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Logo ao começo do relato, algo já se mostra como evidente característica do dispor-se a jogar o jogo. Ao escolher Phantasy Star, “não foi uma mera escolha aleatória. Era um jogo que eu queria jogar de novo” (grifo nosso). Percebemos então que é preciso, antes de tudo, querer jogar.

E o que seria “jogar”? Podemos indicar, tendo por base a etimologia levantada que jogar tem muitos sentidos. O primeiro, e relevante aqui, é o de descansar, de aliviar-se, de respirar. O segundo é a diversão (di-vertere); que, como nos traz Huizinga (1938), seria o elemento mais essencial do jogo e do jogar. Como vimos, podemos entendê-lo como desviar, virar para outro lado, mudar a atenção de uma coisa para outra, sair de um lugar para outro. Observamos ainda que vertere pode ser ainda entendido como tornar-se.

Percebemos então que se divertir é voltar-se a uma outra coisa, é deter-se e virar para outro lado, é sair da linha que outrora seguíamos. Se diversão implica em desviar e virar-se (tornar-se) para outro lado, jogo em buscar alívio e ânimo, e divertir-se é essencial ao jogar, então não seria jogar justamente este afastar-se do “comum” (do “real”) para respirarmos um pouco? O sentido mesmo de diversão se relaciona muito mais com alívio do que com a obtenção pura e simples de prazer; de modo que querer jogar é querer sair, voluntariamente, do mundo real e esquecer, suspender, suas preocupações inerentes. O próprio Benjamin (1928a) nota isso em suas considerações, ainda que se detenha muito mais sobre brinquedos do que jogos: é querer libertar-se.

Muitas coisas poderiam ter sido feitas e escolhidas no momento em que se quis jogar. Poderia ter ido ler um livro, passear, jogar Paciência, ou ver um filme. Mas querer se divertir não é um desejo puro e isolado; quem quer, quer alguma coisa. E, querendo jogar, verificamos um claro ato intencional no qual, além disso, quer-se jogar alguma coisa; e a escolha foi Phantasy Star. Não houve qualquer obrigação; seja no querer jogar enquanto tal como na própria seleção deste jogo em específico.

Esta vontade (ou desejo) de “sair” do mundo real é exposta por muitos (senão todos) os autores que, contribuindo com este processo compreensivo, foram inseridos nas outras partes deste trabalho. Huizinga (1938), coloca claramente que se houver ordenança, não é possível existir jogo. Somente com isso, poderíamos dizer que qualquer coisa que chamamos ordinariamente de jogo deixaria de sê-lo se houvesse obrigação. Por exemplo, se não queremos jogar Damas, mas somos forçados a fazê-lo, seria verdadeiro afirmar que, sem uma submissão voluntária ao jogo, há jogo? Pelo que viemos trazendo até então, a resposta é claramente negativa: não está em jogo aquele que não se submete à totalidade do jogo; afinal, sem lançar-se ao jogo, o pseudo-jogador não se coloca em jogo.

Dentre os autores que tratam o fenômeno sob um ponto de vista psicológico, Piaget (1975) indica este mesmo aspecto ao concordar em parte com o termo apresentado por Groos e Lange: “ilusão voluntária”. Embora ele se detenha muito mais a crianças, podemos extrapolar a qualquer um a evidência de que só há jogo quando, livremente, aquele que joga se coloca em jogo. Piaget (1975) afirma que, desde precocemente, já se percebe uma distinção entre a fantasia e o real; ou seja, acredita-se no que se quer e escolhe-se o deleite em uma outra realidade.

Como dissemos, no relato, não só percebemos que se quer jogar; fica claro que nós também queremos jogar algo: “E, enquanto pensava em qual jogo jogar, foi este que veio rapidamente à minha mente”.

Gadamer (1986) aponta este duplo movimento. O jogar é sempre jogar alguma coisa; e é o jogador que escolhe a qual determinação do movimento (i.e. qual jogo) vai se submeter. Em primeiro lugar, essa escolha limita o comportar-se ludicamente em relação a todas as outras ações possíveis (é o querer jogar); e, depois, já nesta disposição a jogar, escolhe-se certo jogo e não outro. No relato, esse desenrolar é evidente e a opção concretizada em oposição aos outros aparece no seguinte trecho: “(...) não é o único jogo que evoca boas lembranças (...). Mas não eram estes outros que queria jogar; era este”.

