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A INTERDISCIPLINARIDADE NA ATUAÇÃO DOS TRIBUNAIS DE CONTAS E A COLISÃO DOS DISCURSOS

nem falar de um neoconstitucionalismo, mas, sim, de vários

2.3 A INTERDISCIPLINARIDADE NA ATUAÇÃO DOS TRIBUNAIS DE CONTAS E A COLISÃO DOS DISCURSOS

ENVOLVIDOS

O campo de atuação dos Tribunais de Contas demanda a utilização de conhecimentos relacionados a diversas áreas, tais como a jurídica, econômica, contábil, administrativa, de engenharia,

matemática, estatística, o que, por sua vez, gera a necessidade de articulá-los e organizá-los.

Para isso, é necessária uma reforma paradigmática (e não programática) do pensamento, a fim de se enfrentar o problema do abismo existente entre os saberes desunidos, divididos, compartimentados, de um lado, e realidades ou problemas cada vez mais multidisciplinares, transversais, multidimensionais, transnacionais, globais e complexos, de outro. (MORIN, 2000, p. 35-36)

É necessária, portanto, uma nova forma de atuação das Cortes de Contas, de utilização dos conhecimentos de que dispõem por meio de seu corpo técnico, de exercício de sua atribuição de controle e de enfrentamento dos desafios que se revelam, com vistas ao atendimento das necessidades da sociedade contemporânea.

Depois de Posner (1987) ter diagnosticado o declínio e a morte do direito como disciplina autônoma, a racionalidade econômica parece ter a pretensão de representar a nova universalidade jurídica, em um movimento que pretende substituir o enfraquecido conceito de justiça pelo ideal da eficiência econômica do direito, de forma que o único deus remanescente a quem o direito deveria reverenciar chama-se rational choice, cuja filosofia, por sua vez, elabora os princípios racionais de uma nova ordem que reclama sua validade também frente ao direito. “Esse novo monoteísmo fala com o pathos do direito natural em nome da natureza e da razão. As leis internas do mercado e das organizações representam a natureza da sociedade moderna, e o direito deve refleti- las”. (TEUBNER, 2002, p. 93)

Essa pretensão triunfante do direito e economia, como paradigma que elimina antigas orientações político-morais do direito e que não tolera a coexistência de quaisquer outros paradigmas ao seu lado, encontra sua razão de ser em sua histórica vitória nas sociedades modernas pela institucionalização da racionalidade econômica no mundo. A força dessa corrente reside no argumento de que a sociedade moderna é baseada na economia e o direito moderno deve oferecer estruturas legais adequadas às demandas do mercado. (TEUBNER, 2002, p. 93-94)

Ocorre que, paradoxalmente, é nesse argumento que também se encontra a grande fraqueza do movimento direito e economia, já que “a racionalidade econômica não é a única a possuir o privilégio da institucionalização da sociedade como um todo”. A mudança de paradigma que de fato houve, não foi no sentido da substituição de um monoteísmo (política-moral) por outro (econômico), mas, sim, da transformação de um monoteísmo para um politeísmo ou, ainda, do

monoteísmo de uma racionalidade moderna para um politeísmo de muitos discursos. E essa “moderna pluralidade dos deuses não é uma questão de crença individual, mas uma dura realidade social imposta inexoravelmente ao direito”. (TEUBNER, 2002, p. 94-95)

Em outras palavras, atualmente, o direito atende a várias peculiaridades dos muitos deuses existentes numa sociedade multicêntrica ou policontextual, como é a contemporânea, as quais reclamam aceitação universal por parte dos diversos subsistemas que formam o tecido social. Tal fenômeno representa uma mudança de paradigma da pós-modernidade, que migrou não de um monoteísmo discursivo para outro, mas, sim, de um monoteísmo para um politeísmo do discurso.

