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3.1. CONCEITOS FUNDAMENTAIS EM FENOMENOLOGIA

3.1.2. Mundo

3.1.2.2. Mundos ideais

O próprio Husserl (1913) afirma que é comum que lidemos com coisas sem qualquer analogia no mundo circundante que chama de mundo de realidade “real”. Como exemplo, ele cita um horizonte aritmético: existe um mundo aritmético diante de mim se porventura estou em uma atitude aritmética. Isso não quer dizer, porém, que o mundo natural desaparece: ele está sempre e constantemente para mim aqui; estamos sempre em “atitude natural”: “o mundo natural segue então aí adiante; depois, o mesmo que antes, sigo na atitude natural, nem que mo incomode as novas atitudes” (HUSSERL, 1913, p.67). Nada no mundo precisa ser alterado ao me apropriar deste mundo aritmético e outros semelhantes com suas atitudes correspondentes. Se nos movemos em tais mundos de novas atitudes, o mundo natural se sustenta fora de minha consideração e se torna, para mim, consciência atual de um fundo e não um horizonte em que se insere o mundo aritmético. Isso significa, segundo ele, que ambos os mundos diante de nós carecem de conexão, prescindindo de sua referência ao eu; eu posso dirigir livremente minha atenção e meus atos a um ou a outro. Embora o mundo aritmético não entre no horizonte das realidades do mundo real de minha experiência (HUSSERL, 1913).

Deste modo, podemos não ter coisas, homens e objetos como correlatos à consciência; é possível que nos ocupemos, por exemplo, de números puros e suas leis. Coisas que, enquanto tais, não se mostram diante de nós no mundo circundante (o mundo de realidade “real”). Durante a atividade aritmética, estão aí, como campo de objetos, o mundo dos números: “números soltos ou corpos de números rodeados por um horizonte aritmético, em parte determinado, em parte indeterminado, mas patentemente, é este estar aí, como aquele mesmo que está aí, de outra índole” (HUSSERL, 1913, p.67). Ou seja, “o mundo aritmético só está para mim aqui, se e enquanto estou em atitude aritmética” (HUSSERL, 1913, p.67). Contudo, o mundo natural está sempre aí para mim enquanto me deixo viver naturalmente (enquanto este é o caso, estou em atitude natural). O mundo natural segue aí adiante; nada é preciso alterar ao me apropriar do mundo aritmético (ou outros com as atitudes correspondentes); depois, volto à atitude natural sem que as novas atitudes atrapalhem. Se o cogito (consciência) se move somente nestes outros mundos, tiramos o mundo natural de nossa consideração (como muitos cientistas fazem); ou seja, temos consciência dele como

fundo e não como um horizonte em que se insere o mundo aritmético (os dois mundos diante de nós carecem de conexão). Somente quando cultivamos a aritmética na escola e na formação científica que este mundo está agora “presente” de verdade para mim. Ou seja, só no “aritmetizar” original que temos entidades aritméticas à vista como realidades aritméticas (HUSSERL, 1913).

Com o mundo real (em sentido estrito) é uma outra coisa que acontece (HUSSERL, 1913): ele está continuamente presente durante a vigília, de modo que sempre tenho em meu campo de experiência algo “dele” (estas ou aquelas realidades, no mesmo sentido). Não preciso “pôr o pé” nele; tenho constantemente minha real posição e experiência nele, ainda que não opere realmente esta experiência. O realmente experimentado está rodeado, sem dúvida, pelo não-experimentado; à maneira de um horizonte sem fim, acessível partindo do experimentar, de limites não experimentados. Isso significa que o mundo real estava presente a mim direta e indiretamente (pela experiência real e possível) desde o tempo em que ainda não havia adquirido um “mundo ideal”, e segue presente ainda quando me perco de todos os outros possíveis; como o mundo ideal aritmético em minha atitude aritmética.

