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INTERCULTURALIDADE OU MULTICULTURALIDADE?

Apesar de o conceito de cultura ser considerado estratégico e central na definição de identidades e, consequentemente, ser importante para a reflexão aqui proposta, não é objetivo deste ensaio aprofundar uma discussão sobre o mesmo, em especial porque:

[...] todas as concepções intelectuais acerca de cultura são também cons- truções das sociedades ou dos grupos que as elaboraram. Olhando para si próprias, ou a partir de si mesmas, buscam a construção de um sentido específico para suas identidades particulares, em um determinado tempo histórico (LEITE, 2010, p. 13).

Ou seja, trata-se de um conceito extremamente polissêmico. Assim, apenas no sentido de demarcar o significado de cultura aqui assumido, o mesmo é entendido como“[...] uma produção humana que não está, de uma vez por todas, fixa, determina- da, fechada nos seus significados” (KNIJNIK; WANDERER, apud KNIJNIK et al., 2012, p. 37), significados esses que, entretanto, formam “[...] um sistema de significados constituinte de e constituído por relações de poder” (KNIJNIK, 2006, p. 161). As- sumir esse significado de cultura, portanto, é entendê-lo como um campo de lutas no reconhecimento e na afirmação das diferenças, na medida em que, infelizmente ainda nos depararmos com um trato segregador e discriminatório em relação às mesmas.

Apesar disso parece ser consenso nos dias de hoje a presença da diferença étni- co-cultural nas relações que estabelecemos com o mundo no qual estamos imersos, ou seja, como parte de nossas vidas e, portanto, constituinte da nossa formação humana.

Em grande medida isso se deve à questão da chamada pós-modernidade que:

[...] pôs também em relevo a fragmentação em que vive o homem con- temporâneo, a diversidade de lugares e de olhares que referenciam e si- multaneamente ‘des-referenciam’ a sua práxis e a sua reflexão sobre essa mesma práxis, a multiplicidade de mundos que habita e de gestos que exprimem os laços plurais em que se desentretece a sua pertença (AN- DRÉ, 2005, p. 15).

Com isso, ao mesmo tempo recolocou na ordem do dia a questão do multicul- turalismo. Digo recolocou, na medida em que a diversidade de culturas é uma temática recorrente na história da humanidade. Polissêmico tal qual o conceito de cultura, o termo multiculturalismo é comumente utilizado para designar a coexistência de formas

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culturais ou grupos que se caracterizam por culturas distintas no seio das sociedades ditas modernas, seja em contextos locais ou globais.

Santos e Nunes (2003), apoiados em Stam (1997)1 apontam que o multicultu-

ralismo pode aparecer como uma descrição das diferenças culturais, referindo-se, neste caso, a:

a) existência de múltiplas culturas no mundo;

b) coexistência de diferentes culturas no espaço de um mesmo estado-nação; c) existência de culturas que se influenciam umas às outras, tanto dentro como para além do estado-nação.

Ao mesmo tempo, aponta também para a possibilidade de o multiculturalismo aparecer como um projeto político de reconhecimento dessas diferenças. A sobreposi- ção da primeira perspectiva em relação à segunda tem suscitado críticas tanto de setores conservadores, quanto de setores progressistas e de esquerda. Os motivos dessas críticas estão fortemente ligados aos interesses políticos defendidos por essas correntes e não cabem no espaço deste ensaio.

Entretanto, apesar dessas críticas, importa destacar que:

[...] o termo ‘multiculturalismo’ generalizou-se como modo de designar as diferenças culturais num contexto transnacional e global. Isso não signifi- ca, contudo, que tenham sido superadas as contradições e tensões internas apontadas pelos críticos. De fato, a expressão pode continuar a ser asso- ciada a conteúdos e projetos emancipatórios e contra-hegemônicos ou a modos de regulação das diferenças no quadro do exercício da hegemonia nos Estados-nação ou à escala global (SANTOS; NUNES, 2003, p. 33).

Ou seja, Santos e Nunes (2003) apontam para a possibilidade de um multicultu- ralismo emancipatório que, para se efetivar, entre outras coisas deve estar fortemente pau- tado no diálogo intercultural. Assim, de certa forma o autor coloca a interculturalidade como parte do multiculturalismo. Ao contrário, penso que não apenas a perspectiva mul- ticultural é que está contida na perspectiva intercultural, como entendo necessária e fun- damental a passagem de uma sociedade multicultural para uma sociedade intercultural.

Contudo, da mesma forma que os conceitos de cultura e multiculturalismo: 1 STAM, R. Multiculturalism and the neoconservatives. In: MCCLINTOCK, A.; INMUFTI, A.; SHOHAT, E. (Org.). Dangerous liaisons: gender, nation, and postcolonial. Minneapolis: University of Minnesota Press, 1997.

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[...] o conceito de interculturalidade é mais que complexo, traduzindo semanticamente muitos aspectos, às vezes opacos a nossa percepção e contraditórios com nossa lógica, não sendo fácil, nem aconselhável, assu- mi-lo de maneira apressada. [Visto que] são muitos aspectos que podem e devem ser levados em consideração quando se fala da interculturalida- de. Estão em pauta questões de cunho antropológico, epistemológico, ético, pedagógico, jurídico, histórico, político (SEVERINO, 2013, p. 1).

Dessa forma, no sentido de demarcar posição, o conceito de interculturalidade assumido neste ensaio apoia-se na concepção de um pensador cubano que tem se dedi- cado a esta temática, Fornet-Betancourt. Para ele, interculturalidade é:

[...] aquela postura ou disposição pela qual o ser humano se capacita para, e se habitua a viver ‘suas’ referências identitárias em relação com os cha- mados ‘outros’, quer dizer, compartindo-as em convivência com eles. Daí que se trata de uma atitude que abre o ser humano e o impulsiona a um processo de reaprendizagem e recolocação cultural e contextual. É uma atitude que por nos tirar de nossas seguranças teóricas e práticas, permi- te-nos perceber o analfabetismo cultural do qual nos fazemos culpáveis quando cremos que basta uma cultura, a ‘própria’, para ler e interpretar o mundo (FORNET-BETANCOURT, 2004, p. 13).

Assim, para que a interculturalidade se efetive, é preciso que cada um assuma uma postura de encontro e de diálogo com os chamados outros, com suas culturas e suas formas de pensar, na busca de um enriquecimento mútuo. Ou seja, é preciso estar aberto à possibilidade segundo a qual todas as culturas, em condições de respeito, legi- timidade, simetria e igualdade, se completam e entram em diálogos recíprocos em um processo dinâmico de permanente aprendizagem.

Resumidamente, para que uma sociedade possa ser qualificada como intercultu- ral, as distintas culturas que a constituem teriam que assumir a possibilidade de perma- nente mutabilidade, ou seja, devem compreender sua condição de inacabadas. Vamos ver como isso pode se dar no contexto da educação matemática.