Essa escolha de um jogo específico é necessária porque, como afirma Gadamer (1986), o jogo compreende um lugar de jogo no qual acontece o jogar. Ou seja, ao escolhermos e nos sentirmos atraídos por um único jogo dentre infinitos outros, selecionamos um espaço de jogo delimitado dentro do qual há liberdade de movimento. Este campo de jogo (que no relato tem o nome de Phantasy Star) é sem transição e intermediação, visto como oposto ao mundo real e suas finalidades. O que não quer dizer que há algum tipo de

esquecimento total já que obrigações podem impedir que se consiga um tempo e um espaço para se jogar; vemos, no relato, que “não retomei Phantasy Star no mesmo dia. Sequer no dia seguinte já que fiquei ocupado com uma série de compromissos familiares”. Ou seja, é preciso que haja um espaço e um tempo para se jogar neste campo de jogo delimitado e fechado com relação ao mundo dos fins. Para Huizinga (1938) essa suspensão expressa simplesmente que, dentro do círculo do jogo, de seu “espaço sagrado”, leis e costumes do cotidiano perdem sua validade; como se, além disso, nos tornássemos outra pessoa.

Estar livre de trabalhos e preocupações em certo momento facilita o interesse e o encanto não só para querer jogar, mas para o jogo escolhido também. Até mesmo certos tipos de fadiga, ao invés de interromper um jogo em curso, podem fomentá-lo. Por exemplo: “embora em alguns momentos me pegasse ansioso para voltar ao jogo para descansar dos meus afazeres (...)”. A necessidade de jogar é ainda maior se tais atividades são monótonas. Buytendijk (1935) aponta ainda que a explosão de estímulos nas cidades nos leva a procurar alguma atividade que nos tire dessa inorganicidade para a vida; uma que não se refere só ao que percebemos, e sim que envolva todo o corpo, sua intencionalidade e movimentos.

No que tange ao escopo deste momento, ainda não entramos no jogo que escolhemos. Como o próprio nome que escolhemos para descrevê-lo, ainda estamos fora do jogo mesmo tendo querido jogar e tendo escolhido o jogo em questão. Contudo, não seria leviano afirmar que no momento anterior ao estar em jogo, o prelúdio, jogamos (ou brincamos) com o jogo. Recuperando o que Buytendijk (1935) fala sobre a timidez, é como se houvesse uma espécie de flerte (um jogo de amor) entre o jogador e o jogo; este atrai o primeiro à sua esfera que, por sua vez, aproxima-se e afasta-se com uma atitude ambígua que nada tem de medo. O próprio Buytendijk (1935) comenta que o jogo não pode ser visto senão como uma porta (uma entrada e saída); e, antes de entrarmos de fato no lugar que de fora vemos como cheio de vida, nós já nos relacionamos com o jogo, este outro mundo que vemos diante de nós. Afinal, nós escolhemos um jogo pela suas determinações gerais e seu espírito (conjunto de regras e regulamentos que preenchem o espaço lúdico) (GADAMER, 1986).

Prelúdio este que, em um game, parece não se encerrar ao ligarmos o console. “Nas pequenas cenas de abertura, já é colocado um contexto não só temporal (...) como também espacial (...)”. Este trecho diz respeito ao fato de que, no prelúdio, percebemos, com certa estranheza dependendo do caso, os limites estabelecidos pelo jogo e em que espaço e tempo

ele ocorre. É Phantasy Star ainda tentando nos convencer de que é sério; convidando-nos a nos lançarmos nele.

É preciso não esquecer que o jogo escolhido não passa a existir somente por ele se colocar diante de nós (i.e. por consciência ou comportamento do jogador); ele é um mundo que já existe no mundo natural antes de ser percebido e antes de nos absorver: ele nos atrai e nos preenche. Ou seja, não seria prudente contentarmo-nos com um argumento berkeleyano de que o jogo só passa a existir se há um jogador ali que o está jogando. Como diz Gadamer (1986), experimentamos o jogo como uma realidade que nos sobrepuja. Além de que seria muito pouco fenomenológico acreditar que nossa visão (em sentido amplo) dá existência aos fenômenos; eles, por sua vez, somente mostram-se a si mesmos, o seu sentido. Embora isso seja, evidentemente, muito mais claro em determinados tipos de jogos. Gadamer (1986) afirma que em jogos representativos, por pressupor que um espectador perceba que se trata de outra realidade, isso é bem notável; mas isso parece acontecer em games de maneira semelhante, mesmo não se tratando apenas de algo a que assistimos e que podemos participar como espectadores.

