• Nenhum resultado encontrado

RELACIONANDO A QUESTÃO DA PÓS-MODERNIDADE COMO OPOSIÇÃO À MODERNIDADE E À EDUCAÇÃO MATEMÁTICA

Em relação à educação matemática, aproveitando os estudos de Santos (2006) sobre razão indolente e dicotomia, acreditamos que ela guarda, ainda hoje, muitos ele- mentos da racionalidade moderna, sendo essa uma das partes fracas de uma relação di- cotômica, no caso a relação matemática / educação matemática.

62

Nos últimos anos, muito se tem falado em tendências da educação matemática, que podemos entender como uma possibilidade de caminho para pensar o ensino e a pesquisa em educação matemática. É curioso observar que, ainda que muitos trabalhos utilizem autores ditos pós-modernos ou, ainda, autores pós-estruturalistas, até onde sa- bemos, nunca se falou em uma tendência pós-moderna em educação matemática. Por outro lado, muitas pesquisas em Educação, tais como Morin (2002) e Pourtois e Des- met (1999), abordam a questão da pós-modernidade na educação com um maior oti- mismo, clamando, inclusive, pela necessidade de mudanças dos processos educacionais para esta nova era.

Ainda que não seja nosso objetivo propor ou clamar por uma educação matemá- tica pós-moderna, interessa-nos pensar sobre os motivos que fazem com que algo assim seja tão difícil ou mesmo indesejável.

Dentre os motivos, julgamos que um dos principais é a proximidade do conheci- mento matemático com as promessas e as formas de pensar modernas – ao menos no que se refere ao seu discurso –, o que tem um forte impacto sobre o ensino de matemática.

Ainda que, por exemplo, o impacto dos trabalhos de Gödel (no que se refere às promessas e aos limites do conhecimento matemático) e muitas das descobertas da físi- ca no século XX estejam muito mais próximos de uma perspectiva pós-moderna acer- ca do conhecimento, há pouco reflexo da pós-modernidade no ensino de matemática. Tanto na educação básica quanto em cursos de licenciatura que formam professores de matemática, o que ainda impera é a crença em verdades que colocam o conhecimento matemático como uma forma privilegiada de saber; conhecimento matemático como conhecimento neutro, preciso, universal, que está presente em tudo e em todos.

Clareto e Sá (2006, p. 11) nos dão um bom exemplo de como a modernidade ainda influencia as aulas de matemática:

Tanto a organização de seus espaços e tempos, quanto a constituição dos saberes escolares têm, na razão cartesiana, seus modelos. Assim, os currículos seguem o ‘modelo da escada’, ou seja, com pré-requisitações baseadas na lógica ‘do mais simples ao mais composto’. Além disso, a bus- ca por verdades e a total dicotomização entre certo e errado, verdadeiro e falso, processos ‘mais elegantes’ e ‘menos elegantes’, algoritmos ‘mais fáceis’ e ‘mais difíceis’ dominam as constituições de currículos escolares. Especialmente, os currículos de matemática seguem muito rigidamente esta premissa: as justificativas para os conteúdos matemáticos curricula-

63

res ainda se põem com base em uma composição interna linear: ensina-se isto com vistas ao ensino daquilo, o aluno precisa saber isso senão não consegue aprender aquilo.

A matemática do currículo escolar está, ainda, muito diretamente ligada à ra- cionalidade cartesiana, partindo sempre da decomposição do complexo em partes mais simples, sendo o conhecimento entendido como um processo de encadeamento lógico. Por essa perspectiva, somente desta forma é possível chegar a uma compreensão mais geral e, consequentemente, às verdades sobre as coisas.

Tal confiança na capacidade da matemática em atingir conhecimentos verdadei- ros tem como uma das causas aquilo que é justificado por Skovsmose (2011, p. 130- 131) como uma crítica a respeito da matemática como solução para tudo:

A base da ideologia que está subjacente a esse discurso pode ser resu- mida pelas seguintes ideias: (1) A matemática é perfeita, pura e geral, no sentido de que a verdade de uma declaração matemática não se fia em nenhuma investigação empírica. A verdade matemática não pode ser influenciada por nenhum interesse social, político ou ideológico. (2) A matemática é relevante e confiável, porque pode ser aplicada a todos os tipos de problemas reais. A aplicação da matemática não tem limite, já que é sempre possível matematizar um problema.

Esta visão acerca do conhecimento matemático, como sendo a fonte da melhor linguagem para modelar a natureza, como capaz de se aproximar de conhecimentos verdadeiros e como um conhecimento neutro e preciso, não pode ser conciliada com muitas das ideais inerentes à pós-modernidade. Dessa forma, perspectivas como a trans- posição didática, que colocam como objetivo do ensino de matemática aproximar o má- ximo possível a matemática aprendida nas escolas da matemática científica, são muito mais sedutoras e confortáveis do que as incertezas e brechas deixadas pelo abandono dos ideais da modernidade.

