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INTRODUÇÃO: MITOS E PRÉ-CONCEPÇÕES NA DELIMITAÇÃO DA ÁREA ANÁLISE NA RETA

A análise na reta, como área do conhecimento matemático (e também como dis- ciplina curricular) é frequentemente identificada com a análise real, sendo a origem dessa crença a suposição de que todo segmento de reta, ou toda grandeza geométrica, pode ser medido com esses números.

Bourbaki (1972, p. 202) diz, na sua obra Elementos de história da matemáti- ca, no capítulo Números reais, que “Toda medida de uma grandeza implica numa noção

confusa de número real”, e essas confusões sobre uma concepção adequada de número para atender às exigências de uma boa medida das grandezas são muito antigas, e ainda permanecem gerando mitos no conhecimento matemático. Os gregos (Eudoxo, Euclides) desenvolveram uma teoria geométrica coerente de razões de grandezas que está na base de uma teoria da medida, e sua consolidação aritmética, na forma de uma teoria dos números reais, só foi conseguida no século XIX (Cauchy, Dedekind, Weierstrass, Cantor, entre outros). A discussão, neste capítulo, sobre a constituição da teoria dos números reais como fundamento da Análise na Reta, e os mitos ao redor dela, segue de perto, com a finalidade pedagógico-formativa de um aprimoramento do pensamento analítico e geométrico do professor de matemática, o artigo de Cifuentes (2011).

Com essa finalidade pedagógica, este capítulo é dirigido para professores de ma- temática em formação inicial ou continuada e professores formadores de professores vi- sando, mediante uma reflexão filosófica e histórica, ao aprimoramento de sua formação conceitual (e não apenas algorítmica), e sua cultura matemática, sobre os assuntos aqui abordados.

Mitos matemáticos, ou ao interior da matemática, têm sua origem quando uma interpretação é transformada em verdade ou em explicação. Então, como é possível haver mitos na matemática se ela é considerada por excelência a ciência da verdade e da certeza? Ou, como pode haver verdades matemáticas que são resultado de uma interpretação?

Mitos matemáticos não devem ser confundidos com mitos sobre a matemática ou metamatemáticos. Um dos mais importantes mitos sobre a matemática, decorrente da chamada crise dos fundamentos que resultou dos desenvolvimentos iniciais da teoria dos conjuntos infinitos no século XIX, e que permeia ainda hoje o seu ensino, é considerar

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essa ciência como sendo de natureza extensional. Isso significa o seguinte: é um pressu- posto geralmente aceito desde então que a matemática toda pode ser fundamentada, e construída, integralmente na teoria dos conjuntos, onde a característica extensional dessas entidades, os conjuntos, é expressa pelo axioma de extensionalidade de Frege-Cantor que, intuitivamente, diz que um conjunto fica bem determinado pelos seus elementos. Essa exigência deixa de lado conjuntos como, por exemplo, o dos números reais próximos de zero ou o dos números naturais muito grandes que não podem ser formalizados na teoria de Cantor por não serem extensionais, pois seus elementos não estão bem definidos, a me- nos que explicitemos um grau de aproximação ou um grau de grandeza bem determinado. Essa foi uma das propostas de fins desse século e começo do seguinte para a recons- trução da matemática, proposta que se consolidou em decorrência de dois processos de forte caráter reducionista:

a) o da aritmetização da análise que pretendia reduzir a matemática à teoria dos números naturais;

b)

Devemos destacar que a ideia intuitiva de função, tão central na matemática atual,

carrega, desde suas primeiras formulações, um aspecto dinâmico-intencional que sua ver- são conjuntista-extensional não pode capturar. Essa característica dinâmica da função, que está na base, por exemplo, dos primeiros entendimentos sobre a natureza das soluções das equações diferenciais, foi perdida, como observado por Lorenzo Martínez (200-), na passagem da formulação do conceito de continuidade de uma função devida a Cauchy para as formulações atuais que usam a noção de limite, usando a linguagem ε-δ, devidas

principalmente a Weierstrass.

Segundo Lorenzo Martínez (200-, p. 10):

Cauchy enuncia que ‘uma quantidade variável se torna infinitamente pe- quena quando seu valor numérico diminui indefinidamente, convergin- do para zero’. Nessa linguagem dinâmica, as quantidades são grandezas que aumentam ou diminuem, com os valores numéricos associados con- vergindo, respectivamente, para infinito ou para zero. [...] A formulação de Cauchy não tem, então, um sentido verdadeiramente preciso, e pode ser descartada em favor de conceitos de natureza mais aritmética, como o de majoração, de minoração ou de aproximação.

o que pretendia reduzir estes aos conjuntos, ambos exigindo uma análise aprofundada do conceito de infinito.

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A passagem da reta euclidiana para a reta numérica é uma passagem conceitual de uma geometria/física da continuidade da reta para uma aritmética da continuidade da reta, e constitui um dos componentes metodológicos do processo de aritmetização da análise. Essa passagem já é um pré-anúncio teórico da ruptura epistemológica que es- tabelece a aceitação dos números reais como fundamento da análise matemática clássica e que chamaremos mais adiante de mito da análise real.

Podemos apontar, então, como um primeiro mito matemático, consequência desse mito metamatemático sobre o caráter extensional da matemática mencionado acima, o seguinte: as funções têm só características extensionais e podem ser reduzidas à sua defini- ção conjuntista, isto é, elas podem ser consideradas conjuntos de pares ordenados.

Em Cifuentes (2010) analisamos outros mitos matemáticos e sobre a matemáti- ca como parte de uma discussão sobre o pensamento matemático qualitativo.

Frequentemente os mitos matemáticos são fonte do que Bachelard (2003) chama de obstáculos epistemológicos, pois aqueles, na sua condição de verdades matemáticas consolidadas no conhecimento matemático, se constituem em obstáculos para o surgi- mento de outras verdades (interpretações) que as substituam. O conceito de ruptura epistemológica também foi introduzido por Bachelard em (BACHELARD, 2000).

Mitos matemáticos, então, são mitos ao interior da própria matemática e fazem parte do conhecimento matemático sistematizado, transformando-se em paradigmas, na denominação de Kuhn. O exemplo que motiva o assunto deste capítulo, e que vere- mos em seguida, mostrará que certos resultados matemáticos de um pensamento quali- tativo em matemática dependem geralmente de uma interpretação e são consequência de uma tomada de decisão. Talvez possamos concordar em que um primeiro passo para a compreensão dessa situação é reconhecer que atribuir verdade a hipóteses, axiomas ou princípios que a matemática assume, é resultado de um ato de interpretação acerca de uma certa realidade matemática: uma afirmação matemática é dita verdadeira se o fato que ela descreve ocorre na realidade.