Percebe-se então que para Husserl (1913) o “mundo real” é um caso especial de uma multiplicidade de possíveis mundos e não-mundos. Seria possível supor algo real que exista fora deste mundo, mas seria preciso que fosse experimentável por um eu real e não obra de uma vazia possibilidade lógica. Tudo que é cognoscível por um eu deve ser cognoscível por todos os “eus”. Ou seja, se existem mundos, as motivações empíricas que os constituem têm que poder entrar em minha experiência e na de qualquer eu. É preciso que se comprovem na experiência humana (HUSSERL, 1913). Ou seja, ao falarmos de múltiplos mundos, é preciso que eles possam ser experimentados não somente por mim, mas por qualquer outro eu que se dirija a eles. E, como vimos, a fenomenologia não nega a existência real do mundo real (e da natureza) como aparência: é indubitável que o mundo existe. O mundo real está presente para mim direta e indiretamente por meio de uma experiência real e possível. E permanece presente tanto antes como também durante e depois de adquirir um “mundo ideal”.

Um quadro é um “mundo” por oposição ao mundo único e “real” por possuir diversas dimensões e perspectivas possíveis (MERLEAU-PONTY, 1945). Além disso, um quadro forma uma unidade com todos os outros quadros. Neste mundo “dos quadros”, os mesmos elementos sensíveis não têm o mesmo significado que possuem no mundo prosaico e perceptivo natural. Por isso também se pode dizer que uma consciência que fantasia está com

a atenção voltada a um mundo de fantasia (HUSSERL, 1913) e no mundo de fantasia, as percepções são “como se”; ou seja, ficções de percepções. Estamos voltados a um mundo, mas só dizemos que “percebemos na fantasia” quando assumimos que “refletimos na fantasia”. No mundo real, o sentido é um e o mesmo que a existência (MERLEAU-PONTY, 1945). No imaginário, o mundo é sem profundidade por não corresponder aos nossos esforços para variar nossos pontos de vista, não se prestando à nossa observação. O real é distinto de nossas ficções porque nele o sentido investe e penetra profundamente a matéria. Ao contrário do que se pode pensar, o real é inesgotável.

A palavra “imagem” é um tanto mal vista por nos fazer pensar em um desenho que fosse uma cópia, uma espécie de segunda coisa e a imagem mental como um desenho privado. Porém, ao pensar nisso, é possível compreender a “quase-presença e a visibilidade iminente que constituem todo o problema do imaginário” (MERLEAU-PONTY, 1961, p.19). Merleau- Ponty (1964), utiliza a certa altura um exemplo no qual ele leva em consideração a sua mesa de trabalho. Contudo, para tornar a visualização de sua argumentação, julgamos importante trazer isso a nossa própria realidade e utilizar, mais uma vez, a primeira pessoa tal qual tentamos ser fiéis a Husserl alguns parágrafos acima. É certo que eu vejo a minha mesa e é também, igualmente certo que, sentado diante dela, ao pensar no viaduto do Chá não estou sequer em minhas divagações a respeito dele e sim no próprio viaduto do Chá. É no horizonte destas visões (mesa) e quase-visões (viaduto do chá) que está o próprio mundo que habito. Obviamente que tal visão pode ser combatida pelo fato de dizermos que é algo meu, mas Merleau-Ponty (1964) não cede ao antigo argumento de que o sonho, o delírio e as ilusões nos convidam a examinar se aquilo que vemos é falso. Afinal, tal argumentação baseia-se na crença em um mundo em geral que é verdadeiro em si e usado como arrimo para desclassificar nossas percepções lançando-as em uma nossa “vida interior” qualquer devido ao fato de ter sido convincente. Assim, coisas como quadros e mímicas não servem para que, através dele, vejamos coisas ausentes tiradas do mundo verdadeiro já que o imaginário está perto e longe do real (MERLEAU-PONTY, 1961).

Abarcando o mundo natural inteiro, a fenomenologia se presta a compreender todo e qualquer mundo ideal que derive dele (HUSSERL, 1913). Seria possível até que pensássemos no mundo do jogo se nos detivéssemos na questão de mundos ideais; talvez até mesmo grafá- lo como “mundo-jogo” torne mais fácil de compreender o que queremos dizer com isso. É

mais especificamente na discussão do jogo em alguns autores de abordagem, a atitude e o método fenomenológicos que se seguirão os tópicos a seguir.