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SOBRE O CONCEITO DE PRÁTICA (E SUA RELAÇÃO COM A TEORIA)

Não é raro que, junto ao senso comum, a noção de prática seja compreendida como algo que se opõe à teoria, relacionada à “[...] execução de alguma coisa que se

projetou (por oposição a teoria)” ou, ainda, a um “[...] processo, [uma] maneira de fazer” (DICIO, 2015). Em tal contexto, que compreende a ruptura e até mesmo a oposição entre a teoria e a prática, talvez seja válido o conhecido dito popular: na prática, a teoria é outra.

Guerra (2005, p. 4), ao discutir os fundamentos da fragmentação entre a teoria e a prática, defende que tal fragmentação estaria fundamentada em uma noção empírica e pragmática de teoria, segundo a qual a “[...] teoria tem o seu valor, alcance e papel condicionados à sua capacidade de dar respostas prático-empíricas à realidade”. Como consequência, produz-se uma desqualificação da teoria que acaba por negá-la como ele- mento de compreensão e potencial transformação da realidade.

Ainda segundo Guerra (2005, p. 4), a desqualificação da teoria, e a consequente fragmentação entre teoria e prática, serve a uma perpetuação da alienação do trabalho, enquanto racionalidade hegemônica da sociedade capitalista, uma vez que o:

Produto necessário do processo de reificação é uma concepção de co- nhecimento que não ultrapasse a aparência dos fatos; que não supere o âmbito da experiência imediata; que conceba os fenômenos na sua positividade; que descarte o seu movimento de constituição e que, por isso, não seja capaz de captar o movimento; que suprima as mediações sociais constitutivas e constituintes dos processos; que defenda a impos- sibilidade de conhecer a essência (a coisa em si). Sem o conhecimento dos fundamentos, a elaboração teórica nega-se a si mesma. Esta forma de produção do conhecimento vira presa fácil para servir de instrumento de manipulação.

Compreende-se, dessa forma, que é apenas na unidade dialética entre a teoria e a prática que é possível a apropriação da realidade, a compreensão de sua essência e das

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relações que a constituem, bem como sua consequente transformação. Ou seja, é apenas na atividade teórico-prática (VÁZQUEZ, 2007), compreendida como práxis, que o conhecimento da realidade e dos objetos que a constituem pode se produzir. Sendo assim, não podemos compreender o conceito de práxis em Marx, sem passarmos neces- sariamente pelo que constitui a atividade prática e a atividade teórica.

A atividade prática é aquela na qual o homem age sobre uma matéria exterior a ele, transformando-a. Tem, portanto, um caráter material, objetivo, e o seu objeto é “[...] a natureza, a sociedade ou os homens reais” (VÁZQUEZ, 2007, p. 194). Como toda atividade humana, busca satisfazer alguma necessidade e, embora esteja voltada para uma ação sobre a realidade concreta – natural ou humana –, não prescinde de certa atividade cognoscitiva, ou seja, de algum conhecimento acerca da realidade sobre a qual se intenciona agir. Já a atividade teórica não transforma a realidade, embora sua existên- cia esteja vinculada à prática, uma vez que fornece conhecimentos imprescindíveis para essa transformação. O objeto da atividade teórica só tem existência subjetiva (sensações, percepções) ou ideal (conceitos, teorias, hipóteses). Dessa forma, a transformação pos- sível mediante a atividade teórica é a ideal e não a real.

Na relação entre atividade prática e atividade teórica se configura a práxis. Isso porque, se, por um lado, a práxis é compreendida como uma “[...] atividade material, transformadora e ajustada a objetivos”, por outro, “[...] não há práxis como atividade puramente material, isto é, sem a produção de finalidades e conhecimentos que caracte- rizam a atividade teórica” (VÁZQUEZ, 2007, p. 208). Assim, se, por um lado, a prática é o fundamento da teoria, por outro, a teoria não tem como função justificar a prática e sim servir-lhe de guia e possibilidade de esclarecimento, muitas vezes estabelecendo relativa autonomia em relação à primeira e até se antecipando a ela. Sendo, portanto, a práxis uma atividade teórico-prática, resulta daí:

[...] ser tão unilateral reduzir a práxis ao elemento teórico, e falar inclusi- ve de uma práxis teórica, como reduzi-la a seu lado material, vendo nela uma atividade exclusivamente material. Pois bem, da mesma maneira que a atividade teórica, subjetiva, por si só, não é práxis, tampouco o é a ati- vidade material do indivíduo, ainda que possa desembocar na produção de um objeto – como é o caso do ninho feito pelo pássaro – quando lhe falta o momento subjetivo, teórico, representado pelo lado consciente dessa atividade (VÁZQUEZ, 2007, p. 241).