Essa abordagem encontra ressonância com o “paradigma pós- moderno, caracterizado pela ausência de metanarrativas, pela policontextualidade e pelo esbatimento das fronteiras entre saberes, que tem associada a pluridisciplinaridade ou mesmo a transdisciplinaridade do conhecimento”. (COSTA, 2012, p. 22)

Na perspectiva autopoética dos sistemas de Niklas Luhmann, a Constituição corresponde ao acoplamento estrutural entre política e direito9, ou seja, é o espaço onde ocorre a filtragem das influências

recíprocas entre os dois sistemas. Embora normativamente fechado, o sistema jurídico é cognitivamente aberto e é a Constituição que, “como uma forma de dois lados, inclui e exclui, limita e facilita” a interpenetração desses sistemas autorreferenciais. (NEVES, 2006, p. 97- 99)

Para Luhmann, ao excluir certos “ruídos” intersistêmicos, a Constituição também inclui e fortalece outros. Se para a política provoca irritações, perturbações e surpresas jurídicas, para o direito é provocadora de irritações, perturbações e surpresas políticas, possibilitando uma solução jurídica para o problema de autorreferência do sistema político, ao mesmo tempo em que permite o inverso, ou seja, uma solução política para a questão da autorreferência do sistema jurídico. (NEVES, 2006, p. 98)

Ocorre que essa noção de acoplamento estrutural traz consigo uma relação de bilateralidade entre dois sistemas autônomos. No

9 Neves (2006, p. 97) destaca que “o conceito de acoplamento estrutural ocupa

um lugar central na teoria biológica dos sistemas autopoiéticos” de Humberto Maturana e Francisco Varela, “à qual Luhmann explicitamente recorre na aplicação dele aos sistemas sociais”.

entanto, como visto, atualmente, o direito responde a diversas racionalidades, que se confrontam entre si, cada uma delas com pretensão de universalidade. (NEVES, 2009, p. 24)

Daí a necessidade, para além dos acoplamentos estruturais, de uma racionalidade transversal, possível pela construção de pontes de transição que permitam um diálogo entre as diversas esferas de comunicação. (NEVES, 2009, p. 50-51)

E essa sociedade mundial contemporânea forma uma espécie de conexão unitária de uma multiplicidade de esferas de comunicação que se relacionam de maneira concorrente e complementar, a que Luhman denomina de unitas multiplex. (NEVES, 2009, p. 26)

E isso nos remete a uma pluralidade de códigos-diferença que orientam a comunicação nos diversos campos sociais. Neves, baseando- se em Luhmann, ilustra isso, prescrevendo que:

A diferença “ter/não ter” prevalece no sistema econômico, o código “poder/não poder” tem o primado no político e a distinção “lícito/ilícito” predomina no jurídico. Na ciência, arte, educação, religião e no amor, têm o primado, respectivamente, os códigos “verdadeiro/falso”, “belo/feio (“afinado versus desafinado esteticamente”), “aprovação/reprovação” (enquanto código-limite da diferença gradual “aprender/não aprender”, expressa nas notas e predicados), “transcedente/imanente” e o código amoroso (“prazer/amor” ou “amor/desamor”), que serve de base à formação da família nuclear moderna. (NEVES, 2009, p. 24)

A análise fundamental desse novo politeísmo deve ser encontrada não nos teóricos contemporâneos, mas, sim, em Max Weber, que enxergava a modernidade como a era do politeísmo absoluto. “Processos históricos paralelos de racionalização de diferentes esferas de valores levaram a conflitos insolúveis entre os muitos deuses da modernidade, entre forças ideológicas despersonalizadas que não podiam ser resolvidas ou removidas por alusão à Razão Única”. (TEUBNER, 2002, p. 98)

Weber articulava a colisão de discursos apenas de maneira vaga e metafórica como a luta dos deuses, ou seja, como um conflito das esferas ideais de valores, enquanto que Teubner (2002, p. 98) redefine o problema, “do ponto de vista sociológico, como um fenômeno real da

sociedade e analisado mais precisamente por linguistas como uma colisão de diferentes gramáticas”, asseverando que:

