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Mundo real e mundo natural: a atitude natural

3.1. CONCEITOS FUNDAMENTAIS EM FENOMENOLOGIA

3.1.2. Mundo

3.1.2.1. Mundo real e mundo natural: a atitude natural

Iniciamos todas as nossas meditações como homem da vida natural, representando, julgando, sentindo e querendo em atitude natural (HUSSERL, 1913). Encontro-me sempre em relação consciente a um e mesmo mundo, ainda que seu conteúdo possa ser mudado. Estranhamente, não só temos este mundo diante (e ao redor) de nós já que também somos

membros dele. Não há um mero mundo de coisas, um universo repleto de objetos e sim um mundo de valores e objetos com sentido. É a este mundo que se referem as múltiplas e mutáveis espontaneidades de minha consciência.

A tese geral da atitude natural, que se duvidada ou rechaçada não é alterada, é que o mundo está sempre aí como realidade (HUSSERL, 1913). Todas as ciências que designamos por naturais ou do espírito (humanas) têm por objetivo conhecer mais completa e seguramente o mundo da atitude natural; estas são as chamadas ciências do mundo, ou ciências da atitude natural. Isso não deve ser entendido com estranheza já que: “o conhecimento natural começa com a experiência e permanece dentro da experiência” (HUSSERL, 1913, p.17).

Nessa atitude chamada natural cabe o horizonte inteiro das indagações possíveis: o mundo que nada mais é do que “o conjunto total dos objetos da experiência e do conhecimento empírico possível” (HUSSERL, 1913, p.18). Sendo assim, o mundo é o horizonte inteiro de todas as indagações possíveis dentro da atitude natural. À atitude natural, então, corresponde um mundo (HUSSERL, 1913). Não devemos cair no erro de crer que este mundo é puramente perceptivo; assim como ele pode ser “real”, também pode ser ideal, natural e intersubjetivo. É o mundo da experiência natural, aquela em que os objetos se dão originariamente, em que intuímos (ou percebemos) os objetos.

Para entender melhor o que quer dizer “atitude natural”, Husserl (1913), propõe que pensemos que nos encontramos, durante todo o período vigília, sem poder evitar, de forma alguma, um contato, uma relação consciente a um mesmo mundo. Seria possível exprimir o mesmo em outras palavras: nós o experimentamos. Tanto coisas corpóreas como seres animados estão em meu campo de intuição como realidades, mesmo quando não fixo a atenção neles, e não há a necessidade de que estejam em meu campo perceptivo.

De modo mais sucinto, Sokolowski (2000) afirma que a atitude natural seria nossa perspectiva padrão; aquela em que estamos originalmente orientados para o mundo, intencionando coisas, situações, fatos e quaisquer outros tipos de objetos. Mundo, para ele, seria um horizonte para todas as coisas que podem ser intencionadas e dadas para nós: “o mundo é o concreto e o todo atual de nossa experiência” (SOKOLOWSKI, 2000, p.53). Na atitude natural, não só nos dirigimos para todo tipo de coisas, como também ao mundo como o horizonte em que todas as coisas podem ser dadas.

Retomando um pouco a questão do mundo na atitude natural, pode parecer estranho retomarmos Merleu-Ponty (1964, p.15) e sua afirmação de que “o mundo é aquilo que

vemos” já que fizemos questão de deixar claro que o mundo não é puramente perceptivo. Contudo, mesmo falando do mundo que percebemos, é preciso ter em vista que em fenomenologia utilizamos o termo “perceber” em um sentido mais original. Não somente Merleau-Ponty (1945) em sua obra “Fenomenologia da Percepção”, mas até mesmo Husserl (1913) em seus textos publicados em vida afirma que a percepção é a experiência natural e original das coisas e que seu sinônimo seria a intuição.