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Compreendida de tal forma a unidade entre a teoria e a prática, o ato de co- nhecer passa necessariamente por uma postura ativa do sujeito diante do objeto de conhecimento e, portanto, implica uma dimensão prática da atividade. Marx e Engels (1998) exploram essa ideia na tese I sobre Feuerbach, ao fazer a crítica tanto ao idealis- mo quanto ao materialismo tradicional. Segundo este autor, o materialismo tradicional conceberia o conhecimento como mera contemplação do sujeito diante de um objeto exterior a ele e, portanto, um sujeito passivo que “[...] se limita a receber ou refletir uma realidade; o conhecimento não passa do resultado da ação dos objetos do mundo exte- rior sobre os órgãos dos sentidos” (VÁZQUEZ, 2007, p. 151). Já o idealismo, embora considere a atividade do sujeito, considera-a apenas abstratamente, ou seja, não inclui a atividade prática. Marx propõe ao mesmo tempo, como forma de superação, a negação da contemplação e a negação da atividade meramente abstrata. Para ele, conhecer é “[...] conhecer objetos que se integram na relação entre o homem e o mundo, ou entre o ho- mem e a natureza, relação que se estabelece graças à atividade prática humana” (VÁZ- QUEZ, 2007, p. 153). Como, no entanto, toda atividade prática não prescinde de uma atividade teórica, concluímos que o conhecimento só é possível na práxis.

No entanto, Vázquez (2007) chama a atenção a que, no senso comum, associa-se o prático ao utilitário. De acordo com esse raciocínio, o conhecimento só seria verda- deiro conforme fosse útil. No entanto, o que se defende é exatamente o inverso, ou seja, o conhecimento é útil na medida em que é verdadeiro, e o critério de verdade é dado pela prática social.

Nesse sentido, a compreensão da práxis como atividade teórico-prática traz im- plicações importantes para a organização da prática como componente curricular na formação inicial de professores de matemática, de modo a não ser confundida com um certo praticismo, entendido do ponto de vista do senso comum, no qual a prática se efetiva sem teoria, ou com muito pouco dela e, diversas vezes, associada a uma visão simplista da ideia de contextualização no ensino de matemática, por meio da qual se re- duz a prática à ideia de associar com a realidade. Nessa direção, alerta Vázquez (2007) para a preocupação com a compreensão prática entendida como uma atividade acrítica em relação a si mesma. É nessa perspectiva que se situam muitas das críticas às teorias sobre a epistemologia da prática, por meio das quais se acredita que, em decorrência

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de um processo de reflexão, garante-se a formação de um bom professor, mesmo numa condição esvaziada teoricamente (ALMEIDA, 2006).

Assim, é apenas por meio do conceito de práxis que se torna possível adentrar no conceito de conhecimento, dentro de uma concepção histórico-cultural e, por conse- guinte, no conceito de educação escolar, como lugar de apropriação de conhecimento científico. Daí a sua importância, se buscamos compreender as contribuições desse en- foque para o trabalho e a formação docente.

Sobre educação escolar, destaca Moura (2012, p. 190) que:

Esta vai além do ensinamento do que acontece no cotidiano. A educa- ção para a aprendizagem do cotidiano não requer a escola como espaço de aprendizagem. A aprendizagem do cotidiano se dá nas práticas coti- dianas. Ir além da aparência dos objetos e fenômenos é que exige a ação intencional de desvelá-los para o estudante que ao se apropriar das suas múltiplas determinações deverá compreender o modo como foram se constituindo. Em síntese, apropriar-se do objeto de conhecimento passa pelo domínio do modo de fazê-lo e dos instrumentos mediadores para concretizá-lo. Esse modo de organizar o ensino poderá impactar os pro- cessos de formação dos alunos possibilitando-os a resolver problemas que superem as ações cotidianas.

A compreensão de educação escolar, conforme descrita por Moura (2012), nos leva a pensar sobre a necessidade de que o entendimento de prática, em sua essência, supera a compreensão desse conceito como aproximação ao cotidiano, mas como um modo de apropriação do objeto – o conhecimento – por meio das múltiplas determi- nações que o constituem.

A PRÁTICA COMO COMPONENTE CURRICULAR NA