Ao dizer que “era um jogo que eu queria jogar de novo (e terminar pela sexta ou sétima vez)”, dizemos que já repetimos o mesmo jogo diversas vezes. E isso evidencia um fato inerente a todo jogo: sua repetição. Então, o jogo nos atrai não somente pelas suas características “sensoriais” imediatas ou “objetivas”; não seria enganoso dizer que muitas coisas estão em jogo quando estamos sendo seduzidos pelo jogo à sua esfera; no relato, fica claro que a lembrança da primeira vez que nos deparamos com ele e aquelas memórias que temos das vezes em que o jogamos anteriormente têm o seu papel. É o jogo que busca nos enredar; tanto ele como nós, que o queremos jogar, nos comportamos e agimos com timidez, indo e voltando ambivalentemente e sem medo. E é assim, por estas evidências, que começamos a entender que o sujeito do jogo é o jogo tal como aponta Gadamer (1986).

A nostalgia relatada em diversos pontos do relato demonstra, em certo sentido, que lembranças a respeito de um jogo nos atraem ao mundo que ele encerra (e não a um outro) em dado momento. Por exemplo, ao dizer que “Minhas primeiras memórias (...) perpassam as doces lembranças (...) de ir a locadoras à tarde (...)”, fica evidente que idas às locadoras, vistas como agradáveis, fazem parte do processo de se optar por determinado jogo. E não só isso, mas a própria lembrança da experiência com sua caixa: “(...) Meu primeiro encontro com esse cartucho foi, na verdade, com a sua caixa. (...) O texto na parte de trás também era muito

convidativo”. Até naqueles momentos iniciais após termos ligado o jogo há a evocação de determinadas memórias como a música que toca à tela-título: “Logo na primeira tela, começa a música que ressoa até hoje clássica, nostálgica e em extrema relação com o jogo”.

Huizinga (1938) afirma ainda que o encanto e o fascínio que o jogo deve possuir para nos atrair a ele é mantido e aumentado por comunidades de jogadores que partilham deste algo importante, mesmo quando não estão jogando. No caso de Phantasy Star há, durante o relato, uma referência clara com relação a isso: “(...) lembro-me de duas coisas que (...) me fizeram pensar em compartilhar com um amigo meu (...) que, junto comigo e outros, divaga sobre aspectos da história e de todo o universo do game.”. Este trecho é bem específico, mas há uma outra fala em que há um comentário mais geral: “(...) sempre me surpreendo com as coisas que leio; algumas que seriam interessantes para discutir com outros fãs da série”. Amigos estes que, fazendo parte de uma mesma comunidade, acaba fomentando ainda mais o retorno ao jogo por manter seu brilho para um possível jogador.

Não é porque suspendemos as finalidades do mundo cotidiano por um intervalo, para usarmos um termo de Huizinga (1938), que jogar não é sério. Pelo contrário: não só possui uma seriedade própria como há a exigência de que seja tomado com seriedade pelo jogador. E, na atração que o jogo exerce em nós, em seu convite para nos submetermos a ele (o verdadeiro sujeito da experiência de jogo), é isso que ele exige: que nos submetamos a seu campo de jogo de livre vontade e seriamente.

Assim, embora seja comum que, como aponta Huizinga (1938), o jogo seja visto como supérfluo por não ser imposto por necessidade moral ou física, e sendo praticado em horas de ócio sem jamais constituir uma tarefa, fica claro no relato que ele exige de nós uma seriedade. Isso significa somente que jogar é algo além de um fenômeno psicológico ou fisiológico; de modo que o mundo do jogo, e o escolher colocar-se em jogo, sempre possui um sentido. Isso não somente quando já estamos nele; mas também quando ele está diante de nós, “flertando” conosco, por assim dizer.

Isso quer dizer que o jogo não nos atrai pelo movimento que podemos fazer com os dedos, as mãos ou todo o corpo; muito menos nos atrai pelo que podemos fazer com ele. Ao contrário, ele nos atrai para que entremos em jogo e que, nele, usufruamos liberdade de movimento; o jogo nos atrai pelo que podemos fazer nele. Pois ele possui algo que transcende as necessidades do dia a dia e confere um sentido à ação que efetuamos uma vez que estamos nele, como coloca Huizinga (1938). Pensando em Winnicott (1975), poderíamos dizer que o

jogo exige que confiemos nele e que abracemos a seriedade que nos pede, estabelecendo com ele uma relação de confiança; que culmina em sermos absorvidos por ele e não em abarcá-lo entre nossos braços.