A discussão contemporânea elabora mais detalhadamente as gramáticas dos jogos de linguagem, analisa com mais exatidão as práticas sociais em suas raízes e admite a incomensurabilidade dos discursos e a falta de qualquer meta-discurso. Hoje, na conclusão provisória do debate, encontramos a distinção entre litige e différend dos discursos, de François Lyotard, a pluralidade de sistemas auto-referentes fechados, de Niklas Luhmann, e as propostas normativas sobre como resolver os conflitos entre os discursos, de Jürgen Habermas. A partir dessas perspectivas, os conflitos aos quais o direito está sujeito não resultam do conflito entre valores ideais, mas do conflito entre as práticas sociais reais, com sua lógica própria e com um enorme potencial para causar dano a si mesmas. O direito não é chamado para julgar o eterno conflito entre o sagrado, o bem, o utilitário, o verdadeiro, o justo e o belo. O direito está exposto a conflitos potencialmente destrutivos entre discursos conduzidos de maneira concreta em sociedade, entre concatenações auto-reprodutivas de énoncés que são condicionados por uma gramática interna e por códigos binários e programas que reproduzem sua lógica interna hermeticamente fechada.

[...]

A conflituosidade entre os deuses parece ter aumentado drasticamente. Já não há mais uma disputa entre diferentes sistemas de valores; na visão contemporânea do conflito entre discursos, os deuses em guerra assumiram proporções quase autodestrutivas. Segundo Lyotard, os discursos são tão hermeticamente fechados que negam um ao outro o direito de serem ouvidos e só praticam a violência, a ofensa, a injustiça um para com o outro. De acordo com Luhmann e Habermas, os sistemas sociais desenvolveram uma dinâmica interna tão poderosa e incontrolável que não apenas sobrecarregam os indivíduos e causam danos à ecologia, como também têm efeitos

desintegradores uns sobre os outros. De fato, a luta entre as novas forças ideológicas produz uma sociedade injuriosa, quando não atormentada. (TEUBNER, 2002, p. 99-100, grifo no original)

Para Teubner (2002, p. 108), Habermas10 tratou de maneira

exaustiva da colisão dos diversos discursos sociais autônomos diante do fórum do direito, o chamado forum internum, indagando como esses discursos, dotados de lógicas próprias, ingressam no direito e quais argumentos o direito se utiliza para decidir entre eles, aderindo a um modelo processual. O problema dos conflitos internos surge para o direito quando essas formas discursivas autônomas são traduzidas numa linguagem jurídica, que, por sua vez, corresponde a uma forma discursiva autônoma definida pelo critério de coerência jurídica.

Teubner (2002, p. 109-111) critica essa visão, sustentando que Habermas, ao mesmo tempo, superestima e subestima o papel do direito na composição desses conflitos. Superestima a racionalidade comunicativa que realmente se cria no direito pelo procedimento jurídico e subestima a dinâmica jurídica, que faz muito mais do que apenas filtrar argumentos. Para Teubner, ao transformar todos os discursos em critérios jurídicos, Habermas termina por escravizar as racionalidades externas, comprometendo o livre jogo de discursos:

François Lyotard, para definir essa escravidão, introduziu a distinção de litige e différend. Por causa de sua gramática interna diversa, os discursos são isolados uns dos outros de modo tal que, no caso de um conflito entre eles, nenhum

litige é possível, isto é, não há um procedimento

justo no qual ambas as partes possam apresentar autenticamente sua palavra e no qual seja possível pronunciar qualquer juízo justo. No entanto, se os discrusos podem se encontrar apesar de seu fechamento hermético, é também verdade que isso ocorre somente por meio do différend, isto é, num confronto no qual um discurso violenta a estrutura

10 Sobre os fundamentos de legitimidade do Estado Constitucional a partir das

análises de Weber a respeito da racionalidade jurídica e do fenômeno da

desformalização do direito e das críticas de Harbemas a esses apontamentos, vide Cademartori (2004, p. 5-20).

do outro, cometendo, assim, injustiça. (TEUBNER, 2002, p. 111)

Para Teubner (2002, p. 108-125), as colisões entre as diferentes racionalidades devem ser solucionadas tanto no forum internum, ou seja, dentro do próprio sistema jurídico, como no forum externum, isto é, fora do âmbito do direito.