Vamos retomar a nossa visita ao museu e relacioná-la um pouco com a nossa concepção acerca do conhecimento matemático e da forma que ele vem sendo pensado e ensinado nas escolas e universidades.

O interessante na história relatada no início do nosso capítulo é perceber como a representação, no caso o autorretrato do pintor, se amoldou à realidade. Isso parece óbvio por se tratar de um autorretrato, afinal, ao pintá-lo, o autor buscou fazer isso da

64

melhor forma possível, exaltando o que julgava relevante ou o que sua sensibilidade artística observava, sendo um retrato da sua realidade.

A grande surpresa é a descoberta de que o referido autorretrato não era mais uma representação original do pintor, mas uma adequação a uma nova forma de entendimento ou a uma nova realidade, afinal a barba passou a ser reconhecida posteriormente como uma marca do pintor e se, em seu autorretrato, ela não aparecia, nada mais natural do que pintá-la. O quadro original, que representava a vontade do pintor e a sua manifestação artística em forma de autorretrato, foi desqualificado enquanto verdade e assimilado a uma nova forma de entendimento, no qual o pintor não pode existir sem a sua barba.

Esta analogia pode ser usada para pensar um pouco sobre nossa concepção acerca do conhecimento matemático e sua história, que muitas vezes transformamos para que ela se enquadre à realidade aceita. No caso, podemos destacar a ideia de linearidade do conhe- cimento matemático, que coloca o que sabemos hoje como uma evolução direta de saberes matemáticos anteriores, bastando para isso pintar barbas onde não existiam, fazendo tudo parece estar incluído numa mesma linguagem matemática aceita nos dias de hoje.

Essa concepção universalista do conhecimento matemático, parte forte na rela- ção dicotômica matemática / educação matemática, é a que ainda impera nas escolas e universidades, e qualquer ideia ou atitude que vá contra isso é tida como indesejável ou mesmo perigosa.

Dentre as contribuições do pensamento pós-moderno, podemos destacar a pos- sibilidade de questionarmos, ou ao menos percebermos, a existência de algumas das bar- bas pintadas historicamente sobre o conhecimento matemático e que são consideradas intocáveis nos dias de hoje.

Não considerar o conhecimento matemático como um saber privilegiado, limi- tando assim as possibilidades do conhecimento matemático, ao mesmo tempo em que enfraquece a matemática como a entendemos, pode ensejar novas abordagens e novas possibilidades tanto para o conhecimento matemático, para a pesquisa em educação matemática, quanto para o ensino de matemática.

65

REFERÊNCIAS

ANDERSON, P. As origens da pós-modernidade. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed., 1999. CLARETO, S. M.; SÁ, É. A. Matemática e educação escolar: lugares da

matemática na escola e possibilidades de ruptura. In: REUNIÃO ANUAL DA ANPED - EDUCAÇÃO, CULTURA E CONHECIMENTO NA

CONTEMPORANEIDADE, 29., 2006, Caxambu. Anais... Caxambu: ANPED, 2006. Disponível em: <http://www.ufrrj.br/emanped/paginas/conteudo_

producoes/docs_29/matematica.pdf>. Acesso em: 16 out. 2014.

DAMÁZIO JÚNIOR, V. Genealogia e etnomatemática: por uma insurreição dos saberes sujeitados. 2011. 120 p. Dissertação (Mestrado em Educação Científica e Tecnológica) - Universidade Federal de Santa Catarina, Florianópolis, 2011. FOUCAULT, M. Em defesa da sociedade. São Paulo: Martins Fontes, 1999. INTERNATIONAL COUNCIL OF MUSEUM. 2015. Disponível em: <http:// icom.museum/the-vision/museum-definition/>. Acesso em: 22 out. 2015.

MORIN, E. Introdução ao pensamento complexo. 3. ed. Porto Alegre: Sulina, 2007. MORIN, E. Os sete saberes necessários à educação do futuro. 5. ed. São Paulo: Cortez; Brasília: UNESCO, 2002.

POURTOIS, J. P.; DESMET, H. A educação pós-moderna. São Paulo: Loyola, 1999. SANTOS, B. S. Conhecimento prudente para uma vida decente: um discurso sobre as ciências revisitado. 2. ed. São Paulo: Cortez, 2006.

SANTOS, B. S. Um discurso sobre as ciências. 6. ed. São Paulo: Cortez, 2009. SANTOS, J. F. O que é pós moderno. São Paulo: Brasiliense, 1989.

SKOVSMOSE, O. Educação matemática crítica: a questão da democracia. 6. ed. São Paulo: Papirus, 2011.

POSSIBILIDADES PARA UMA EDUCAÇÃO