Em Phantasy Star, somos apresentados (antes mesmo de começar a jogar) ao termo, à meta que não só terminará o jogo como dará todo o sentido das ações e movimentos que efetuarmos em direção a ele: “A cena da morte de Nero (...) é o mote que justifica o começo da jornada (...) rumo à vingança e a conseqüente libertação do povo de um ditador tirano”. Como limite último do jogo, parece ser uma das fronteiras que conhecemos durante o prelúdio. Newman (2007) aponta justamente que esta parte em que o jogador ainda não joga permite que se dê uma contextualização do jogo e de sua tarefa73.

Então, sabemos logo qual é a tarefa principal do jogo e que sua realização última nos tirará do jogo. O jogo, atraindo-nos à sua esfera, não esconde de nós que temos algo a fazer uma vez que estejamos em jogo. A pergunta que ele nos faz, durante o prelúdio, antes de começarmos de fato a jogar nele é: vai levar essa tarefa a sério? Se dissermos “sim”, o jogo nos envolve; se dissermos “não” (ou quando há obrigação envolvida), não entramos no jogo.

Em games, como Phantasy Star, é comum dividirmos o jogo em diversas sessões; de modo que podemos voltar ao mesmo jogo tanto desde o começo como de onde paramos da última vez. E, ao voltarmos a jogar, é preciso que se “prossiga com o jogo” (como aparece, em primeira pessoa, no relato). Ou seja, novamente ele nos convida à tarefa; cabe a nós continuarmos com o jogo ou não voltarmos a ele; há a escolha de começar de novo ou voltar do último lugar em que salvamos. Até mesmo quando somos derrotados em combate (ou quando falta energia elétrica) somos convidados a retornar ao jogo ou não; a escolha cabe a nós enquanto jogadores. De modo que a tela-título, como já apontamos anteriormente, ainda não é jogo, mas prelúdio a ele. Tanto que, na primeira sessão, o relato diz: “com a imagem da heroína principal estampada na tela, há duas opções: começar do início ou de um jogo salvo. Como o que eu queria mesmo era jogar tudo desde o princípio, escolho a opção que me permite começar do início”. Nas sessões posteriores (em que morria ou voltava depois de pausas longas), escolhia sempre voltar de um jogo salvo. Se escolhemos retomá-lo de onde paramos, é preciso que nos localizemos em jogo antes de, efetivamente, voltarmos a jogar. É, basicamente, um outro prelúdio ao mesmo jogo (ainda que possa ter certas coisas em comum

73 Embora este autor tenha focalizado, ao falar disso, muito mais a história per se do que o game enquanto jogo

ao tecer considerações sobre as motivações dos personagens e coisas do tipo. Contudo, ele notou bem o fato de que a introdução de um game e os momentos em que paramos de jogar entre uma sessão e outra funcionam como prelúdio ao jogar.

– ligar o console etc.). No relato isso aparece claramente no seguinte trecho: “Retomando o jogo depois de tanto tempo, tento me lembrar onde exatamente estava e o que planejava fazer.”.

Huizinga (1938) diz que jogamos até que alcancemos o fim do jogo. Para Gadamer (1986), o próprio jogar, entendido como os comportamentos em jogo do jogador, se mostra como um comportamento (tarefa) vinculado a este fim (ou fins) aparente do jogo; mas ele nos faz um alerta importante: o sentido do jogo não repousa na conquista deste fim. Quando aceitamos a tarefa do jogo e nos entregamos a ela, nós nos colocamos em jogo; só ao aceitarmos a tarefa que nos foi apresentada durante o prelúdio pelo próprio jogo que estamos, de fato, em jogo. E seria nisso, em nossa auto-representação como jogadores que estamos em jogo que reside seu sentido e que nos move não só em direção ao jogo como também dentro dele.

E então, há o salto. Passamos a porta de que fala Buytendijk (1935). Num instante, passa-se do flerte com o jogo ao estar em jogo totalmente. Neste momento que aqui descrevemos, não falamos de todo momento em que não estamos jogando; mas sim daquele imediatamente anterior em que queremos jogar alguma coisa. Para este outro em que estamos envolvidos em jogo pelo jogo que outrora escolhemos, reservamos o tópico a seguir.