uma diferença essencial entre os jogos e os movimentos agradáveis: embora ambos os movimentos não tenham um fim determinado, o curso deste último é homogêneo, mantendo a mesma forma do começo ao fim. Seja como for, em todos os jogos, as mudanças têm algo em comum: “trata-se sempre de uma mudança imprevisível” (BUYTENDIJK, 1935, p.118). Ou seja, aquilo que precede não é suficiente para se compreender o que se segue; há algo de salto, que vem de uma fonte desconhecida, imprevisível e espontânea. Isto, segundo ele, leva à evidência de que o jogar sempre carrega um elemento de “surpresa”, de “aventura”. Mesmo que à primeira vista não pareça, isso acontece mesmo em jogos de azar; ao observar, parece que não fazemos nada, mas isso é porque o curso do que acontece é vivido interiormente e leva consigo o elemento

do azar, do imprevisível. “Vivemos com a fortuna, com o azar (...), com uma potência imprevisível, de modo que o jogo traz consigo a surpresa de uma aventura” (BUYTENDIJK, 1935, p.119).

A surpresa somente ocorre porque o movimento tem lugar sobre um objeto de jogo, ou se dirige a outro jogador que, por sua vez, têm movimentos que são imprevisíveis, obstinados e até irônicos. O próprio ir e vir do jogo é conseqüência necessária da imprevisibilidade do jogar e, claro, da dinâmica de todo jogar. Portanto: “jogar não consiste só em alguém que jogue com algo; e sim também em algo que jogue com o jogador” (BUYTENDIJK, 1935, p.120). Quanto mais se preenche esta última característica, mais intenso e duradouro será o jogo; e será ainda mais o caso quando o objeto de jogo possuir uma possibilidade de surpresa que corresponda à esperança/expectativa do jogador (ou seja, se o jogador espera algo que sabe ser possível no jogo, o jogo dura mais). É preciso, evidentemente, certo equilíbrio entre a atividade do jogador e do objeto para que o jogo se mantenha; por exemplo, se em um jogo de futebol há certo equilíbrio, o jogo é bonito e não chato. Isso poderia até mesmo explicar, segundo ele, as preferências de jogo por crianças e por pessoas mais velhas; por isso que, embora aconteça, é difícil que vejamos adultos brincando (ou jogando) de esconde-esconde ou pega- pega.

Disso deriva um outro fato importante. Todo jogar exige um campo de jogo que é delimitado pelas regras de jogo (BUYTENDIJK, 1935). Estas prestam virtualmente o mesmo serviço que um campo de jogo delimitado: ambos tentam manter o jogo dentro de certas fronteiras. Como o jogar é sempre um ir e vir, é preciso haver fronteiras em que o movimento rebata. Operando limitações, as regras não são leis de movimento; elas não determinam o que tem que acontecer e sim o que não pode acontecer; dentro delas, há liberdade de atuação e, por isso, podemos contemplar as mudanças imprevisíveis que acontecem em jogo (o que não apareceria no trabalho técnico)25.

25 Aqui reside uma distinção entre jogos e esportes. Nos esportes, há uma tendência a se buscar a perfeição da

execução de modo que as regras no esporte têm uma tendência a serem positivas e remeterem ao que se deve fazer de fato.