Esse posicionamento husserliano corrobora com Merleau-Ponty (1945, p.14): “o mundo é não aquilo que eu penso, mas aquilo que eu vivo; eu estou aberto ao mundo, comunico-me indubitavelmente com ele, mas não o possuo, ele é inesgotável”. Para ele, a percepção, o “olhar”, que chega aos objetos é tão indubitável quanto nosso próprio pensamento. E “olhar um objeto é vir habitá-lo e dali apreender todas as coisas segundo a face que elas voltam para ele” (MERLEAU-PONTY, 1945, p.105). Ao percebermos um objeto nos damos conta de que só posso vê-lo quando os outros objetos formam com ele um sistema (ou um mundo) em que cada um dispõe dos outros em torno de si como espectadores de seus aspectos escondidos e garantia de sua permanência. Existe um limite para o olhar humano que sempre coloca somente uma face do objeto, ainda que vise às outras por meio do horizonte. A percepção, o olhar e o ver, para Merleau-Ponty (1945) não envolve somente o sentido da visão, mas sim o corpo em sua totalidade.

E “meu corpo é meu poder geral de habitar todos os ambientes do mundo” (MERLEAU-PONTY, 1945, p.417). Meu corpo é movimento em direção ao mundo; e este, por sua vez, é o ponto de apoio de meu corpo. De modo que não é uma contradição dizer que o corpo é intencional, um ato, um movimento em direção ao mundo; principalmente se temos claro a concepção de Husserl (1913) acerca de consciência como experiência e a consciência como um “eu posso” e não um “eu penso que” (MERLEAU-PONTY, 1945). Isso significa dizer que o corpo tem seu mundo; daí decorre que não se deve dizer que nosso corpo está no espaço e no tempo; e sim que ele habita o espaço e o tempo. Eu tenho um corpo e por meio dele ajo no mundo; para mim, o espaço e o tempo não são uma soma de pontos justapostos (MERLEAU-PONTY, 1945); Kierkegaard (1844), um século antes, já apontava a falácia de se considerar ambos como uma progressão contínua e quantitativa. O enigma desta relação é que meu corpo é vidente e visível; ele está preso no tecido do mundo, ou seja, entre as coisas e com coesão de coisa. Mas, ao ver e se mover, “ele mantém as coisas em círculo a seu redor, elas são um anexo ou um prolongamento dele mesmo, estão incrustadas em sua carne, fazem

parte de sua definição plena, e o mundo é feito do estofamento do corpo” (MERLEAU- PONTY, 1961, p.17).

Com isto, e fundamentando-se em textos de Husserl, Merleau-Ponty (1945) chega à conclusão de que a motricidade (ou movimento) é, inequivocamente, a intencionalidade original. A visão e o movimento são maneiras específicas de nos relacionarmos com objetos e de tal modo implicadas uma na outra (o movimento depende da visão e a visão do movimento) que exprimem uma função única: o movimento da existência. O vidente, imerso no visível por seu corpo (igualmente visível), “não se apropria do que vê; apenas se aproxima dele pelo olhar, se abre ao mundo” (MERLEAU-PONTY, 1961, p.16).

Há ainda a possibilidade do corpo fechar-se ao mundo e, justamente por poder fazer isso, o corpo é “também aquilo que me abre ao mundo e nele me põe em situação” (MERLEAU-PONTY, 1945, p.228). Mas mesmo cortando o circuito da existência, nunca me torno inteiramente uma coisa no mundo por faltar sempre a plenitude de uma existência como coisa. Se me ausento do mundo humano e abandono a existência pessoal, só reencontro em meu corpo a mesma potência pela qual estou condenado ao ser. É possível que por alguma experiência traumática, eu aliene meu poder perpétuo de me dar “mundos” em benefício de um deles que, por sua vez, perde substância e termina por ser apenas uma certa angústia (MERLEAU-PONTY, 1945). De modo que, naquilo que se chama recalque, mantenho um dos mundos momentâneos pelos quais passei e faço dele a forma de toda a minha vida.

É certo que nós vivemos, originalmente, de uma maneira não crítica, em uma atitude ingênua e natural e somos tentados a usar uma interpretação comum do mundo que nos é dada pela nossa língua materna e pela tradição (FINK, 1960). Com base neste bom senso que nos acomoda, sabemos quem somos, nossa tarefa, nossa meta, deveres e direitos, leis, o que é natureza, história, necessidade e liberdade. Tão logo nos pomos a refletir, a interpretação imediata do mundo desaparece. E essa reflexão pode levar a outros mundos que, a despeito disso, quase sempre não ultrapassam os limites da atitude natural sem jamais sair dela.