As diversas racionalidades exteriores ao universo jurídico terminam sendo restringidas pelo sistema jurídico em atendimento às suas finalidades e, por essa razão, devem passar por um processo de reentrada no plano do direito, de forma a permitir que diferentes e incomparáveis racionalidades surjam como elementos comparáveis entre si dentro do discurso jurídico. (TEUBNER, 2002, p. 108-125)

Esse processo de reentrada possibilita a solução do problema de consistência interna jurídica, não sendo capaz, por outro lado, de resolver a questão da consistência externa, ou seja, de sua aceitação ou validade no ambiente exterior. O discurso jurídico deve ser sensível às consequências inerentes que o direito provoca nos vários subsistemas sociais, de modo a avaliar o seu impacto no ambiente social. (TEUBNER, 2002, p. 108-125)

Para tanto, após a reentrada dos conceitos extrajurídicos no mundo do direito, mister realizar uma operação inversa de reentrada do resultado do discurso jurídico interpretado pelos discursos extrajurídicos e, a partir daí, avaliar qual a aceitação daquele por este. Em outras palavras, é preciso verificar se o novo produto do discurso jurídico será tolerado pelo outro discurso e quais os efeitos que causará no sistema social em questão. (TEUBNER, 2002, p. 108-125)

É a partir dessa noção que deve ser compreendida a expressão altera pars audiatur, pela qual se preconiza a ideia de que é necessária a oitiva do outro discurso envolvido na colisão antes da tomada de decisão pelo direito. (TEUBNER, 2002, p. 117)

A racionalidade que impõe uma atuação efetiva do controle externo, no que diz respeito ao combate à ineficiência, à ineficácia e à corrupção na Administração Pública, determina que a racionalidade que limita a atuação dos Tribunais de Contas seja processada nessas operações de reentradas a que se refere Teubner e, a partir daí, que se verifique, ainda que no campo teórico, qual seria o impacto social que uma modificação na maneira de atuar por parte dos Tribunais de Contas causaria na realidade social vivenciada.

Não se pode pensar ou repensar um modelo prático e teórico dessas instituições, com o intuito de propiciar conquistas sociais

desejáveis, levando apenas em consideração o universo jurídico ou o político. É preciso que, nesse processo, sejam mantidos diálogos permanentes com as diversas racionalidades e discursos envolvidos, notadamente as relacionadas ao campo de atuação das Cortes de Contas, por meio dos sucessivos e recíprocos procedimentos de reentradas referidos anteriormente.

São esses referenciais teóricos que vão embasar a discussão de uma nova realidade material e processual da jurisdição de contas, mais consentânea com o que a sociedade espera dos Tribunais de Contas, como instituições de controle, principalmente no que diz respeito à prevenção e ao combate à ineficiência, à ineficácia e à corrupção no setor público.

Assim, para além da missão de zelar pelas contas públicas, como tradicionalmente é concebida essa tarefa, é necessário que, por meio do Bom Controle Público, as Cortes de Contas se convertam em verdadeiros Tribunais da Boa Governança Pública.

Em outras palavras, as Cortes de Contas devem se converter em instituições comprometidas com os princípios da justiça financeira e da boa administração e governança pública, por meio do bom controle, e, assim, exigirem e promoverem junto aos seus jurisdicionados esse mesmo engajamento.

A concepção desse novo modelo de boa governança conclama a mobilização do Poder Púbico para a utilização de novos instrumentos de gestão, ou seja, para a práxis de um novo direito administrativo11.

Ocorre que uma nova práxis de gestão demanda, também, uma nova práxis de controle.

Para tanto, mister não apenas mudanças materiais no modus operandi dos Tribunais de Contas, mas também uma nova leitura do aparato instrumental dessas instituições, com uma imprescindível revisão e reforma de sua estrutura processual, que apresenta diversos pontos de ineficiência e ineficácia. É por meio de uma estrutura processual ágil e moderna que se conseguirá dar rendimento material satisfatório à jurisdição de contas.

2.4 O DIREITO FUNDAMENTAL À BOA ADMINISTRAÇÃO E À